“Testar coisas para ver se funcionam” – é assim que João Tremoceiro resume o trabalho que se faz no Laboratório de Dados Urbanos de Lisboa (LxDataLab). Criado em 2019, o Laboratório lança desde então desafios à comunidade científica, na expectativa de potenciar o uso da analítica de dados na resolução dos problemas do município. Para o director do Centro de Gestão e Inteligência Urbana de Lisboa, demonstrar o que é possível fazer nesta área é também uma forma de impulsionar “um salto cultural na utilização de dados” e de alcançar o “destino último de uma cidade inteligente”: a capacidade de ser proactiva.
Em finais de Junho, o LxDataLab organizou o seu primeiro encontro. No que consiste o trabalho do Laboratório?
O projecto do Laboratório começou em 2019 e, desde então, houve uma grande evolução. Pegamos nos nossos dados e nos problemas do município que podem ser resolvidos com analítica de dados e lançamos esses desafios à comunidade científica – neste caso, aos parceiros do laboratório, que são já 11 faculdades, incluindo as principais ligadas a esta temática que estão em Lisboa, mas também a Universidade do Minho e o Instituto Superior de Engenharia do Politécnico de Coimbra.

João Tremoceiro, director do Centro de Gestão e Inteligência Urbana de Lisboa

Há já um ecossistema a funcionar à volta do Laboratório?
Sim, um ecossistema forte. O Laboratório permite que o município tenha acesso a conhecimento que internamente não tem e que tem dificuldades em contratar. Isto é, [permite] utilizar ferramentas mais avançadas de analítica de dados para resolver problemas da cidade, e, ao mesmo tempo, permite aos alunos ter acesso a dados reais da cidade onde trabalham ou estudam. [Trata-se de] Dados reais, com os problemas dos dados reais, que têm de ser preparados e limpos e, depois, trabalhados. Isso é um grande benefício para eles e para nós.
Qual foi a motivação para realizar um encontro nessa altura?
O objectivo foi apresentar os trabalhos de analítica já realizados, ao longo destes anos, pelos alunos à comunidade científica, à população em geral, aos serviços da câmara, a quem gosta destas coisas e trabalha com elas. Já tivemos mais de 100 equipas envolvidas, lançámos mais de 20 desafios e, por isso, estava na altura de apresentar resultados. Acho que podemos lançar esta iniciativa anualmente.
O que vai acontecer a estes trabalhos? Vão ser implementados no terreno ou pretende-se que seja só um exercício de experimentação?
Sendo um laboratório, é, com certeza, um exercício de experimentação. Naturalmente, há trabalhos que têm interesse para o município. E nós lançamos os dados com um desafio, portanto, [identificamos] problemas que são relevantes para nós. Podem aparecer trabalhos muito bons, outros não tão bons, ou podemos verificar que o problema não se resolve com aqueles dados. É uma experimentação; porém, há coisas que, pelo seu interesse, são utilizadas, seja para planeamento, para a câmara municipal de Lisboa (CML) tomar algumas acções, [seja] para desenvolver novos projectos.
O que acontece nesses casos?
Estes trabalhos são realizados por alunos e, se quisermos dar-lhes continuidade, tem de se contratar alguma empresa com suporte. Não é viável que sejam os alunos a fazê-lo. Além da analítica, temos também problemas relacionados com visualização de dados e [por exemplo] um dos desafios lançados foi o desenvolvimento de uma aplicação recorrendo a realidade aumentada e realidade virtual para facilitar e melhorar as visitas [turísticas] ao Cemitério dos Prazeres. A solução desenvolvida em conjunto pela Faculdade de Arquitetura e pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da U. NOVA mostrou grande potencial e há um grande interesse da CML em fazer escalar o projecto e levá-lo à realidade. O Laboratório é isso: testar coisas para ver se funcionam.
Os desafios decorrem em cinco domínios – ambiente e energia, cidadão, economia, governação e modo de vida. Há alguma área que levante mais interesse?
Todos os domínios habituais das smart cities estão lá [incluídos nos desafios]. A mobilidade é sempre muito atractiva – não há volta a dar. É uma área onde nos aparecem sempre muitos problemas e, por isso, também geramos mais dados e mais casos. Tivemos trabalhos relacionados com o impacto da pandemia também no âmbito da mobilidade, com a análise de imagem para a identificação e georreferenciação de graffitis na cidade e com o alojamento local (AL), no sentido de perceber o que existe nas plataformas de AL e o que está registado. Estas são coisas que, para nós, respondem a problemas concretos.
Mas há alguma agenda prévia na preparação dos desafios?
Quando lançamos estes desafios, não temos uma agenda concreta ou a longo prazo; há [a necessidade de] responder a casos concretos que são, no momento, prementes para o município. E é preciso criar casos de uso, porque a ideia também é criar bons exemplos da analítica de dados que possam ser internamente partilhados no município e que mobilizem os serviços para que cada vez mais estes percebam o que se pode fazer com a analítica. Criar, cada vez mais, esta cultura de utilizar dados para suporte à nossa decisão.
No encerramento do vosso encontro, Carlos Moedas disse: “O que interessa são os dados e, com esses dados, o presidente [da CML] pode tomar decisões.” Os dados são importantes também para este Executivo?
Sim, e têm de o ser cada vez mais. A Plataforma de Gestão Inteligente de Lisboa tem, neste momento [até à data da entrevista, e, Julho], 1,5 mil milhões de registos e todos os dias entram dois milhões de registos dos mais diversos. É um volume de dados já muito grande. Não caracteriza toda a cidade e temos de integrar mais dados, mas já dá um bom retrato do que é que é o seu funcionamento. A questão, agora, é os serviços e o município orientarem cada vez mais os seus processos de de tomada de decisão suportados em dados, e não só na experiência ou, no “sempre se fez assim” ou no “acho que”. [Há que] Dar esse salto cultural para a utilização dos dados, não só descrevendo como é que as coisas aconteceram, que é algo que os dados permitem, mas prevendo o futuro. Essa é a parte interessante: quando nós começamos a ter modelos preditivos – para o trânsito, para o estacionamento, para os resíduos sólidos, etc. –, isso permite-nos prever o futuro e, então, podemos ser mais proactivos e não só reactivos. No fim de contas, chegar a esse patamar é o destino último de uma cidade inteligente.
“E é preciso criar casos de uso, porque a ideia também é criar bons exemplos da analítica de dados que possam ser internamente partilhados no município e que mobilizem os serviços para que cada vez mais estes percebam o que se pode fazer com a analítica. Criar, cada vez mais, esta cultura de utilizar dados para suporte à nossa decisão.”
Trabalhando com tantos dados, como é que o Laboratório aborda as questões de privacidade?
Quando publicamos os dados – e nunca são dados pessoais –, estes são anonimizados, por isso, a questão da privacidade está completamente assegurada e, nesse aspecto, não há grandes problemas. Temos mais de 300 conjuntos de dados disponíveis no portal Lisboa Aberta e penso que deveriam ser mais. Aliás, tendencialmente defendo que os nossos dados deveriam ser todos abertos.
Porquê?
Porque não são nossos [do município]; são das pessoas que os produzem. A não ser que sejam dados que ponham em questão dados pessoais ou de segurança, que não é o caso, não vejo porque não possam ser abertos. Por vezes, não se colocam as coisas em dados abertos porque se tem medo de que estes não estejam perfeitos ou não sejam precisos… Não há problema nisso; [a solução é] colocar os dados abertos verificando que existem dados com problemas e que precisam de ser afinados.
E no que se refere à cibersegurança?
A cibersegurança, internamente, é um problema do município, tal como o é noutra câmara qualquer ou num hospital. Tem de se estar atento.
Mas é algo em que estão a trabalhar?
O município, sim. No Laboratório, quando damos acesso aos dados, não damos acesso às plataformas que os geram. Extraímos os dados e partilhamos aquele pacote [específico]. A origem fica completamente preservada. E só partilhamos os pacotes de dados que são necessários para aquele desafio em concreto, nunca o acesso total aos dados, nem às plataformas; isso implicaria um risco muito complicado.
Têm colaborado com outros municípios no sentido de experimentar soluções nesta área, por exemplo, com os da Área Metropolitana de Lisboa (AML)?
Não, e isso é algo que realmente temos de melhorar. Às vezes, digo que trabalhamos mais com municípios por essa Europa fora do que com os nossos vizinhos do lado. Estamos agora a dar passos fortes para que a AML funcione e partilhe mais informação, mas realmente [até aqui] não existiu essa cultura [de colaboração]. Faria sentido que alguns projectos, por exemplo, com fundos comunitários, que têm a ver com a mobilidade como um todo, fossem feitos em parceria com os diversos municípios da AML. Isso não acontece, mas é uma coisa em que deveríamos avançar, até no âmbito da partilha dos dados. Não faço ideia se é a parte política que atrapalha, mas a realidade é que não temos essa cultura de criar sinergias entre os municípios.
Mas seria vantajoso para o desenvolvimento de soluções?
Sim e também para a partilha de recursos. Há várias questões na área das smart cities nas quais a partilha de recursos faria todo o sentido. As coisas que Lisboa faz, Porto, Sintra ou Cascais [que têm alguma dimensão e recursos] podem fazer, mas há muitos outros, mais pequenos, que têm muitas dificuldades. Se nós já nos vemos aflitos para fazer certos projectos, imagino as cidades mais pequenas! Porque é muito difícil contratar pessoas nesta área e, em Lisboa, podemos fazer parcerias com universidades, mas as cidades do interior têm mais dificuldade. No tema das smart cities, a partilha de recursos seria fundamental.
Tem alguma sugestão?
Assim como existe na Agência para a Modernização Administrativa (AMA) uma plataforma de interoperabilidade para os serviços centrais, deveria existir também, a nível nacional ou regional, alguma plataforma de interoperabilidade para aqueles serviços smart cities que são mais ou menos comuns para que as pequenas câmaras os pudessem utilizar sem ter de comprar a sua [própria] plataforma – o que é uma brutalidade para pequenos municípios. [Uma solução partilhada] Seria muito mais rentável.
Aguardamos ainda a publicação da Estratégia Nacional de Smart Cities.
Parece que está para breve. Espero que isso venha ajudar.
“As coisas que Lisboa faz, Porto, Sintra ou Cascais [que têm alguma dimensão e recursos] podem fazer, mas há muitos outros, mais pequenos, que têm muitas dificuldades. Se nós já nos vemos aflitos para fazer certos projectos, imagino as cidades mais pequenas!”
Como vê hoje o sector das smart cities em Portugal?
Aparecem cada vez mais iniciativas nesta área. Acho que estão a dar-se passos em frente e já se está a fugir da ideia de ver as smart cities como gadgets, coisas tecnológicas, os [projectos] pilotos que, depois, em termos de contratação pública, não têm hipótese nenhuma de escalar e só criam problemas.
Há já alguma maturidade nas iniciativas?
Sim, mesmo os próprios autarcas têm [já] essa sensibilidade e já falam de coisas concretas, adaptadas à realidade e às necessidades de cada um. Já estamos a ir no sentido de resolver problemas recorrendo à tecnologia. Acho que as coisas mais básicas, como a rega ou a iluminação pública [inteligentes], já se começam a disseminar e aparecem projectos em todo o lado. Penso que essas coisas, agora, já deviam ser [consideradas] serviços mínimos não são [na prática]. O passo seguinte está nos dados. Todos estes projectos geram dados e precisam de plataformas onde estes sejam integrados. A questão que agora se coloca é como é que, nestes verticais, integramos os dados e os utilizamos para criar um conhecimento global sobre a cidade.
Pode elaborar?
Temos, por exemplo, iluminação pública, tráfego, uma série de coisas; se queremos trabalhar a segurança na via pública e a segurança das pessoas, vamos precisar de informação da iluminação pública, que não é só importante para quem trata das lâmpadas; é importante para [resolver] outros problemas também [incluindo o da segurança]. Há necessidade de partilhar e de integrar dados. Agora, temos de dar o salto para sermos proactivos, começarmos a prever o futuro e sermos mais eficientes na utilização destes dados e, depois, nos serviços prestados ao cidadão.
LxDataLab já tem encontro previsto para 2023. O que podemos esperar do Laboratório neste futuro próximo?
Para já, temos desafios abertos e queremos tomar novas medidas no sentido de valorizar os desafios existentes. Isto é, vamos partilhar os dados que já foram trabalhados e os resultados já feitos por diversas equipas com as que vão começar. Isto para que se construa conhecimento em cima de conhecimento, para se aprender e para se fazer outras coisas diferentes. Queremos fazer uma série de coisas para tornar os desafios mais apelativos e com resultados muito interessantes para os serviços e também para as universidades. [Trata-se de] Criar um conceito de inovação contínua à volta dos desafios de maneira a motivar as faculdades e a que os alunos se sintam mais atraídos – daí também a introdução dos prémios monetários [dois prémios de dois mil euros, com o patrocínio da BearingPoint, e outros dois de 1 500 euros, um com o apoio da NEC Portugal e outro da NOVA Cidade].
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 36 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2022, aqui com as devidas adaptações.