Num mundo cada vez mais digital, as novas tecnologias são uma poderosa ferramenta para ajudar as cidades a lidar com os desafios actuais. Mais eficiência, sustentabilidade e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos são algumas das propostas de valor que estas apresentam, mas que têm um custo. A sua implementação vai exigir uma mudança nas engrenagens das organizações municipais que não se dá da noite para o dia. Afinal de contas, o que acontece nos bastidores quando uma cidade se torna mais inteligente?

No campo das ideias, definir o que é uma cidade inteligente continua, ainda hoje, sem reunir consenso. No entanto, à margem do eterno duelo “tecnologia vs. pessoas”, algumas noções sobre o tema parecem ser já unânimes: é uma inteligência que ambiciona a eficiência, a sustentabilidade e a qualidade de vida dos cidadãos e que, entre outras coisas, usa as tecnologias digitais como ferramentas para alcançar estes objectivos.

O mundo actual não permite que seja de outra forma, já que a transição digital avança a passos largos em todas as dimensões da nossa vida e impõe-se também às cidades. A digitalização, a crescente conectividade e a analítica de dados representam hoje inúmeras possibilidades de melhoria, quer para quem gere a cidade, quer para quem nela vive, e preparam terreno para a chegada de outras tecnologias, como a inteligência artificial ou a robotização.

As iniciativas e os projectos multiplicam-se e, ao seu ritmo, as cidades vão introduzindo estas novidades no seu funcionamento do dia-a-dia. Mas, neste processo, a rapidez da evolução tecnológica rapidamente colide com a complexidade destes ecossistemas e a rigidez das suas estruturas mais convencionais, nomeadamente das câmaras municipais (CM). Chegar ao dashboard da cidade em tempo real que permite antecipar problemas ou à aplicação no smartphone que coloca os serviços municipais na palma da mão do cidadão não acontece num abrir e fechar de olhos e implica uma transformação profunda na engrenagem municipal. O desafio é comum a todas as cidades e, para aqueles que avançam primeiro, este é um caminho com poucos atalhos e onde se encontram ainda muitas barreiras.

A digitalização no serviço ao cidadão

Depois de mais de duas décadas de experiência a trabalhar com smart cities, Bas Boorsma é actualmente chief digital officer (CDO) da cidade de Roterdão. Há uns anos, escreveu o livro The New Digital Deal, no qual reunia alguns conselhos para ajudar cidades a elaborar uma estratégia de digitalização. Apesar dos inúmeros projectos e avanços tecnológicos, o especialista internacional considera que, no geral, as cidades estão ainda numa “fase inicial” deste processo e isto porque “estamos apenas a começar a abraçar o [novo] paradigma de rede”. A diferença para o sistema anterior, vigente desde a Revolução Industrial, está na forma como as cidades passam a estar organizadas em rede, em vez de numa forma centralizada. Abraçar este paradigma, defende Boorsma, vai permitir “usar a tecnologia para outro propósito”, olhando para o verdadeiro impacto que esta pode ter na vida dos cidadãos. Esta perspectiva, sugere o autor, é também “muito mais interessante” do que a que se associa ao termo smart city – preso à evolução tecnológica e que é inalcançável, “como o pote de ouro no final do arco-íris”.

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Roterdão, Países Baixos.

Se é verdade que ser uma smart city não faz parte dos objectivos de todas as cidades, ser mais inteligente é indiscutivelmente uma ambição de qualquer território ou comunidade. Cascais é o único município português a contar com um “director de futuro” e a sua estratégia, reforça Marco Espinheira, está focada no cidadão e na qualidade do serviço que lhe é prestado. Em 2021, a vila foi uma das finalistas ao prémio Capital Europeia da Inovação, reconhecendo o trabalho feito nos últimos anos.

O processo de transformação digital do município arrancou em 2010 e começou pelos procedimentos internos, levando à virtualização de cerca de 97% da câmara municipal e criando “uma plataforma fértil para a produção de dados e para o seu uso”. Em 2014-15, foi altura de olhar para fora e o município estendeu a abordagem às suas interacções com o território e, em especial, com o cidadão. “Criámos o CascaisID – [trata-se de] várias bases de dados indexadas que nos permitem ter uma visão 360º do cidadão”, explica. Através desta inovação, foi possível à autarquia criar dados sobre a sua operação exterior e agilizar a forma de interacção com os munícipes, com a criação de novos serviços que tiram partido da optimização feita no fluxo de trabalho interno, como é o caso da linha única de serviço universal.

Ao longo deste tempo, a câmara municipal foi tornando mais robusta a sua capacidade digital interna e externa e, hoje, conta também com dados de parceiros, o que lhe permite avançar para uma nova etapa: “Agora, entrámos na fase da analítica”, relata. A pandemia trouxe uma prova de fogo, mas que, para Marco Espinheira, acabou por ser “um caso de sucesso desta estratégia”, já que, em apenas duas semanas, Cascais conseguiu mapear quase em tempo real os hotspots de contágios no concelho, correlacionando dados dos testes feitos a nível nacional (externos) com os dos testes feitos pelo município. “Isso teve influência directa nas nossas opções de higienização de espaços públicos e de reforço de higienização dos transportes nessas mesmas zonas e permitiu-nos devolver ao Serviço Nacional de Saúde informação organizada e apresentada de forma que eles não tinham, apresentando tendências e evoluções ao longo do tempo e categorizada por várias variáveis”. “Não fizemos nada de novo, simplesmente usámos as plataformas que tínhamos para trabalhar e adaptar esta informação”, esclarece.

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Testes à Covid-19 em Cascais.

Desde que foi implementada em 2017, a Plataforma de Gestão Inteligente de Lisboa (PGIL) ainda não parou de “crescer”. A mais recente novidade é “a integração de uma nova camada de dados de dispositivos móveis, agregados em quadrículas de 200 metros, completamente anonimizados, e que permitem saber onde existe mais concentração de pessoas e como é que estas se movem na cidade”, conta João Tremoceiro, director do Centro de Gestão e Inteligência Urbana de Lisboa (CGIUL). Esta nova camada vai juntar-se à enorme panóplia de dados com que a câmara municipal de Lisboa (CML) hoje trabalha e que vão desde os SIG à mobilidade, gestão de resíduos, abastecimento de águas, ambiente, etc.

Alimentar a plataforma e transformar dados em informação passou a ser também uma prioridade e, por isso, a CML tem um programa interno ao qual chama Oficina de Dados – “é uma forma de trazermos dados para dentro da organização e de mostrar que essa informação pode ser útil no apoio à tomada de decisão, tornando-a mais eficiente, mais pró-activa e prestando melhores serviços ao cidadão”. A par disso, a capital está cada vez mais conectada e um dos projectos “importantes” é a rede LoRa, que cobre toda a cidade, permitindo a instalação de dispositivos e sensores de forma muito fácil e com muito baixo custo. “É uma rede gratuita e aberta ao cidadão, empresas e start-ups, mas que permite também aos serviços municipais implementarem sensores de uma forma muito fácil”, explica.

“Informação” foi coisa que nunca faltou na CML; a diferença, diz o responsável, “é que era informação relativamente estática e, agora, existe muita informação em tempo real e isso é importante para a gestão e o planeamento da cidade”. Com tudo isto, o município passa a dispor de um histórico de dados e, ao fazer a analítica desses dados, é possível “conhecer melhor como as coisas funcionam e prever como vão funcionar”. É no desenvolvimento e uso destas ferramentas de analítica que, para o director do CGIUL, “uma cidade se torna realmente inteligente”.

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Em contexto pandémico, a utilidade das ferramentas de analítica de dados ficou mais evidente, dando a possibilidade de adequar as respostas dos serviços municipais à evolução dos surtos quase em tempo real.

“Caminho de pedras”

No portal Lisboa Inteligente, é possível encontrar projectos que têm resultado da digitalização da capital e, embora pareça fácil, “é uma coisa que não se faz com o estalar do dedo e que exige uma transformação dentro da própria cidade”. “É um caminho de pedras muito complicado”, garante João Tremoceiro.

Enquanto CDO de Roterdão, Bas Boorsma afirma enfrentar as barreiras “típicas” à transição digital numa câmara municipal: “muito do trabalho está organizado em silos, muitos dos ‘negócios’ da cidade têm por base modelos de compras públicas que não mudam há décadas, as pessoas que fazem a agenda de inovação não são, por norma, aquelas que gerem as aquisições do dia-a-dia, as regras e os regulamentos estão inseridos num ‘mundo velho’ e não são ágeis o suficiente para lidar com as inovações e a modernidade dos nossos dias”.

Quanto maior e mais complexa for uma organização, mais complicada será a mudança, mas acaba por acontecer. E as CM não são excepção. Apesar de contar já com um longo caminho percorrido, Cascais ainda se depara com obstáculos. “Continua a haver alterações de processos; este é um trabalho contínuo, mas que se tem vindo a fazer através da qualificação, do treino, da formação, etc. Há também uma mudança de cultura mais lenta, mas que está a acontecer”, reporta. O principal exemplo, diz o director de futuro, é o facto de, actualmente, “as divisões da CM pedirem ferramentas para gerir a informação que elas próprias produzem, para terem insights que antes não tinham, para facilitar o trabalho que tem de se desenvolver e para justificarem alguns pedidos de recursos que têm de fazer”.

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Lisboa.

Tanto Lisboa como Cascais criaram uma equipa destinada a este tema – o CGIUL e a divisão de informação e cidades inteligentes da CM Cascais, respectivamente. Esta é, aliás, uma prática que começa a ser comum nos municípios que apostam mais no tema da inteligência territorial. “Ter um gabinete só dedicado a estes assuntos facilita muito”, assegura João Tremoceiro.

À medida que a utilidade das novas ferramentas vai sendo reconhecida entre as divisões municipais – e a pandemia deu uma ajuda nesse sentido –, a experiência destas duas autarquias portuguesas mostra como os silos acabam por se quebrar, pelo menos, naquilo que é a relação com estas equipas. “O nosso gabinete é transversal, trabalhamos com todos – somos um prestador de serviços interno para a analítica de dados, a sensorização, etc.”, admite João Tremoceiro, destacando que os serviços de analítica desenvolvidos pela Oficina de Dados resultam de problemas concretos que são colocados pelos serviços municipais. “Por vezes, a grande dificuldade está na possibilidade de serviços que estão afogados numa rotina muito grande e pesada terem o espaço e o tempo suficientes para começarem a usar outras ferramentas que exigem uma aprendizagem, uma disponibilidade, mas é um processo que cada vez mais se está a espalhar”.

Nenhum projecto de inteligência territorial começa e acaba apenas nestas divisões, garantem os responsáveis. “Não compramos um semáforo inteligente só porque ele existe (…) nós temos de responder, facilitar e alterar projectos de outras áreas, não os impomos, mas avançamos com potencialidades e soluções desde que enquadradas na estratégia global da CM”, esclarece Marco Espinheira. Fazer o contrário comprometeria, até, a sustentabilidade das acções, considera, por sua vez, João Tremoceiro – “para passarem à fase de produção, os projectos têm de ficar agarrados a algum serviço, que terá de arranjar capacidade para o sustentar ao longo do tempo – seja contratando fora, seja qualificando as pessoas que tem”.

CONSELHO DE CIDADÃOS E VOLUNTARIADO DE DADOS
São dois projectos que a CM Cascais está a desenvolver. O primeiro consiste num conselho consultivo de cidadãos que vai avaliar as propostas de uso de novas tecnologias no município, e o segundo permite às pessoas cederem voluntariamente os seus dados para iniciativas relevantes da autarquia.

Recursos e competências: precisam-se!

Inovação tecnológica pressupõe novas competências e essa é uma das grandes dificuldades que os municípios encontram quando decidem implementar um projecto smart ou de base digital. “Por muito que as pessoas se requalifiquem e façam formação, nós precisamos de know-how que não existe normalmente nestas organizações”, lamenta Marco Espinheira. Analistas de dados, developers na área da inteligência artificial, da robotização ou machine learning – tudo isto são competências escassas e este é um problema do mercado “em absoluto”, diz o gestor, mas que “se torna ainda mais evidente no sector público, que manifestamente não tem condições para atrair talento”.

Segundo João Tremoceiro, em Lisboa, “por vezes, o problema não é tecnológico, mas de mudança nos processos de trabalho”. Há que “ir ao mercado quando é necessário”, mas a dificuldade em contratar recursos é uma realidade e, por isso, a equipa da PGIUL assume a tarefa e “tenta facilitar o percurso daqueles que [internamente] querem começar a usar os dados”. A PGIL e ferramentas como a PowerBI deram uma ajuda, permitindo um acesso fácil. “As pessoas acedem com dashboards já desenvolvidos [por nós] para elas, personalizados às necessidades dos serviços, não precisam de saber nada de especial”, conta. Além disso, a CML encontrou uma outra ajuda no Laboratório de Dados Urbanos de Lisboa, uma parceria com 13 entidades, na maioria universidades, às quais se lançam problemas da cidade com o objectivo de testar soluções e “facilitar o percurso de ideias que possam, depois, entrar em produção”.

No que se refere às ferramentas, João Tremoceiro destaca ainda importância de usar uma única plataforma agregadora. “Os serviços necessitam de plataformas que integrem dados e não é viável que cada serviço tenha a sua plataformazinha”. Nesta matéria, cabe à autarquia ser pró-activa, na medida em que tem de impor às empresas com quem trabalha como os dados lhe devem ser entregues, criando uma API padrão. “Quando estes projectos começam a escalar, precisamos destas coisas, caso contrário, vamos ter os municípios inundados de plataformas e os dados nunca vão ser trabalhados, limitando-se o inteligente a ter dashboards para ver umas coisas”, explica.

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Plataforma de Gestão Inteligente de Lisboa.

Nesta transformação, não há dúvida de que são precisos analistas de dados, mas, para Bas Boorsma, faz falta também “pessoas que tenham estudado filosofia, sociologia, etc., e que saibam como aplicar design thinking, que compreendam os problemas e sejam capazes de trabalhar com pessoas, que sejam empáticas e que realmente escutem e sintam”. Para o especialista, combinar estas competências com IT é uma aposta ganha e não se trata apenas de multidisciplinaridade, mas, acima de tudo, de interdisciplinaridade.

Aqueles que levam isto para a frente

Apesar dos desafios neste “caminho de pedras”, Lisboa e Cascais são hoje referência no uso das novas tecnologias ao serviço dos cidadãos e, do percurso feito até aqui, há lições que se podem retirar, como a importância de ter equipas dedicadas, mesmo que a disponibilidade de recursos seja uma eterna batalha. Por esse motivo, diz João Tremoceiro, a liderança é “fundamental”, mesmo que o caminho da transição digital seja inevitável. “É sempre bom existir essa pessoa que puxa a carroça; não é que as coisas não se façam [sem ela], mas facilita muito.

A mudança leva tempo e é complexa, mas Bas Boorsma está também convicto de que “é possível engajar as pessoas e orientar as agendas de inovação em diferentes sentidos”. No seu papel de CDO de Roterdão, “precisa de estar fora o mais possível, trabalhar com a academia, garantir que os laboratórios vivos e as start-ups da cidade trabalham em conjunto” e só assim se consegue que a inovação realmente aconteça. Boorsma garante que “é preciso um CDO, mas são precisas também excelentes equipas que colaborem bem e de forma inteligente”, e deixa um último alerta: “não façam dos reguladores inimigos ao perguntar-lhes a opinião sobre o vosso projecto quando é já demasiado tarde; envolvam-nos logo de início e perguntem-lhes como pode ser feito”.

Neste processo, Marco Espinheira realça a capacidade “ambidestra” que uma autarquia deve ter, isto é, “ter uma mão na gestão corrente e na solução de problemas, e tentar perceber qual o caminho e se a organização está adequada aos tempos que aí vêm”. Como é que o director de futuro de Cascais contribui para isso? O gestor revela que há três áreas “que são forças de transformação e de pressão sobre a natureza de uma comunidade” às quais está particularmente atento – a evolução política do mundo (a chamada policy), as mudanças nas áreas mais humanísticas (filosofia, cultura, arte, etc.) e o progresso tecnológico.

REDE LORA
Lisboa está, neste momento, totalmente coberta por uma rede LoRa, wireless, aberta e gratuita, que permite a qualquer pessoa ou entidade conectar dispositivos e sensores e, desta forma, desenvolver projectos smart.

Pontos a melhorar

Olhando para o contexto nacional, o que pode ser feito para tornar esta transformação digital mais ágil para as equipas de inteligência territorial? A capacidade de atrair talento para a Função Pública é um problema que, para Marco Espinheira, é de urgente resolução, até porque há ameaças à espreita. “O aumento da pressão da tecnologia nas estruturas públicas, a começar pelos municípios, vai trazer problemas sérios, por exemplo, com o cibercrime”.

Além disso, o gestor defende a criação de uma “orientação ou regulamentação nacional específica para a partilha de dados”, nomeadamente entre o sector público.“Não é lógico que haja dados sobre Cascais fechados num ministério qualquer e aos quais não podemos aceder. Esse regulamento deve existir o mais depressa possível e deve ser uma ferramenta que nos permita ir buscar dados sobre o território de que precisamos para o promover e pensar melhor, e para aplicar esse conhecimento em benefício dos cidadãos cascalenses”.

Este é também um tema prioritário para o responsável da PGIUL, que destaca a necessidade da partilha de dados, em particular entre os municípios, até porque há temas, como a mobilidade, que não se podem estudar usando só dados de Lisboa, sublinha. Para a Estratégia Nacional de Smart Cities, que está em preparação, João Tremoceiro tem algumas sugestões, começando pela “disponibilização de serviços em cloud para projectos que são core e que todos concordam que são essenciais”. Consciente de que nem todos os municípios têm a capacidade de implementar uma plataforma como a de Lisboa, “que tem custos financeiros e de recursos humanos elevados”, a solução passa, para este responsável, pela criação de serviços “chave-na-mão” para determinadas áreas das smart cities para as quais já “não faz sentido fazer pilotos”. A acompanhar, “uma rede LoRa nacional”, o que permitiria implementar soluções tanto nas cidades, como nas áreas mais rurais, com custos “relativamente baixos”.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 33 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2021, aqui com as devidas adaptações.