Por:  

Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.

Portugal é inegavelmente um país com uma forte ligação ao mar. Com uma das maiores zonas económicas exclusivas e uma história de oito séculos moldada pela nossa relação com o oceano, é natural e até moralmente imperativo que o mar assuma um papel central e contínuo na estratégia nacional de desenvolvimento económico.

Apesar desta realidade, o contributo do mar para a economia nacional é ainda pequeno (apenas cerca de 5% do PIB e 4% do emprego do país). Talvez por isso, raramente ouvimos falar de Economia Azul e de mar no debate político. Poucos são os portugueses que compreendem e posicionam o mar como uma das prioridades onde o país deve investir. A economia do mar está ainda, essencialmente, associada aos sectores tradicionais do turismo, pescas e derivados que juntos representam mais de 97% do número de empresas e 80% do volume de negócios.

Esta realidade condiciona e limita a perceção sobre a importância do mar como opção de desenvolvimento profissional das novas gerações que encontram poucos incentivos para prosseguir os seus estudos nas áreas da economia do mar apesar de uma das maiores Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) da União Europeia (EU).

Um exemplo notável deste último ponto é a Expo 98, que ainda recordamos pelo seu enorme êxito e alcance. Este evento posicionou Portugal, e particularmente Lisboa, no centro da discussão mundial sobre o futuro dos oceanos e influenciou a ambição da visão estratégica da cidade como a “Capital Atlântica da Europa”, título que foi atribuído ao Plano Diretor Municipal aprovado em 2002.

Passadas quase três décadas, o legado da Expo 98 está essencialmente associado à modernização e transformação urbana da zona onde ocorreu, em vez de uma verdadeira transformação estrutural na forma como Lisboa se relaciona com o mar. A visão da cidade como Capital Atlântica Europeia é uma quimera.

Um exemplo mais recente de alguma tibieza foram as prioridades de investimento na candidatura ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) por financiamento europeu. Quando a primeira versão do PRR foi submetida para discussão pública, notou-se a ausência de uma estratégia nacional para o mar, que apenas incluía financiamento para pequenos objetivos nas regiões autónomas. Foi necessária uma alargada contestação no processo de consulta pública para que a economia do mar fosse também contemplada na versão final submetida a Bruxelas!

Temos por isso, uma enorme responsabilidade em aumentar a nossa capacidade inovadora e de melhorar o aproveitamento do enorme potencial que a Economia Azul poderá representar para o futuro do país e não apenas requerer mais território marítimo na nossa ZEE.

Vejamos ainda mais este ponto. Em maio de 2021, foi aprovada a Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030 (ENM) como novo instrumento que traça o rumo para as políticas do mar na próxima década, em linha com a orientação e compromissos que temos no quadro da ONU e da UE. Este plano inclui 10 objetivos de intervenção prioritárias decompostos por 185 medidas concretas, cuja execução e monitorização é acompanhada pela Direção Geral da Política do Mar (DGPM). Em termos globais é um documento com uma visão abrangente e com metas claras e ambiciosas que incluem, entre outras:

  1. 100% do espaço marítimo sob soberania e/ou jurisdição nacional seja avaliado em bom estado ambiental;
  2. aumentar em 30% o emprego e o valor acrescentado bruto (VAB) da Economia Azul nacional até 2030;
  3. Duplicar o número de participantes em atividades desportivas náutica, e o número de jovens e adultos formados com qualificações nos setores e atividades relacionados com a economia do mar.

Estamos ainda numa fase ainda inicial da execução e já com sinais contraditórios de arranque sobre que objetivos perseguir. Se a ENM foi abrangente o suficiente no seu diagnóstico ou se deveria ter contemplado outros eixos ou sido mais ambiciosa, será sempre discutível, mas é assunto encerrado e temos é que agir. É por isso fundamental um acompanhamento transparente e contínuo da evolução e da execução destas políticas, incluindo o exercício de escrutínio público aberto, como forma de responsabilização e de agilização para a correção de constrangimentos desviantes. Só assim não voltamos a incorrer nos erros do passado e a desonrarmos oportunidades que a nossa geografia nos obriga.

É louvável o esforço da DGPM em disponibilizar de forma aberta, integrada e contínua um conjunto restrito de indicadores relevantes para avaliar os resultados da política do mar, conhecidos como SEAmind, que deverão permitir facilitar o referido escrutínio público.

Como poderão as cidades portuguesas contribuir com um papel mais ativo para acelerar a concretização daqueles objetivos?

Esse imperativo é mais evidente quando consideramos que a relação entre Smart Cities e a economia azul é bastante sinérgica, especialmente em países como Portugal com uma vasta linha costeira e arquipélagos marítimos em plataforma continental alargada.

As grandes cidades em Portugal são costeiras e absorvem a quase totalidade da economia do país, já para não falar que mais de 80% da população vive na faixa litoral do território e com tendência crescente.

Se é verdade que mudanças estruturais de paradigma dependem, de investimento e iniciativas privadas, são as políticas e incentivos estruturais da responsabilidade da Administração Central, que, na maioria das vezes, ultrapassam as dimensões territoriais e cabe às cidades um papel fundamental na concretização dos objetivos para a Economia Azul.

Do ponto visto estratégico, salientamos quatro grandes dimensões:

      • Promover uma cultura marítima entre as gerações mais jovens, através de programas educativos e iniciativas de consciencialização;

  • Otimizar a gestão portuária, promovendo atividades marítimas, investindo em infraestruturas modernas que estimulem o acesso a atividades recreativas e económicas sustentáveis;
  • Estimular o empreendedorismo ecológico, fornecendo incentivos e apoio para o estabelecimento e desenvolvimento de empresas inovadoras e sustentáveis na economia do mar, em áreas de maior diferenciação e valor acrescentado para os territórios;
  • Facilitar parcerias estratégicas, dentro das cidades e entre diferentes regiões e entidades, incluído o sistema científico nacional e as autoridades marítimas, para promover a colaboração em projetos marítimos de grande escala e definição de estratégias e planos de ação conjuntos, acelerando a eficácia na execução dos objetivos propostos.

Poucos são os portugueses que compreendem e posicionam o mar como uma das prioridades onde o país deve investir

Do ponto de vista mais operacional, transformar as nossas cidades costeiras em verdadeiras Smart Cities, permitirá também integrar tecnologias e soluções inovadoras, capazes de potenciar o desenvolvimento da Economia Azul Sustentável através de várias formas, tais como:

  • Gestão Sustentável de Recursos: As Smart Cities podem utilizar tecnologias de informação e comunicação  para melhorar a gestão  dos recursos marinhos, otimizando  a cadeia de valor e reduzindo o  desperdício.
  • Promovendo o Turismo Azul Inteligente: Através da análise de dados e conectividade, as cidades inteligentes podem criar experiências turísticas personalizadas, promovendo o turismo azul e protegendo os ecossistemas marinhos ao mesmo tempo.
  • Criando Portos e Transporte Marítimo Eficientes: A implementação de sistemas inteligentes nos portos pode aumentar a eficiência do  transporte marítimo, reduzindo o tempo de espera e otimizando as rotas logísticas, e reduzindo o impacto ambiental da poluição provocada pelos grandes cargueiros e navios de cruzeiro.
  • Investindo em Energias Renováveis ligadas ao Mar: As Smart Cities podem liderar na implementação de projetos de energias renováveis no mar, como a energia eólica offshore já bem conhecida, ou investindo em novas soluções como a energia das marés e das ondas, contribuindo para uma matriz  energética diversa, mais limpa e sustentável.
  • Investindo em Inovação e Investigação para Proteger as Zonas Costeiras (o impacto humano desregulado e as alterações climáticas  são já extraordinariamente visíveis  na costa): A colaboração entre universidades, centros de investigação e empresas tecnológicas, podem acelerar a inovação em áreas como a biotecnologia azul e  a robótica marinha, criando novas  áreas de ciência e de negócio que permitam medidas de governação  inteligente, urbanísticas, paliativas da erosão costeira e sensibilizadoras dos agentes económicos, para adotarem uma Economia  Azul e circular nas Smart Cities.

Se as metas das políticas públicas são a visão, o compromisso e vontade das  cidades são a ação. São várias as cidades  portuguesas que têm assumido  essa responsabilidade, e que importa  destacar e reconhecer.  Cidades como Aveiro e Faro têm investido  na integração das escolas técnicas  e universidades locais para promover  centros de inovação marinha,  focados no desenvolvimento sustentável da Economia Azul, e reforçar a oferta de programas de formação  profissional em áreas como engenharia naval, gestão costeira, biotecnologia marinha e turismo sustentável.

Legado da Expo 98 está associado à modernização e transformação urbana, em vez de uma verdadeira transformação estrutural na forma como Lisboa se relaciona com o mar

Cidades portuárias como Matosinhos, Vila do Conde e Sines têm  apoiado o investimento na melhoria da eficiência operacional de suas infraestruturas  portuárias, visando aumentar  sua capacidade de carga e  atrair mais atividades comerciais.

A Rede de Cidades Âncora para a  Economia Azul, liderada por Viana  do Castelo e que inclui municípios como Aveiro, Lagoa, Oeiras, Peniche, Portimão e Sines, visa promover a sustentabilidade ambiental das áreas costeiras e a Economia Azul, com projetos como a aplicação da agenda urbana da Economia do Mar e a criação  de living labs azuis.

As nossas regiões autónomas têm  apostado na preservação da biodiversidade  marinha e no turismo ambiental  para a promoção da Economia Azul.  No entanto, apostas pontuais, não escrutinadas ou seguidas de forma transparente para além dos mandatos políticos, correm o risco de frustrar e desacreditar os agentes económicos no seu compromisso com a Economia Azul. Além disso, é fundamental implementar por fases que possibilitem fazer correções à medida que se implementa e até evoluir para níveis de ambição superiores.

Um exemplo de dinâmica negativa que conhecemos, aconteceu com os  Clubes de Mar em Lisboa. Em 2013,  o então presidente lisboeta António  Costa, numa reflexão estratégica para a cidade, destacava a importância de promover o acesso ao Tejo e impulsionar os desportos náuticos como pilares fundamentais para reposicionar Lisboa como Capital Europeia do Atlântico. Consequentes a  essa visão, em 2015 colaborámos com todos os clubes náuticos da cidade,  para lançar o programa municipal  “Clubes de Mar”. O programa oferecia  acesso gratuito à prática de modalidades náuticas no rio Tejo a alunos  do 2.º ciclo. Inicialmente foi um sucesso, em apenas dois anos, cerca de 1500 jovens da cidade tiveram a oportunidade de vivenciar experiências  náuticas, em aulas certificadas ao longo de várias semanas. No entanto, logo se tornou evidente que o  programa enfrentava desafios significativos  para se expandir no futuro. Apesar do empenho e competência  dos clubes náuticos, o crescimento  do programa foi limitado pela falta de formadores qualificados e dificuldades de acesso de embarcações ao Tejo. Esses obstáculos criaram um círculo vicioso, que impossibilitou a expansão do programa.

Se as metas das políticas públicas representam  a visão, o compromisso e  a ação das cidades são a chave para transformar essa visão em realidade. É essencial que boas medidas implementadas, sejam sustentadas e monitorizadas ao longo do tempo e que sejam parte integrante de uma estratégia  consistente, inteligente e de longo prazo.

Apenas com abordagens concertadas,  persistentes e responsáveis, as nossas cidades costeiras conseguirão tornar-se catalisadores na concretização dos objetivos da ENM. Em última análise, apostas em iniciativas pontuais ou tradicionais dificilmente superam barreiras e mudam paradigmas!… e isso não é Smart!

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 43 da Smart Cities – abril/maio/junho 2024, aqui com as devidas adaptações.