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Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.

Quando se fala em cidades inteligentes, o acesso aos dados e a gestão da informação estão sempre presentes na discussão como elementos principais. É já lugar-comum dizer-se que “os dados são o novo petróleo”. Apesar de a ideologia e a intuição política continuarem a ser os pilares na escolha das opções governativas, muitos já perceberam que os futuros modelos de governação urbana vão ter de incluir os dados no processo de tomada da decisão. Os crescentes conhecimento, exigência e escrutínio das populações tornarão cada vez mais vulneráveis e controversas todas as decisões que não sejam transparentes e suportadas em dados.

Mas, se a maioria acredita que os dados são “chaves do futuro”, certo é que há ainda muitas portas que eles não conseguem abrir. Por si só, os dados não resolvem nada. O engenho da governação inteligente é saber extrair valor desses dados para os conseguir converter em sabedoria capaz de gerar decisões tempestivas, úteis e eficientes. Os teóricos da ciência de dados chamam-lhe “modelo DIKW” (Data-Information-Knowledge-Wisdom) ou, simplesmente, “Pirâmide do Conhecimento”, e usá-la é uma arte que não está ao alcance de todos.

Outro problema dos dados é que dizem a verdade tal como ela é e não como muitos desejariam que fosse. Os dados desmentem ideias preconcebidas e são, muitas vezes, inconvenientes. Há até quem os “torture” para que confessem uma qualquer “não verdade” do seu interesse pessoal ou político. Nestes casos, a estratégia é normalmente defensiva, para tentar ofuscar, contrariar ou até moldar as verdades inoportunas aos interesses dos preconceitos e ideologias. É a velha máxima entre o copo meio vazio e o copo meio cheio!

Em breve, com a explosão do 5G, as cidades serão inundadas de dados. Como transformar esses dados em decisões políticas que melhorem a vida das pessoas é ainda um mundo desconhecido e, pior, muito pouco valorizado na discussão política. A recente campanha eleitoral foi a prova disso mesmo. O discurso político ainda é o tradicional, muito baseado em dogmas e em mensagens básicas, e poucos são aqueles que se arriscam a falar de forma diferente. Estará a próxima geração de políticos preparada para governar com dados? O certo é que vai ter de aprender a fazê-lo!

Em que medida, e nos últimos tempos, a governação baseada em dados passou a contribuir mais e mais para uma gestão equilibrada das cidades por parte dos governantes, no que diz respeito, por exemplo, às necessidades de mobilidade para ter acesso a serviços públicos?

Mas a mudança, embora seja lenta e enfrente muitos obstáculos, é irreversível, pelo que a próxima geração de decisores governativos irá ter de enfrentar uma mudança de paradigma no processo de decisão. Antes de decidir, os novos governantes vão ter de diagnosticar e preparar a informação gerada de uma forma muito diferente do que ainda se faz hoje. Ela estará ao mesmo tempo disponível para governantes, media e cidadãos, e isto muda muita coisa.

Hoje, na maioria dos casos, está ainda quase tudo por fazer. Já há quem tenha planos municipais e estratégias de “dados abertos” e até quem já tenha investido em centros de inteligência urbana, mas estas são apenas as primeiras etapas de uma longa volta velocipédica, que inclui várias etapas de montanha, entre as quais a difícil barreira da transformação da cultura organizacional e do modelo de governação. A governação assente em dados exige uma mudança para a qual muitas autarquias não estão e, muitas vezes, não querem estar preparadas. Há apenas a certeza de que a mudança vai “doer”, enfrentar muitas resistências e ter resultados demorados.

Durante a pandemia, percecionou-se, de uma maneira geral e em todo o mundo, que, sem o cruzamento de informação em grande escala, não se conseguiria obter, em tempo útil, o verdadeiro cenário da evolução pandémica por indicadores de território, mobilidade, faixas etárias, etc. Ficou claro que, no meio de excessiva excitação mediática, “fake news” e histeria coletiva – da qual o caso do papel higiénico é sintomático –, a informação era quase sempre lenta, desagregada e, sobretudo, pouco fiável. Cedo se percebeu que era quase impossível seguir as cadeias de contágio da forma tradicional, usando apenas a intuição política e as técnicas tradicionais tipo “lápis na orelha”. Vivemos momentos de permanente confusão, enormes contradições nas decisões, com avanços e recuos e excessiva prudência, nem sempre bem justificadas, até por reputados especialistas. Mesmo com muitos dados, parecia existir o caos. Perdidos nas suas próprias mensagens e receando as consequências das suas próprias decisões, muitos decisores públicos ficaram totalmente dependentes do parecer de comissões técnicas, as quais nem sempre eram concordantes e também elas dependentes das posições de terceiros.

As apps que surgiram um pouco por todo o mundo não vieram ajudar muito, dada a falta de estratégia de desenvolvimento e implementação; no nosso caso, mostrou-se ser um autêntico flop, depois de se colocarem nela enormes expectativas políticas e comunicacionais, por vezes, meramente propagandísticas. As medidas de isolamento trouxeram às pessoas e governantes que não se colocaram deliberadamente no polo “negacionista” uma genuína reflexão sobre conceitos civilizacionais importantes como a Livability (Qualidade de vida), a Workability (Capacidade de Trabalho) e a Sustainability (Sustentabilidade), que são conceitos absolutamente vitais para as cidades que se querem smart!

Em que medida, e nos últimos tempos, a governação baseada em dados passou a contribuir mais e mais para uma gestão equilibrada das cidades por parte dos governantes, no que diz respeito, por exemplo, às necessidades de mobilidade para ter acesso a serviços públicos? Ou – se quisermos olhar do outro lado do prisma – a experiência da pandemia incentivou ao tratamento tempestivo e inteligente de padrões de dados que permitissem influenciar positivamente o comportamento dos cidadãos, que os ajudassem a tomar decisões que melhorassem a sua qualidade de vida, a sua produtividade e que resultassem num impacto positivo na sustentabilidade ambiental das suas cidades?

Bem, de momento parece que não muito! Bastou o isolamento sanitário afrouxar por etapas e logo regressámos ao fim dos horários de trabalho flexível com consequentes picos de tráfego urbano, aumento de horas diárias desperdiçadas em trajetos que deviam durar muito menos tempo, emissões de gases nocivos e energia mais cara e desperdiçada devido aos congestionamentos de trânsito. Agora, até temos muito mais dados, mas continuamos ainda muito perdidos sobre como convertê-los em ação, reação, planeamento e decisão. Parece que voltámos ao início, mas com ainda mais incertezas. Faltam-nos as fases dos ovos de Colombo e das lâminas de Ockham, faltam-nos novos Eurekas!

Muitos sistemas de monitorização de informação existem a uma escala planetária, mas, na maioria das vezes, esta informação e o seu tratamento e acessibilidade ainda não chegam em tempo útil aos intervenientes da decisão, ou, então, pagam-se e são caros, não tendo real impacto positivo no nosso ecossistema específico, ou seja, na nossa cidade.

Tomando como exemplo os dados do Carbon Monitor e o ano de referência 2019, comparando com os meses homólogos de 2021, os dados de emissões de CO2 mostram fortes diferenças de comportamentos entre os grandes blocos mundiais, mas, de uma forma geral, há já vários blocos económicos com valores de emissões de CO2 acima dos pré-pandemia, com o Brasil (+20%) e a Índia (+10%) a liderarem os crescimentos no mês de agosto último (Fig. 1).

Figura 1 Evolução emissões de CO2 dos principais blocos económicos mundiais. Fonte: Carbon Monitor (www.carbonmonitor.org)

Se considerarmos um possível ecossistema numa cidade constituída por governantes, residentes, visitantes, empresas, e consequentes necessidades energéticas e impactos climáticos, estes e outros dados estão disponíveis, muitos deles de forma aberta, mas nitidamente não são conhecidos ou, pelo menos, percecionados pelos intervenientes no ecossistema, porque não estão integrados de forma inteligente. Desta maneira, governantes, cidadãos ou empresas não tomam decisões coordenadas para atingir objetivos comuns, por exemplo, a redução de emissões de gases com efeito de estufa ou o aumento da eficiência energética, ou a alteração de horários de trabalho e a definição do melhor período para fazer determinado trajeto, utilizando qual sistema de transporte.

Talvez a pandemia nos tenha incrementado as expectativas sobre o papel dos dados relativamente à mudança de paradigma que iria permitir implementar smart cities. Mas a verdade crua dos números mostra-nos já que os grandes objetivos de reformar economias com oportunidades e melhorias concretas na vida dos cidadãos não se avizinham próximos, ainda que as datas-limite do “não retorno” para o planeta se aproximem vertiginosamente. Para a sua concretização, o secretário-geral da ONU, António Guterres, continua a apelar aos governantes que ajam rapidamente à escala global. O caminho parece ser fazer coisas concretas a nível local para que tudo somado tenha impacto à escala mundial. Também na governação de dados, o think global act local é ser smart.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 33 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2021, aqui com as devidas adaptações.