A hospitalidade, o cuidado e o vagar são características intrínsecas de Évora, Capital Europeia da Cultura em 2027, que poderá estar a caminho da 2ª Ruralidade. Das condições para esta transição vai depender o futuro de um território singular.
A candidatura de Évora a Capital Europeia da Cultura, CEC 2027, foi baseada no lema “esse vagar que leva longe a arte da nossa existência”. Ao ler os termos da candidatura, estou cada vez mais convencido de que ela está muito em linha com os princípios que enunciei a propósito da transição para a 2ª Ruralidade (Covas e Covas, 2012), os quais, inspirados pelo pensamento do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, poderia sintetizar do seguinte modo: a 2ª Ruralidade adotará o continuum natural e cultural como princípio necessário para recriar a unidade da urbe-ager-saltus-silva, isto é, a integração da natureza na cultura em ordem a um urbanismo de base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulam com o fácies edificado da cidade.
Só agora, porém, começa verdadeiramente a grande aventura de Évora CEC 2027. Daqui até 2027 Évora pode criar as condições para ser a primeira cidade a entrar no universo da 2ª Ruralidade, um universo onde a natureza e a cultura se fundem harmoniosamente e onde a hospitalidade, o cuidado e o vagar são os recursos primordiais no que diz respeito à arte da nossa existência. Vejamos alguns aspetos dessa transição primordial em direção a uma outra biopolítica do território.

INSTANTE CONTEMPORÂNEO E TEMPO LENTO DAS ARTES
Nesta era da instantaneidade contemporânea, os transportes, as transmissões, as tecnologias fizeram encolher o mundo em que vivemos, que se tornou plano, um campo imenso de observação e vigilância, onde emergem os não-lugares, a identidade dá lugar à rastreabilidade e a minha liberdade se mede por um simples desvio-padrão.
Porém, e apesar de estarmos a migrar para o ciberespaço, ainda não é o fim da geografia. É certo: a globalização gera um sentimento de claustrofobia da humanidade, a Terra é muito pequena para a revolução das telecomunicações, mas nós também continuamos a viver de muitas e variadas distâncias. É aqui que entram as artes e a cultura que introduzem distância e duração, tempo longo, em especial, o teatro e a dança, as duas artes do corpo por excelência e duas linhas principais de resistência à virtualização.
Todavia, se pensarmos na arte digital e nos conteúdos que ela produz, podemos concluir que a tecnologia se prepara para cruzar o caminho da arte e da cultura tornando-as mais exuberantes e mais efémeras, digamos, mais arte pública destinada a ser consumida no espaço público. Talvez por isso possamos dizer que, no plano cultural, vivemos uma espécie de desconstrução da cultura geral devido à alucinação vertiginosa e à loucura da informação, que nos coloca, qual dilema do prisioneiro, nas teias do imediatismo e do mediatismo, uma espécie de campo de batalha onde o verdadeiro e o falso se confundem e nos roubam a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos. Por isso, siga o nosso conselho e faça da sua vida uma obra de arte, tanto quanto possível.
CICLOS DE VIDA DOS TERRITÓRIOS E SISTEMAS TERRITORIAIS
No tempo que corre, vivemos, hoje, um movimento permanente de dissolução e recreação de sentido, em que o espaço é uma sucessão interminável de formas e conteúdos, produzidos e reproduzidos continuadamente. Entre os fatores que contribuem para essa dissolução e recreação de sentido contam-se a crescente artificialização das cadeias agroalimentares, a crescente mobilidade dos fatores, a investigação dominante que nem sempre acautela a regeneração dos recursos naturais, a incultura sobre os recursos identitários e simbólicos de um território, que danifica a estrutura de oportunidades desse território, e, por fim, o excesso de zelo regulamentar e administrativo face às micro e pequenas empresas, que acaba por destruir território e pequenos negócios.
Apesar de todas as dificuldades referidas, ou talvez por causa delas, continuo a acreditar que o campo das possibilidades do mundo rural não se reduziu. De um lado, a polissemia dos territórios será cada vez mais tributária da aleatoriedade da natureza, do outro, a liberdade humana continuará, como sempre, muito criativa; logo, estas duas “contingências” podem ser muito úteis para o desenho e para a gestão de sistemas territoriais complexos e inteligentes no próximo futuro.
Já conhecemos os quatro elementos que estruturam um sistema territorial: as unidades de paisagem (UP) como elementos da paisagem global, os sistemas produtivos locais (SPL) como elementos da economia do território, os sinais distintivos territoriais (SDT) como elementos do sistema sociocultural, e os modos de governança local (MGL) como elementos do sistema político-institucional (Covas e Covas, 2012: 25). Os sistemas territoriais são complexos [em termos] de vida, história e geografia, resilientes à homogeneização do mundo-plano, onde ainda é possível descortinar uma inteligência territorial remanescente e onde ainda se respiram o espírito e o génio dos lugares. Os sistemas territoriais são, ainda, pequenos laboratórios de construção de novas territorialidades onde, lentamente, se recuperam o capital natural e o capital social e se desperta a inteligência territorial adormecida dos lugares. Trata-se de respeitar e instigar a pluralidade e a diversidade das formas de vida do mundo rural onde uma outra ruralidade também já se anuncia [o seguinte]:
• O resgate das agriculturas de época, que é, também, o resgate das agriculturas de proximidade e da denominada “agricultura acompanhada pela comunidade”;
• O resgate das agriculturas alternativas, de diferentes lógicas e sistemas de agricultura, desde a agricultura biológica, até uma tipologia muito variada que inclui a proteção integrada e a produção integrada, a permacultura e outras “agriculturas naturais”;
• O resgate das agriculturas urbanas, por exemplo, a pequena horta social, os circuitos curtos e as formas mais sofisticadas de “agricultura vertical”;
• A modernização ecológica dos sistemas especializados de agricultura convencional, em direção aos princípios fundadores da agroecologia, um contributo decisivo para o reconhecimento do conceito de região biogeográfica;
• A diversificação das formas de agricultura multifuncional, na linha de um certo metabolismo e organicismo dos territórios, que é uma corrente de ar fresco na teoria do desenvolvimento rural e, também, um contributo decisivo para o desenvolvimento do conceito de região biogeográfica;
• O reconhecimento por parte da nova PAC [Política Agrícola Comum] de uma economia da biodiversidade e dos ecossistemas onde se inclui uma nova geração de bens públicos rurais, tais como infraestruturas verdes, corredores ecológicos, equipamentos agroecológicos e ecossistémicos e pagamentos por serviços de mérito prestados, sendo mais uma revelação da biopolítica que informa a região biogeográfica;
• O reconhecimento de outros formatos socioinstitucionais, como a economia dos contratos, das convenções, dos clubes e das formas de governança dedicadas, assim como o papel nuclear dos atores-rede no quadro dos futuros territórios-rede;
• Finalmente, o novo contrato social com o mundo rural dará um lugar destacado ao sistema-paisagem, à região-cidade e à estrutura ecológica local tendo em vista um planeamento de base regional onde fazem sentido conceitos como plano verde, reserva estratégica alimentar e mercados de proximidade. Dito isto, a pluralidade de racionalidades territoriais será uma evidência crescente e é sobre elas que se construirá a inteligência territorial dos futuros territórios-rede, uma vez que as economias de rede e aglomeração que se formam em seu redor constituem ativos inestimáveis para a malha colaborativa desses territórios.
Dito isto, a pluralidade de racionalidades territoriais será uma evidência crescente e é sobre elas que se construirá a inteligência territorial dos futuros territórios-rede, uma vez que as economias de rede e aglomeração que se formam em seu redor constituem ativos inestimáveis para a malha colaborativa desses territórios.
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS DA 2ª RURALIDADE
Não podemos afirmar que existe um movimento da 2ª Ruralidade. Essa afirmação não seria verdadeira. Um movimento supõe uma organização acreditada e um plano de ação com um mínimo de notoriedade. Não obstante, Évora CEC 2027 poderia seguir essa linha de rumo e ser o líder dessa Grande Transição, tanto mais quanto, à luz dos grandes problemas globais que afetam a nossa civilização e a nossa cultura, há uma
estruturação do pensamento que se encaminha, cada vez mais, para uma nova biopolítica da vida. É sobre este imperativo de uma biopolítica da vida, de certa forma imposto pela emergência climática, pelo inverno demográfico, pela fragmentação dos ecossistemas e pela transformação digital, que repousa esta declaração de princípios da 2ª Ruralidade, que informará, estamos seguros disso, a construção social dos futuros territórios-rede. Vejamos, então, essa declaração de princípios da 2ª Ruralidade (2ª R):
• A 2ª R assentará numa geografia de sistemas territoriais complexos, de geometria variável, compostos de UP, SPL, SDT e MGL, e na produção conjunta de bens de mérito que esses sistemas forem capazes de criar e promover;
• A 2ª R assentará numa biopolítica da vida que promoverá a ligação umbilical entre as ciências da natureza (o capital natural) e as ciências sociais (o capital social), numa abordagem cada vez mais próxima de uma biociência e de uma bioética;
• A 2ª R assumirá os princípios biogeográfico e socio–ecológico por via dos conceitos diretores de sistema- paisagem, plano verde, cidade-região e estrutura ecológica tendo em vista criar contextos, imagens e representações e contínuos socio-ecológicos favoráveis à integração e articulação de áreas urbanas, áreas rurais e áreas naturais;
• A 2ª R assentará num continuum de fusão entre a ecologia e a cultura, de tal modo que seja possível criar uma grande variedade de sistemas territoriais e paisagísticos, cada vez mais autónomos, autorregulados e inovadores em matéria de estrutura, cadeia de valor e modos de gestão;
• A 2ª R assumirá os princípios multifuncional e agroecológico: quanto mais um agroecossistema se parece, em termos de estrutura e função, com o ecossistema da região biogeográfica em que se encontra, maior será a probabilidade de que este agroecossistema seja sustentável e duradouro;
• A 2ª R reconhecerá o lugar central de uma nova geração de bens públicos rurais mais próxima da engenharia biofísica e da arquitetura paisagística ou, mais ainda, das diversas ecologias e biologias funcionais que contribuem para melhorar a produtividade primária das espécies e populações das nossas comunidades e dos nossos ecossistemas naturais;
• A 2ª R assentará numa nova cultura de ordenamento urbanístico com relevo para as pequenas e médias cidades do interior no que diz respeito à auto-organização e autogestão do seu sistema de recursos, sejam os subsistemas de fornecimento energético, de abastecimento de água, de aprovisionamento agroalimentar, de construção sustentável e reciclagem de resíduos;
• A 2ª R assumirá uma estética da paisagem que nos diz que os espaços verdes da cidade do século XXI não deverão ser concebidos a posteriori, por via de um mero decorativismo vegetal e que a beleza deve ser o reflexo espontâneo da boa adequação da obra ao fim proposto, como qualidade intrínseca, e não, como geralmente se supõe, em resultado de uma série de operações posteriores e, portanto, extrínsecas, chamadas embelezamento (Cabral, 2003: 40);
• A 2ª R dará prioridade elevada à edição de territórios inteligentes e criativos (TIC) em espaço rural e transformará as tecnologias da informação e comunicação (TIC) em ecossistemas territoriais inteligentes cujas energia e inteligência emocionais serão canalizadas para a criação de uma geografia desejada;
A filosofia expressa neste conjunto de princípios poderá ser transposta e observada em muitos exemplos da 2ª R: parques agroecológicos intermunicipais, infraestruturas ecológicas e corredores verdes, bacias hidrográficas e suas amenidades, áreas de paisagem protegida, zonas de intervenção florestal e áreas integradas de gestão paisagística, áreas cooperativas, áreas recreativas, pedagógicas e terapêuticas, ecossistema montado e mosaicos agro-silvo-pastoris, condomínios de aldeias, entre outros. Em cada caso, trata-se de encontrar uma metodologia experimental ajustada a cada sistema territorial e um ator-rede para a boa governança de um lugar de cocriação.
2ª RURALIDADE, VAGAR E ARTE DA NOSSA EXISTÊNCIA
Os exemplos citados anteriormente são verdadeiramente o campo de aplicação de muitos dos princípios da 2ª R onde o sistema operativo do vagar pode acontecer. Vejamos algumas características deste sistema:
• Articulação mais intensa e cuidada entre os mercados e as cadeias de valor do comércio global e a geoeconomia do sistema-paisagem e do mosaico paisagístico, com mais cidade no campo e mais campo na cidade e mais atenção aos mercados alimentares de proximidade que são acompanhados pela comunidade;
• Articulação mais intensa entre municípios em direção a uma nova geração de bens comuns intermunicipais, desde os bancos de terras e a gestão comum de baldios aos sistemas agroalimentares locais (SAL), da biodiversidade e serviços de ecossistema à gestão partilhada dos recursos hídricos, da gestão do condomínio de aldeias aos serviços itinerantes de proximidade, da gestão de resíduos à gestão 4R;
• Transição ordenada entre a paisagem urbana vertical e compactada onde reinam os imóveis e os automóveis, funcionalmente monótona e esteticamente melancólica, e os contínuos naturais e culturais, as infraestruturas ecológicas e os corredores verdes, que interagem bem com os parques urbanos multifunções e de uso múltiplo;
• Articulação mais intensa entre as ações reativas de mitigação e adaptação no combate às alterações climáticas e as boas práticas de economia circular e bioeconomia, onde se contam as ações integradas de gestão paisagística;
• Articulação e colaboração mais intensas entre as associações públicas e privadas de gestão florestal e os serviços públicos e a academia no que diz respeito ao ordenamento do minifúndio agroflorestal, à gestão do risco florestal e aos programas de silvicultura preventiva das áreas integradas de gestão paisagística (AIGP);
• Lugar especial atribuído à criação de ecossistemas inteligentes de base territorial – uma rede urbana, uma CIM ou uma instituição plataforma (politécnico ou universidade) – tendo em vista não apenas a digitalização e a “smartificação” do território, mas também a economia criativa dos lugares e dos destinos turísticos e a curadoria territorial da arte e da cultura, em especial das artes digitais no espaço público;
• Articulação muito intensa entre a assessoria privada, a diretoria dos serviços públicos e a curadoria da academia e da comunidade, no que diz respeito à transferência de valor imaterial e simbólico para as cadeias de valor com raízes nos territórios locais e regionais que, em conjunto, fazem a reputação desses territórios.
NOTAS FINAIS
No Programa Nacional de Políticas de Ordenamento do território pode ler-se que “a qualidade dos sistemas de governo e administração influencia muito a capacidade de governança dos territórios; [sendo que] três medidas são fundamentais: mais e melhor descentralização de competências, mais redes colaborativas de inovação territorial, uma outra cultura territorial de ordenamento e governação, menos administrativa e regulamentar”. No que diz respeito à descentralização de competências, está em causa, sobretudo, a introdução de sistemas de gestão partilhados, novas abordagens interinstitucionais mais flexíveis em colaboração com atores privados; os espaços de coworking e os tiers-lieux, em cooperação com os centros de investigação das universidades podem criar as redes colaborativas de inovação territorial que são necessárias. No que diz respeito à cultura territorial, é preciso evitar a descontinuação de programas e projetos e adotar uma pedagogia específica de intervenção para impedir o desperdício de recursos escassos e preciosos. Sem uma boa curadoria territorial prevalece uma lógica de digitalização-verticalização; isto quer dizer que a política de descentralização, nessa lógica vertical, ou tem meios para contornar essa orientação superior ou não será capaz de se apropriar devidamente das medidas de coesão e tanto mais quanto ela será uma variável endógena que sofre diretamente a pesada condicionalidade que decorre da governação multinível europeia. A declaração da 2ª Ruralidade pode servir, justamente, para criar uma argumentação política e justificar os meios necessários aos investimentos de uma nova geração, aproveitando o próximo período de programação para apostar em novos formatos de economia colaborativa e federalismo autárquico que tragam para o mundo rural em sentido largo um novo imaginário, uma nova geografia do desejo e mais bem-estar coletivo.
Évora CEC 2027, a região-cidade do Alentejo Central, pode ser muito bem a alavanca que fará mover todo este sistema operativo da hospitalidade, do cuidado e do vagar. Vamos assistir, até 2027, a uma dialética intensa entre o espaço de fluxos e o espaço de lugares e, em vez do mistério da melancolia do quotidiano, teremos uma crescente cacofonia, o paradoxo e o hibridismo, enfim, o ruído do quotidiano. É um momento único, pois face a face teremos o vagar e o ruído. Não nos podemos deixar seduzir pela cidade líquida onde tudo é efémero, transitório, passageiro, enfim, líquido. Não podemos permitir que Évora se converta num não-lugar ou hiper-lugar, um lugar de itinerâncias e não de substâncias. Enfim, temos de continuar a proteger os pequenos nadas que a vida ainda guarda, as micro liberdades do dia a dia entre os espaços de fluxos e os espaços de lugares, a verdadeira poesia do quotidiano e as suas revelações ou epifanias mais surpreendentes.
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