Através do projecto CIRCULAR BIOCARBON, várias cidades vão valorizar as suas águas residuais através da implementação de uma biorrefinaria integrada.
Na linha de frente das políticas e estratégias de governança, as cidades são peças importantes no desafio de melhorar os processos hídricos. Como parte do trabalho da rede ICLEI ‒ Governos Locais para a Sustentabilidade, Saragoça (Espanha) e Sesto San Giovanni (Itália) implementam o projecto CIRCULAR BIOCARBON, com vista a reciclar o lodo de esgoto resultante do tratamento de águas residuais e a fracção orgânica dos resíduos sólidos urbanos (FORSU) através de uma biorrefinaria integrada. O objectivo é transformá-los em produtos de alto valor agregado para indústrias e consumidores finais, incluindo a agricultura.
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Mundial da Água da Organização das Nações Unidas de 2017, cerca de 80% das águas residuais do mundo são libertadas no meio ambiente sem tratamento. Mudando a percepção de “resíduos como um problema” para “resíduos como recursos”, a biorrefinaria utiliza tecnologias em cascata inovadoras para capturar materiais valiosos presentes nas águas residuais e aumentar a resiliência hídrica das cidades, uma vez que melhora a qualidade da água efluente a ser devolvida ao meio ambiente.
Para o coordenador de resiliência urbana do ICLEI, Vasileios Latinos, o ciclo urbano da água está entre as dimensões mais críticas para a construção da resiliência urbana e regional. “Ao usar sistemas circulares, os municípios aumentam a capacidade de gerir e construir resiliência hídrica urbana, ao mesmo tempo que lidam com choques e stress relacionados com a água, como, por exemplo, reutilizar a água de inundações repentinas para irrigação em regiões com escassez de chuva. No entanto, para que um sistema circular de água seja bem-sucedido, uma cidade precisa de adoptar e apresentar os princípios de inclusão e integração para alcançar a máxima resiliência”, explica Vasileios.
A gestora italiana de águas Grupo CAP é o parceiro responsável pela biorrefinaria em Sesto San Giovanni. Para Marco Bernardi, director de Investigação, Inovação e Industrialização, tratar grandes quantidades de águas residuais significa percorrer todos os caminhos para evitar possíveis contaminações.
“O CIRCULAR BIOCARBON vai garantir não só a implementação de todas as medidas necessárias para garantir que a água devolvida ao ambiente cumpra os mais elevados padrões para reutilização e integração no ciclo urbano da água, mas também a recuperação de preciosos nutrientes de maneira sustentável”, explica.
Além disso, o modelo CIRCULAR BIOCARBON torna a gestão de resíduos orgânicos mais fácil e mais rentável para os municípios. “Ao redesenhar e actualizar os processos de tratamento e ao implementar as tecnologias mais avançadas, economias de custos ajudarão a reduzir a conta de água para os cidadãos e a fazer investimentos no serviço integrado de água, como novas tubagens de água ou esgoto”, acrescentou o responsável.
Com financiamento da Empresa Comum para uma Europa Circular de Base Biológica (CBE JU), o CIRCULAR BIOCARBON teve início em Junho de 2021 e é implementado por um consórcio de 11 parceiros de cinco países europeus (Espanha, França, Alemanha, Dinamarca e Itália), com coordenação do gestor espanhol de resíduos URBASER.
O papel das águas residuais
O tratamento das águas residuais passa por várias etapas, incluindo separação de fases, processos biológicos e químicos, e ainda um tratamento terciário focado, por exemplo, na remoção de poluentes. Após todas as fases, obtém-se o lodo de esgoto, um resíduo sólido não perigoso e não inerte.
Esse subproduto contém metais pesados e patógenos, como vírus e bactérias, mas também matéria orgânica valiosa e nutrientes, como nitrogénio e fósforo, que, embora essenciais para o crescimento, podem levar à criação de formas de vida indesejadas se despejados no meio aquático, além de poluírem os aquíferos quando descartados em quantidades excessivas no solo.
De acordo com dados mais recentes da Comissão Europeia, a Europa gera anualmente cerca de dez milhões de toneladas de sólidos secos de lodo de esgoto. Ao oferecer uma alternativa de destino para o resíduo sólido, o CIRCULAR BIOCARBON valoriza o lodo de esgoto como recurso, aumenta a oferta de água limpa e garante um meio ambiente mais saudável.
Ao tratar o logo de esgoto e a FORSU de forma integrada, a biorrefinaria aproveita todos os tipos de materiais presentes nos biorresíduos, tornando-os adequados para a digestão anaeróbia e melhorando o desempenho e a qualidade geral da matéria-prima. “Tratar esses dois fluxos juntos tem muitas vantagens, não apenas pelos benefícios conjuntos em termos de adição de nutrientes e de estrutura, mas também pelos custos de investimento mais baixos, pois apenas uma fábrica tem de ser construída, em vez de duas”, complementa Marco.
No CIRCULAR BIOCARBON, o lodo de esgoto será fornecido pela gestora espanhola de águas residuais SOCAMEX através de contratos com os responsáveis das Estações de Tratamento de Esgoto.
“Estamos a finalizar o projecto da biorrefinaria para decidir todos os elementos. Um dos passos é completar a análise de todos os fluxos que entram e saem da biorrefinaria para analisar se há microrganismos, metais, etc. Assim, podemos ter uma ideia dos valores dos parâmetros e projectar ou adaptar as tecnologias a serem utilizadas para remover a microbiologia ou reduzir o teor de metais pesados ou substâncias nocivas”, explicou a gerente de projectos da SOCAMEX, Yolanda Ballesteros.
A Biorrefinaria
Tradicionalmente, os diferentes tipos de resíduos orgânicos produzidos nas cidades são tratados de forma separada seguindo modelos lineares. Com o objectivo de transformar esse ciclo num processo resiliente e circular, o modelo da biorrefinaria vai da simples gestão de resíduos e águas residuais para a produção de materiais, apoiando as indústrias na transição para a base biológica.
Nessa transição, são produzidos produtos finais comercializáveis, substituindo produtos de base fóssil ou reduzindo a dependência das indústrias de fontes não renováveis. Como resultado, as estações de tratamento de resíduos urbanos transformar-se-ão em biorrefinarias, gerando novas fontes de rendimento a partir da recolha, da gestão e do tratamento. “As Estações de Tratamento de Águas Residuais têm de mudar para um novo paradigma, deixando de ser simples instalações para serem vistas como instrumentos para a obtenção de novos materiais, apostando nos modelos de gestão”, defende Yolanda Ballesteros.
Além disso, a biorrefinaria CIRCULAR BIOCARBON visa produzir filmes biodegradáveis de cobertura de solo agrícola e fertilizantes de base biológica, apoiando o avanço do sector primário rumo à economia circular e à sustentabilidade. “Os produtos de altíssima qualidade terão a base biológica como uma alternativa ‘mais verde’ em relação aos fertilizantes químicos actuais, e poderão ser totalmente personalizados, de acordo com as necessidades específicas das culturas em cada localidade”, explica a coordenadora do projecto, Natália Alfaro.
A biorrefinaria integrada deve actuar em escala comercial totalmente operacional, oferecendo resultados finais que possam ser replicados noutras cidades. “Os parceiros industriais são fundamentais, pois são o contacto final do projecto com o mercado e aqueles que têm capacidade de colocar os produtos gerados na biorrefinaria na cadeia de consumo. As indústrias de base biológica fazem parte da solução para as mudanças climáticas e a biorrefinaria contribuirá para fornecer biomateriais às indústrias, colaborando na transição para serem mais ‘bio’”, conclui a responsável.
Para mais informações sobre o CIRCULAR BIOCARBON, clique aqui.
A publicação deste artigo faz parte de uma parceria entre a Smart Cities e o ICLEI – Local Governments for Sustainability, e foi originalmente publicado na edição de Outubro/Novembro/Dezembro de 2022 da Smart Cities.