Neste momento, os municípios enfrentam desafios inesperados face à pandemia de Covid-19, que acentuou muitas das fragilidades que as sociedades modernas ainda não conseguiram resolver. Esta fase será, sobretudo, um momento de viragem no que toca à construção de estratégias de desenvolvimento sustentável e de mudança em termos urbanos sem precedentes, refere o World Cities Report 2020. Perante esta complexa equação e num tempo que é de intermitência, a actual conjuntura aclarou também oportunidades, em especial para certos territórios, que, na engrenagem certa, podem ser capitalizadas de forma risonha no futuro.
Os primeiros meses de confinamento evidenciaram o impacto que uma pandemia pode ter nas dinâmicas sociais. O receio do contágio, o crescimento do teletrabalho, a súbita necessidade de mais conforto no interior das casas e a procura por mais espaço ao ar livre levaram muitos a ponderar as vantagens e desvantagens de viver na grande cidade. Mas serão esses argumentos fortes o suficiente para criar uma oportunidade para o combate ao despovoamento e a promoção de novas dinâmicas em municípios de menor dimensão?
Se, por um lado, uma baixa densidade populacional faz com que determinados territórios sejam, em teoria, menos susceptíveis ao aparecimento de um surto epidemiológico, por outro, é também sinónimo de despovoamento, abandono de terras e de uma fraca actividade económica. Este retrato – onde a pandemia funciona como factor agravante – é especialmente incisivo quando se fala dos territórios mais interiores de Portugal, que evidenciam bem os problemas de organização territorial em termos nacionais. Só em 2020, a Comissão Interministerial de Coordenação do Portugal 2020 identificou 164 municípios portugueses nesta condição, traduzindo o despovoamento e o envelhecimento populacional do interior, que continuam sem aparente solução. Tendo em conta o momento de viragem de que fala o World Cities Report 2020, impõem-se, por isso, uma reflexão sobre as oportunidades que aqui podem surgir e contrariar estas tendências.
Em entrevista, Isabel Ferreira, secretária de Estado da Valorização do Interior, sublinhou, desde logo, que este é um momento decisivo para a transição digital, que, ao trazer novas dinâmicas de trabalho à distância, pode tornar-se num factor vantajoso para atrair mais população até certos territórios. A mesma população que, por força do turismo, ficou, nos últimos meses, a conhecer melhor os territórios do interior e as suas qualidades. “O que aconteceu com a pandemia foi que muitos portugueses que não conheciam tão bem os territórios do interior começaram a ter essa oportunidade e a optar por estes, nomeadamente para as suas férias, onde puderam conhecer todas as suas vantagens”, realça, defendendo que isso pode constituir-se como oportunidade para atrair mais pessoas para estes locais, quer através do turismo, quer das dinâmicas de criação de emprego.
Para a governante, a diversidade destes territórios é fundamental para os produtos e experiências diferenciadas que podem oferecer, mas aos quais falta, no entanto, “imprimir dinâmicas empreendedoras e empresariais”. Álvaro Domingues, geógrafo e docente da Universidade do Porto, corrobora esta perspectiva, realçando como a falta de homogeneidade pode funcionar a favor da atractividade desses territórios. “Não podemos falar desse modo homogéneo, debitando receitas genéricas, para algo cujo potencial maior é a diversidade. É nisso que falham as políticas regionais que se baseiam nos discursos da descentralização e do wishful thinking. A sociedade é muito mais complexa do que isso e temos de olhar para este país que tem na sua diversidade uma das suas principais fontes de riqueza”, sustenta.
Incubadoras e espaços de cowork como plataformas para a transição digital
A tendência crescente do teletrabalho e dos designados nómadas digitais é hoje um factor que pode contribuir para uma maior fixação de pessoas nas regiões menos populosas, tal como defende a secretária de Estado da Valorização do Interior. Os exemplos dessa postura já se faziam sentir, mas, com a pandemia, ganharam novo fôlego. Foi isso que serviu de mote para a criação da Rural Move, uma iniciativa colaborativa nascida no final do período de confinamento de Março de 2020. Reunindo pessoas “interessadas em ajudar a resolver os problemas de despovoamento do interior de Portugal” e analisando o acentuar da tendência de teletrabalho, foi decidido que a plataforma iria incidir no trabalho remoto como valência que ajude a solucionar os problemas destes territórios.
“Todos aqueles que se pretenderem mudar para o interior (portugueses ou estrangeiros) têm apenas de se registar na mesma”, sendo posteriormente contactados por voluntários da iniciativa, que tem como objectivo aferir as necessidades e apoiar cada um desses potenciais rural movers”, explica Fernando Beleza, um dos responsáveis pela plataforma. Até Novembro passado, a Rural Move já recebeu pedidos de cerca de 90 trabalhadores, nacionais e estrangeiros, que manifestaram o seu interesse em se mudar para o interior de Portugal.

Penela é um dos municípios que colabora com a plataforma Rural Move.
Além disso, Fernando Beleza avança ainda que se encontram a desenvolver projectos piloto com três municípios: Miranda do Douro, Penela e São João da Pesqueira. “Nesses municípios, vamos ajudar na dinamização ou criação de espaços de coworking e vamos apoiá-los no desenvolvimento de melhores condições de acolhimento e atractividade para os trabalhadores remotos”, aos quais “será prestado apoio na escolha da localidade, no arrendamento ou compra de habitação, na integração na comunidade e terão ainda direito a acesso gratuito a um espaço de coworking”, sintetiza.
Outra das iniciativas que se tem destacado no trabalho feito nas zonas de baixa densidade do Algarve é a cooperativa QRER, criada na sequência de uma acção piloto de intervenção territorial, o projecto Querença, que decorreu em 2011. A cooperativa resultou no nascimento de várias iniciativas empresariais, contando hoje com cerca de 18 membros, motivados pela “vontade comum de dinamizar os territórios de baixa densidade, de forma sustentável e harmoniosa com os valores locais”.
Mais recentemente, os responsáveis criaram também a QRIAR – Incubadora Criativa do Algarve, que, em 2019, seleccionou cerca de 20 empreendedores que pretendiam desenvolver as suas ideias na área das indústrias criativas nos concelhos de Alcoutim e de Loulé, onde estão localizados os pólos de incubação. Para os responsáveis da QRER, as zonas de baixa densidade já não apresentam actualmente um problema de falta de atractividade, até “mesmo do ponto de vista do emprego, com cada vez mais gente a desejar e a explorar o território nas suas múltiplas potencialidades e numa época em que o teletrabalho ganha terreno”.
Nesta óptica, defendem, há outros aspectos que afectam o sucesso e possível fixação a longo prazo de certos projectos. “O que é problemático é a falta de condições favoráveis a esta instalação, tais como habitação e comunicações, que dependem, em grande medida, do investimento dos municípios. Um dos maiores problemas dos municípios é que, na verdade, desconhecem a base produtiva do território, os seus recursos e, portanto, as suas potencialidades”, advogam.
A necessidade de um olhar renovado sobre os territórios
A actual conjuntura conferiu, acima de tudo, um olhar renovado sobre estes territórios por parte das pessoas que os visitaram. Mas será que essa perspectiva se mantém do lado dos municípios? Na análise de Luís Matias, presidente da câmara municipal de Penela – vila na região de Coimbra com cerca de 5500 habitantes e que colabora com a Rural Move –, a situação pandémica proporcionou “uma intuição de segurança” face aos territórios de baixa densidade. É nessa linha que as actuais circunstâncias “constituem uma oportunidade para estes territórios” já que “o fenómeno de ‘êxodo urbano’ que se verificou no período do estado de Emergência veio demonstrar que existe um conjunto de áreas de negócio que podem ser competitivas fora das áreas urbanas de maior densidade, sem prejuízo da qualidade de vida das pessoas”, defende.

Para o presidente da câmara municipal de Penela, Luís Matias, as actuais circunstâncias “constituem uma oportunidade para estes territórios”.
Aproveitar este momento vem ao encontro do trabalho que já estava a ser posto em prática em Penela. O município tem disponibilizado soluções para a instalação e crescimento das empresas, associadas a uma ampla rede de infra-estruturas tecnológicas e técnico-científicas, criadas no âmbito do Programa de Apoio ao Empreendedor. Luís Matias sublinha que essas iniciativas de dinamização e desenvolvimento da inovação empresarial “têm permitido afirmar Penela como um pólo competitivo, particularmente nos sectores estratégicos ligados à especialização territorial e aos recursos locais”. Por sua vez, a procura para instalação de novos negócios e o crescimento das empresas instaladas no concelho trouxeram um novo desafio na área da habitação. “O incentivo à fixação de famílias que beneficiam das boas condições de qualidade de vida carece de um plano de habitação municipal que teremos concluído brevemente com o Programa Municipal de Habitação”, avança o autarca.
Outros dos municípios que se tem destacado nos últimos anos pelas dinâmicas empresariais criadas é o do Fundão, no distrito de Castelo Branco, reconhecido em 2019 como o mais inovador e smart do país. No final de 2019, Paulo Fernandes, presidente da câmara do Fundão, dizia à Smart Cities que o município caminhava a “passos largos para ter cerca de 700 profissionais a trabalhar” na área das tecnologias, sendo que a estratégia passava pela fixação de mais empresas deste género. Contudo, não basta criar condições para se atraírem novas empresas, é preciso também que esse know-how tenha uma valência prática na própria população. “Reforçámos as vertentes formativas, com formação avançada em bootcamps e também ao nível da formação social, no âmbito da comunidade, com a entrada dessa agenda de inovação tecnológica na educação. Somos o primeiro concelho do país que tem toda a escola pública com programação para crianças, a partir do primeiro ciclo”, sublinhou, na altura.
Crente no papel que a conectividade pode ter no futuro destas regiões, Paulo Fernandes salientou ainda a importância – em termos de gestão autárquica – de se conseguir fazer um contraponto entre as pessoas que se concentram nas grandes cidades e aquelas que “procuram um estilo de vida mais sustentável, menos pressionados, numa ecologia humana mais adequada”. “Há muita gente que procura zonas de menor densidade para desenvolver projectos tradicionais e crescer com a sua família. As duas tendências são perfeitamente compatíveis e saber jogar com elas é hoje muito importante”, sintetizou.
Abandonar o conceito de “interior”
Na visão de Álvaro Domingues, o momento que se vive poderá ser essencial na desconstrução do conceito de “interior” (ou de “territórios de baixa densidade”), sustentando que o mesmo alimenta a “lógica derrotista” que, em geral, já define o olhar (pré-concebido) sobre estes territórios. Assim sendo, e saindo das “dicotomias simplistas” fixadas na linguagem, o geógrafo vê com optimismo a chamada transição digital, que provará como o “global é apenas o local sem paredes”, ajudando a derrubar fronteiras – físicas e simbólicas – que tantas vezes persistem.
Esta perspectiva está também em linha com a estratégia defendida pela secretaria de Estado do Interior, que lançou o programa Trabalhar no Interior, de incentivo à mobilidade geográfica e à fixação de trabalhadores nestes territórios, assim como os avisos de inovação produtiva e de investigação e desenvolvimento tecnológico com uma dotação financeira específica de 30% para os territórios do interior.
Mais do que nunca, a actual conjuntura reforça a necessidade de uma tomada de estratégias mais consistentes relativamente a certos territórios e aos desafios que estes enfrentem. Posto isto, e mesmo que a pandemia possa abrir uma janela de oportunidades, deve entender-se, sublinha o autarca de Penela, que esse caminho é “estreito” e as “consequências de um processo de retoma mal conduzido poderão ser catastróficas”. Resta saber quais os resultados dessa recuperação e que futuro se poderá desenhar a partir daqui.
Shimejito: como o Fundão cativou Adriel Rodrigues
A ideia nasceu no Brasil, mas foi depois de ter vindo à Web Summit, em Portugal, que Adriel Rodrigues (à direita, na imagem com Paulo Fernandes) decidiu criar a Shimejito, uma start-up incubada no Fundão, destinada a criar um novo modelo de negócio agrícola, produzindo cogumelos localmente e de forma sustentável.
À Smart Cities, Adriel conta como, nesta região do interior, encontrou todas as características que procurava para o sucesso do projecto, entre elas uma comunidade voltada para o ecossistema empreendedor local, um espaço de coworking e fab lab, fornecedores e uma centralidade geográfica e logística com um microclima adequado. Factores decisivos para que a empresa se fixasse definitivamente no interior do país, onde o responsável encontrou um ambiente menos poluídos, mais proximidade à natureza e condições de trabalho mais dignas do que normalmente encontrava nas grandes cidades.
“Acho que todas as empresas têm a responsabilidade de apoiar comunidades que precisam de revitalização”, salienta, acrescentando que o ganho é também recíproco, uma vez que a cidade pode reter talentos, receber fundos e melhor o fluxo económico, além de “mostrar todo o seu potencial” enquanto localidade.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 29 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2020, aqui com as devidas adaptações.