Por:  

Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.

Após a revolução que instaurou a democracia e a liberdade, Portugal conheceu um crescimento vibrante do associativismo de nível comunitário em resposta às enormes necessidades locais específicas de cada território. Em todo o país, surgiram associações de moradores, grupos comunitários, coletividades desportivas, cultura, recreio e outras instituições diretamente ligadas à economia social que asseguraram respostas ou soluções complementares à então curta oferta do Estado. A proximidade era o fator de convergência comunitária e o bairro o motor de envolvimento social e participação cívica. A vizinhança estava no primeiro círculo de amizades e de interação social e os espaços de fruição comuns eram os pontos de encontro que envolviam e mobilizavam as pessoas para a construção conjunta de soluções de benefício coletivo. Para muitas pessoas, o bairro era a sua segunda família e a sua mundividência. Estes movimentos cívicos foram um fator importante no desenvolvimento e na redução de muitas das profundas assimetrias locais que advinham do passado.

Nas últimas décadas, estes movimentos têm vindo a perder força, influência e importância mobilizadora, em particular nos grandes centros urbanos. Hoje, a proximidade não é fator de participação cívica e envolvimento dos cidadãos. A Internet, a digitalização da sociedade e o aumento do rendimento disponível das famílias eliminaram muitas das tradicionais barreiras da distância física e trouxeram novos hábitos, gostos e preocupações. Como consequência, a ligação emocional aos territórios e à cultura de bairro perdeu importância para causas mais setoriais e para outras formas de participação cívica globalizada.

O conceito de comunidade mudou e muitos bairros são dormitórios com reduzida dinâmica de participação cívica e com um desenho muito formatado por conceitos gerados em gabinetes de planeamento urbano, mas nem sempre adequado às necessidades intrínsecas de quem neles habita.

Mas será este caminho irreversível? Pensamos que não. Há uma nova e até imperativa oportunidade para recuperar novas dinâmicas e vivências dos bairros e comunidades locais. Mais do que colmatar o deficit de respostas sociais públicas, o elo recuperador do sentido de pertença e a vivência local poderão ser a convergência de esforços para alcançar os objetivos de sustentabilidade ambiental. É a emergência da economia circular, a cogeração energética, a utilização eficiente dos recursos, o desenho envolvente, coerente e sustentável do espaço público e a partilha de saberes; as influências positivas que o teletrabalho pode trazer, aumentando o tempo de permanência na habitação própria e o recurso a serviços de proximidade das nossas habitações. Ainda que por outras boas razões, será bom voltar à vida em comunidade de proximidade e valorizar coisas simples, mas muito importantes. Como dizem no marketing, é o Back to Basics.

O conceito de Bairros Sustentáveis (BS) não é novo. Algumas experiências embrionárias surgiram em comunidades de motivação ecologista e incidiam sobretudo na adoção de novos estilos de vida comunitária, menos agressivos para o ambiente ou como resposta ao aumento visível da poluição e à crise do petróleo da década de 1970. Nos últimos anos, a ciência e a certeza do aquecimento global vieram acelerar a urgência do tema, debatido cada vez mais nas estratégias de planeamento urbano. Não é um tema fácil, sendo cada vez mais abrangente, e não existem soluções e respostas de eficácia e adequação pré-garantidas.

Por incorporarem um conjunto de interpelações presentes nas comunidades, os bairros possuem a escala adequada para testar e adequar conceitos urbanos coerentes e sustentáveis num tempo que a urgência da descarbonização veio encurtar. Os bairros são também oportunos laboratórios vivos onde é possível testar, corrigir e avaliar a eficácia e adequação de medidas inovadoras, antes de se decidir a implementação à escala de cada comunidade e extrapolada a outros bairros semelhantes e em localidades de menor densidade populacional.

É urgente repensar a reformulação da eficiência energética do edificado atual, a incorporação local de fontes de geração de energia e a implementação de estratégias de mobilidade e da vida comunitária adequadas às diversas tipologias dos bairros existentes.

Em 2020, o Programa Ambiental das Nações Unidas apresentou um conjunto de diretrizes para abordagens estruturadas aos BS, em linha com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), mais em concreto com o 11º – Cidades e Comunidades Sustentáveis. Estas orientações assentam em três mensagens fundamentais e em seis estratégias que, combinadas, permitem um pensamento sistémico e uma abordagem holística na construção de novos BS.

Em termos estruturais, cidades sustentáveis, em contexto local, são geradas pelo desenho e utilização do espaço e pela integração de políticas socioambientais sustentáveis bairro a bairro. Cada bairro é único e diferente, mas as regulamentações e regras de incentivo são semelhantes, pelo que o estímulo à participação, envolvimento e empoderamento dos cidadãos é essencial para a construção de economias locais vibrantes, integradoras e ambientalmente harmoniosas. Neste contexto, a definição de linhas orientadoras e regulatórias pelas autoridades locais podem e devem ser o catalisador agregador da iniciativa de proprietários e residentes para um esforço concertado entre propriedade privada e os espaços públicos.

Partindo deste conceito alargado de comunidades e BS, focamo-nos agora nos designados Bairros de Energia Positiva (BEP), que são bairros que produzem a mesma ou mais energia de origem renovável do que aquela que consomem numa base anual. Trata-se de uma equação difícil e que necessita de profundas alterações comportamentais por parte dos residentes, trabalhadores e visitantes do bairro, mas também da implementação de novas soluções de eficiência energética no parque habitacional, empresarial e novas soluções de mobilidade e armazenamento de energia.

É fácil de perceber que, para fazer crescer o número de BEP, seria consideravelmente mais fácil projetá-los e construí-los de raiz a partir de um enquadramento de governação política e legal estruturada, em que estivessem contemplados aspetos de cooperação com as autoridades locais e regionais, com os devidos suportes ao planeamento estratégico e financiamento das fases de implementação. No entanto, isso não é possível. Os BEP têm de resultar da transformação passo a passo dos bairros existentes e da alteração de funcionamento atual. Para isso, é urgente repensar a reformulação da eficiência energética do edificado atual, a incorporação local de fontes de geração de energia e a implementação de estratégias de mobilidade e da vida comunitária adequadas às diversas tipologias dos bairros existentes. O parque habitacional da Europa, e particularmente de Portugal, incorpora desde edifícios históricos a lotes habitacionais mais recentes, mas pouco eficientes, que certamente não vão ser demolidos para cumprir com os novos requisitos de construção.

Há ainda que percorrer longas e variadas etapas na mudança de comportamentos de uma forma convicta e determinada. Ainda que os nossos bairros não se transformem da noite para o dia num BS ou até num BEP, podem gradualmente implementar-se medidas que, num horizonte de dez a 20 anos, os coloquem mais próximos disso. A tendência de evolução tecnológica tornará esse objetivo cada vez mais acessível e realista.

Casos de sucesso

Para que não pensemos que iniciativas deste tipo são utópicas, caras ou inviáveis porque o sentido comunitário desapareceu e as pessoas já não aderem a iniciativas deste tipo, deixamos aqui alguns exemplos de sucesso:

• Christie Walk – Adelaide, Austrália

No coração da cidade de Adelaide, há um pequeno bairro com 27 casas, chamado Christie Walk, que começou a ser construído em 2000. Com participação ativa de seus moradores durante todo o processo de planeamento e de execução, o bairro combina um grande número de tecnologias: aquecimento e energia solar, telhados verdes, sistemas de captação de água da chuva, compostagem e hortas nos jardins, nas calçadas e nos balcões e varandas das habitações. Resultados: 40% de redução no consumo de água, 60% dos resíduos reciclados e 74% das moradias consomem alimentos orgânicos;

• Bedzed – Londres, Reino Unido

Este bairro com 100 casas no sul de Londres busca criar um BEP e uma comunidade de emissão zero com elevada qualidade de vida e produção de energia. Atualmente já conseguiu resultados muito interessantes como a redução de 58% no consumo de água (em comparação com a média nacional), reciclagem de 60% dos resíduos e consumo de alimentos orgânicos em 86% das moradias;

• Vauban – Freiburg, Alemanha

Na antiga área militar de Vauban, foi construído um bairro modelo em que 40% dos aproximadamente 5000 moradores não têm carros particulares. Do total de moradias, 2000 consomem pouca energia, além de muitas gerarem a sua própria energia por meio de fontes renováveis. Cerca de 20% de toda a energia elétrica consumida pelos moradores de Vauban já é proveniente de fontes renováveis, instaladas nas moradias e lotes do bairro;

vauban, freiburg

• Living Lab – Matosinhos, Portugal

Um bairro inteligente e sustentável cresce em Matosinhos. O projeto tem impacto na mobilidade, ambiente, urbanismo e adota soluções tecnológicas, organizacionais e sociais, e insere-se no pilar da descarbonização da cidade e diminuição do consumo de energia, promovendo a mobilidade urbana sustentável.

Não queremos deixar receitas de sucesso, porque elas serão construídas progressivamente no tempo e adaptadas às tecnologias disponíveis e condições concretas de cada território (tipologia e idade da habitação, perfil dos arruamentos, quantidade e amplitude de zonas verdes, espaços públicos e até das condições climatéricas do local), mas a definição de regras é a primeira iniciativa e cabe às autoridades locais avançar, ainda que com o apoio dos programas governamentais e europeus. Fazer parte do problema significa fazer parte da solução: as cidades consomem dois terços da energia (66%) e produzem 70% das emissões de CO2. Ao criar as condições regulatórias prévias, o poder local, a comunidade residente e os investidores deverão ser as forças motrizes por detrás da criação de BEP e, consequentemente, de cidades mais eficientes e sustentáveis.

Algumas recomendações

Neste âmbito, entendemos como medidas prioritárias:

• Fazer o enquadramento legal das iniciativas para que os proprietários, investidores e comunidades dos bairros possam estruturar-se e apresentar os seus projetos;

• Definir formas de financiamento, políticas de incentivos operacionais e fiscal para os investidores, proprietários e condomínios em edificados comuns ou particulares;

• Estabelecer projetos de adequação dos espaços públicos, simultâneos e colaborativos com as iniciativas comunitárias ou de investidores e proprietários;

• Criar estruturas e gabinetes especializados e com capacidades de análise, enriquecimento e despacho em tempo útil às iniciativas apresentadas.

Mas, antes destas medidas, há um aspeto ainda mais importante: Portugal deve ter uma posição clara objetiva sobre a sua ambição estratégica para os BEP. Para já, apenas se conhecem algumas medidas de apoio financeiro que têm sido disponibilizadas pelo Fundo Ambiental, mas de natureza ainda muito escassa e pontual. As dotações orçamentais para adoção de viaturas elétricas e melhorias de eficiência energética dos edifícios rapidamente se têm esgotado e não estão a produzir efeitos estruturais.

Do lado dos objetivos para financiamento europeu, o cenário não é muito diferente. Ainda que o famoso PRR preveja aumentar os apoios à eficiência energética do edificado residencial, os conceitos de BEP ou BS não são especificamente referidos, nem se identificam medidas que venham ao encontro da implementação destas soluções de base comunitária. É um facto que o PRR ainda não foi operacionalizado em medidas concretas, mas as ausências de referências ao tema fazem antecipar a inexistência de uma estratégia ativa que incentive a iniciativa dos agentes económicos e das comunidades residentes para que se comecem a organizar no planeamento e implementação deste tipo de soluções.

É, pois, o tempo de serem as próprias pessoas a assumir e a exigir maior ambição e convergência estratégicas para iniciativas que estimulem a cooperação e vivência de base local e comunitária de valorização ambiental dos seus territórios. Terá de ser a consciência cívica a promover e pressionar as autoridades para que avancem com legislação e políticas que facilitem e acolham estas iniciativas. Se nos voltarmos a juntar para cooperarmos localmente, estaremos a dar um enorme contributo para atingirmos globalmente os objetivos de sustentabilidade. E isso é muito smart.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 31 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2021, aqui com as devidas adaptações.