Ao fazer uso da ciência de dados e da inteligência artificial no planeamento e gestão das cidades, o projeto Urban Co-Creation Data Lab está a tornar a capital portuguesa num caso de estudo para as outras urbes europeias.

Em 2050, cerca de 75% da população ocupará os territórios das cidades. Este é um enorme desafio para as autoridades municipais, tanto no que respeita ao planeamento como à gestão das diferentes dimensões da vida na cidade. Neste sentido, o recurso à inteligência artificial (IA) por quem gere as cidades para lidar com os problemas do quotidiano, como os resíduos ou o estacionamento, tem vindo a tornar-se uma realidade cada vez mais incontornável.

Foi por isso que nasceu o projeto Urban Co-Creation Data Lab (UCD Lab), cujo objetivo principal é apoiar o planeamento e a tomada de decisão, ao nível municipal, a fim de fornecer aos cidadãos serviços de alta qualidade nas áreas de micromobilidade, gestão de resíduos, estacionamento, redução da poluição e gestão de multidões. Através da análise de dados de múltiplas fontes e formatos que enquadram os desafios que a gestão municipal enfrenta, o UCD Lab propõe-se a fornecer ferramentas que proativamente facilitem a escolha sobre as respostas a dar por quem tem competências de decisão nos municípios. O foco está na satisfação das necessidades dos cidadãos que vivem, trabalham ou visitam estes espaços, salvaguardando os princípios de sustentabilidade, inclusão, resiliência e segurança.

Num exercício de co-criação a nível europeu e cofinanciado pela União Europeia, no âmbito da Connecting Europe Facility (CEF) e com um orçamento de um milhão de euros, este projeto está a desenvolver para a cidade de Lisboa modelos preditivos baseados em algoritmos de IA e machine learning para cinco desafios da cidade.

Numa parceria entre a NOVA Information Management School (NOVA IMS), a câmara municipal de Lisboa (através do Centro de Gestão e Inteligência Urbana), a Agência para a Modernização Administrativa, a NEC Portugal e o Centro de Supercomputação de Barcelona, este projeto, que procura reunir os melhores cérebros europeus na área da analítica urbana, vai utilizar computação de alto desempenho e tirar partido da ciência dos dados e da IA para construir modelos que expliquem e identifiquem padrões visando construir modelos preditivos que melhorem os processos decisionais das autoridades urbanas. Estes modelos serão replicados e testados noutras duas cidades europeias, sendo paralelamente disponibilizados em acesso aberto.

Esta metodologia será aplicada para responder a cinco desafios que correspondem às áreas críticas na gestão municipal: a micromobilidade, os resíduos, o estacionamento, a poluição e a gestão de multidões. Cada um destes desafios terá um laboratório de dados urbanos, sendo que o trabalho desenvolvido e os resultados alcançados serão tornados públicos para que outros municípios possam tirar partido das conclusões obtidas e dos modelos construídos que procuram prever a probabilidade de se iniciar uma viagem de micromobilidade num determinado local/estação, a quantidade de lixo produzido, a ocorrência de estacionamento irregular, a propagação de poluentes em caso de acidente e a procura de transporte público quando se realiza uma corrida popular.

Gestão de resíduos: Está previsto que cada residente na cidade de Lisboa produza cerca de 0,88 kg de lixo indiferenciado por dia, com base na produção de lixo indiferenciado registado em 2019. Na imagem, as zonas com maior altura e mais esverdeadas correspondem às zonas de Lisboa onde previsivelmente ocorrerá uma maior produção de lixo indiferenciado.

Gestão de multidões: Zonas de paragens da CARRIS dentro de um buffer de 1 km a partir da rota da maratona de 2018, que se realizou a 11 de março, com a meta no Mosteiro dos Jerónimos. As zonas de paragens assinaladas correspondem a paragens onde houve, pelo menos, 20 entradas entre as 10h00 e as 10h30, sendo que os cubos mais escuros correspondem às zonas onde houve uma maior procura pelo serviço da CARRIS. As linhas em tons de vermelho correspondem aos engarrafamentos, onde é de salientar o forte congestionamento no Eixo N/S devido à mudança do início da maratona da Ponte 25 de Abril para este eixo rodoviário devido às condições climatéricas adversas.

No final do passado mês de setembro, o projeto esteve no Portugal Smart Cities Summit com uma apresentação do estado da arte dos desafios e um convite à discussão conjunta dos respetivos modelos descritivos. Este trabalho foi também apresentado em dezembro, na Conferência “ICT 2020: Leading the Digital Age”, em Colónia.

Próximos passsos

No primeiro trimestre de 2021, será lançado um convite aberto a investigadores na área da analítica urbana, de diferentes países e realidades, para que se reúnam em Lisboa e, de forma colaborativa, se alargue o trabalho já desenvolvido à comunidade científica, esperando que, dessa troca de experiências e conhecimentos, resultem melhores modelos capazes de ajudar os decisores municipais.

No final da implementação, em setembro de 2021, o UCD Lab já terá contribuído para o desenvolvimento de uma nova geração de serviços públicos no contexto de cidades inteligentes, alicerçados na ciência dos dados e na IA, que exploram instalações de supercomputação e utilizam dados públicos e privados para analisar combinações complexas de grandes conjuntos de dados em áreas de interesse público. Com isto, espera-se contribuir para uma nova geração de políticas públicas assentes no conhecimento factual da realidade e tirando partido do melhor conhecimento e tecnologia disponível.

Encontramo-nos, portanto, a dar passos concretos para materializar, numa cidade real, a criação de capacidades analíticas preditivas e prescritivas. Esta é uma realidade concreta e já não apenas um sonho ou uma ideia. Importa, aliás, ir ainda mais longe e tirar partido da ciência dos dados e da IA para, numa visão holística da cidade, antecipar as necessidades e gerir proativamente os espaços urbanos.

Parqueamento: Durante os anos de 2018 e 2019, houve cerca de 60 mil ocorrências relacionadas com estacionamento abusivo registadas pela Polícia Municipal na cidade de Lisboa. O condicionamento de acessos, impedimento de circulação e estacionamento indevido em lugares reservados representam cerca de 60% do total de ocorrências. Na imagem, as zonas em tons mais avermelhados e mais elevadas correspondem a zonas da cidade onde existe um maior registo de ocorrências relacionadas com estacionamento abusivo.

Micromobilidade: Representação das cerca de 692 000 viagens realizadas pelos utilizadores do serviço GIRA entre janeiro de 2018 e outubro de 2018. Nas estações GIRA identificadas, iniciaram-se cerca de 26% do total de viagens, representando a dimensão da esfera a quantidade de viagens iniciadas no histórico referenciado.

A micromobilidade e o estacionamento estão entre os maiores desafios que as cidades enfrentam, não só pela necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, mas também para devolver o espaço público ao cidadão. É urgente uma revolução da mobilidade nas cidades e o UCD Lab está a desenvolver modelos que identificam padrões de comportamento e as suas causas. Otimizar-se-á as infraestruturas de micromobilidade partilhada, desde a localização das estações de bicicletas partilhadas e locais de estacionamento, até a modelos de balanceamento de meios. Isto está a acontecer aqui mesmo, numa cidade do nosso país, e será replicado para o resto da Europa.

A construção da inteligência urbana é, naturalmente, um processo longo e complexo e que causa impacto de forma transversal em toda a organização das cidades. E cada cidade tem características diferentes. É, por isso mesmo, essencial criar valor na dimensão operacional da ação de cada município e criar oportunidades para se explorar o potencial da utilização da ciência dos dados e da IA no desenvolvimento de novos produtos e serviços, capazes de impactar positivamente no planeamento e gestão de serviços e infraestruturas, melhorando a qualidade de vida das pessoas. Isto porque, fundamentalmente, a inteligência urbana se constrói com as pessoas e para as pessoas.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 29 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2020, aqui com as devidas adaptações.