O mundo está a enfrentar grandes desafios ambientais, económicos e sociais que requerem uma transformação substancial em todas as vertentes da sociedade. Estes desafios tornam-se mais evidentes e proeminentes quando estamos perante crises imprevisíveis, tal como a actual pandemia provocada pelo novo coronavírus, que já está a resultar numa adversidade acentuada. Até ao momento, a consciencialização social e um sentimento de urgência de acção relativamente a alguns dos desafios mais críticos e complexos, nomeadamente as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e o esgotamento dos recursos globais, estão amplamente generalizados.
A pandemia de Covid-19 fez com que nos voltássemos, cada vez mais, para as ferramentas digitais para trabalhar, falar com médicos e aceder a recursos governamentais locais. Na sua opinião, quais os impactos sociais e ambientais resultantes deste tipo de digitalização?
Nesta crise particular, nós, tal como muitas outras pessoas, ficamos felizes por dispor destas ferramentas e canais digitais, que nos permitem trabalhar e ficar ligados a partir de casa, usar serviços e procurar aconselhamento de médicos e, mais importante, manter-nos em contacto com a família e amigos na impossibilidade de reuniões e contactos presenciais. Ainda é muito cedo para avaliar os impactos. O que observamos é menos procura de mobilidade – significando isso menos ruído e poluição – mas, simultaneamente, uma maior procura de energia por parte de servidores e instalações digitais. Socialmente, a inexistência de interacção física, como apertos de mão, abraços, etc., é notória, mas os impactos a mais longo prazo no nosso comportamento social poderão também depender da duração das actuais restrições.
Observamos muitos exemplos bem-sucedidos de vilas e cidades em todo o mundo que estão a usar soluções smart cities para atingir objectivos de sustentabilidade. Na sua perspectiva, quais são os benefícios sociais associados à digitalização?
Para além de serviços municipais directos, que podem ser digitalizados e amplamente oferecidos como serviços on-line, ajudando as pessoas a poupar tempo e esforços de mobilidade, a recolha de dados para monitorização e fornecimento de informação em tempo real é potencialmente a vertente mais útil para os cidadãos. Esta pode variar de informação em tempo real sobre horários de transportes públicos a fornecimento de dados sobre a qualidade do ar e ruído. Pode também apoiar a redução da utilização de recursos através de sistemas de fornecimento de água e luz digitalmente controlados que influenciam o comportamento dos residentes, ou sistemas de iluminação da via pública controlados por sensores, como, por exemplo, os utilizados em Estocolmo (Suécia) e Barcelona (Espanha), contribuindo para a sustentabilidade local e segurança pública.
Outro exemplo são os semáforos inteligentes, que ajudam a optimizar o fluxo do tráfego com vista a poupar energia e reduzir as emissões, como acontece em Copenhaga (Dinamarca). Resumindo, os principais aspectos são serviços melhorados, utilização eficiente de recursos, informação para influenciar o comportamento e, por fim, mas não menos importante, a segurança pública.
A integração de tecnologias digitais na vida diária pode e deve capacitar os cidadãos. A digitalização está a ser suficientemente centrada no ser humano?
Com base na experiência dos últimos anos, a capacitação pode ter duas faces. Claramente, o fornecimento de dados relevantes em tempo real é crucial para capacitar os cidadãos na sua tomada de decisões e escolhas. Da mesma forma, serviços públicos melhores são uma mais-valia para muitas pessoas. Canais directos de feedback e comunicação para instituições, administração e políticos locais relativamente a problemas identificados, falhas e sugestões para melhorias também podem ser úteis para uma democracia viva.
No entanto, isto apenas é verdade quando baseado num conceito claro de respeito, valores democráticos e utilização responsável. Infelizmente, cada vez mais, este não parece ser o caso, resultando em desafios consideráveis para a governação pública. Por sua vez, se orientados com base na procura humana, as pessoas não devem ser forçadas à utilização de serviços e ferramentas digitais, uma vez que muitas podem ficar excluídas ou ter acesso limitado.
Não existem grandes dúvidas de que existem grandes investimentos de capital e interesses subjacentes a muitas inovações, que ainda resultam, muitas vezes, em abordagens orientadas para a oferta ao invés de orientadas pela procura ou mesmo pelas necessidades humanas. Pessoalmente, acredito que há espaço para mais procura e que as necessidades promovem uma inovação centrada no ser humano e guiada por objectivos sustentáveis e do interesse público.
“O que observamos é menos procura de mobilidade – significando isso menos ruído e poluição – mas, simultaneamente, uma maior procura de energia por parte de servidores e instalações digitais. Socialmente, a inexistência de interacção física, como apertos de mão, abraços, etc., é notória, mas os impactos a mais longo prazo no nosso comportamento social poderão também depender da duração das actuais restrições.”
Os desafios para a economia local podem ser diversos e ter origem em diferentes frentes. Quotas maiores de compras on-line podem colocar em risco lojas locais e destruir cidades do interior movimentadas. Ao mesmo tempo, a digitalização rápida de processos de produção (indústria 4.0) pode resultar numa subida do desemprego, particularmente entre trabalhadores menos qualificados, e, desta forma, causar problemas sociais. A inexistência de uma capacidade de rede de alta velocidade suficiente pode também resultar na perda de oportunidades de negócio ou inibir o crescimento adicional da economia local.
Com uma nova forma de pensar, tanto na esfera socioeconómica, como na arena do desenho urbano, será possível resolver estas questões de uma forma positiva. Com um conceito flexível para garantir um rendimento básico em momentos de desemprego e desenvolvimento e qualificação pessoal, pelo menos, temporariamente, a pressão no mercado laboral e a desigualdade social de potenciais impactos de uma maior digitalização podem ser aligeiradas.
Ao mesmo tempo, com o aumento das compras na Internet, a função de centros comerciais poderá mudar para aconselhamento do cliente, combinando a interacção pessoal com um perito de vendas com compras na Internet e serviços de entrega. Isto pode resultar numa reelaboração das cidades do interior, tornando-as em locais de lazer mais atractivos com mais infra-estruturas verdes e azuis, uma vez que será necessário menos acesso automóvel e menos espaço para armazenamento de artigos.
Quando se trata de lidar com os problemas associados à urbanização e à concepção de cidades sustentáveis e com qualidade de vida, é inquestionável que a digitalização tem um papel a desempenhar. Mas, as soluções digitais são só, por si, a resposta?
Bem, por vezes, há o perigo de a digitalização e a tecnologia se tornarem um fim por si próprias ao invés de um meio para resolver uma questão. Desta forma, uma identificação clara da questão e uma definição dos objectivos que necessitam de ser, ou devem ser, atingidos é uma pré-condição para a escolha da solução adequada. Caso contrário, muito dinheiro será desperdiçado sem um impacto ou melhoria considerável.
Outra questão recai sobre sistemas fechados de grande escala que podem facilmente conduzir a bloqueios tecnológicos que podem resultar em custos consideráveis a longo prazo. Uma boa solução é a combinação de um quadro estratégico e regulamentar bem definido, com boas soluções tecnológicas orientadas pela procura. Para além disso, soluções combinadas ou de rede de menor escala podem, por fim, ser mais resilientes do que sistemas de maior dimensão. Uma das vantagens da digitalização pode ser que o novo “grande” seja o “pequeno ligado”.