Nas últimas semanas, a pandemia de covid-19 tem posto à prova toda a sociedade. À urgência dos cuidados de saúde, juntam-se inúmeros outros desafios que, de forma transversal e global, estão a obrigar a uma resposta “sem precedentes”. Em entrevista, Miguel Eiras Antunes, global smart cities & local government leader da Deloitte, conta como a consultora está a ajudar as autarquias portuguesas a criar soluções de base tecnológica para fazer frente às necessidades do momento. Um movimento, diz o responsável, que está a acelerar não só a transição digital, mas também a dinâmica de partilha entre os municípios, e que poderá ser positivo para o sector das smart cities no futuro.
Enquanto responsável global da Deloitte pela área das smart cities, como encara este momento que estamos a viver?
Esta é uma situação inédita, completamente global e com um impacto transversal. Envolve todos os países, cidades e comunidades, e afecta a economia, a sociedade, a saúde, etc. É um tema “multi-tudo” e que tem um carácter urgente, o que significa que é preciso fazer, em apenas uma semana, coisas que, antes, eram impossíveis de concretizar em dois meses. Isso é visível até na capacidade de decisão – na Administração Pública, estão a tomar-se decisões com uma agilidade completamente diferente. E é uma situação igual para todos, já que o problema é o mesmo: trata-se da saúde das pessoas e do mesmo vírus. Tenho estado envolvido em inúmeras iniciativas nacionais e internacionais neste contexto e o tipo de resposta que se dá numa cidade em Portugal pode – e deve – ser completamente igual na China. Por tudo isto, é uma situação que exige uma resposta integrada e sem precedentes a todos os níveis. É urgente agir de forma tão global quanto possível e é muito importante partilhar. Quem está à frente uma semana deve partilhar com quem está atrás, com formas de partilha rápida, para que estes possam aprender. É o que nós fizemos – aprendemos com Itália, Espanha e, claro, com a China.
Em que medida cabe às cidades dar resposta e como estão a fazê-lo?
Esta situação está a ter impacto nas pessoas, no sistema de saúde e no seu ordenamento. Estes últimos são normalmente de escala nacional, no entanto, há uma componente local grande. A nível nacional, é importante ter informação para conseguir dar as respostas certas, mas isso acontece também a nível local, de modo a que se consiga actuar nos lares, centros de saúde, etc. Há sectores nos quais o impacto é maior, mas algumas áreas, como o retalho, a logística, a saúde e tudo o que tem a ver com o sector público, têm de continuar muito activas e a trabalhar. Diria que o sector público é a organização que tem de estar mais activa neste momento e, por isso, as cidades são muito importantes. Veja-se, por exemplo, o caso das pequenas e médias empresas (PME), que foram muito afectadas e que são, na maioria, de cariz local. Ora, é importante que a resposta, no sentido de as ajudar ou de, pelo menos, informar, seja municipal. Para além disso, uma cidade tem de manter todos os seus domínios activos. Se, por um lado, tem de alocar recursos para respostas críticas, como o apoio às PME ou a saúde e a segurança, a cidade tem de manter os outros serviços a funcionar – a recolha de resíduos, o abastecimento de água, de energia, etc. Nesse sentido, é cada vez mais importante manter a capacidade de resposta da cidade, isto é, de alocar recursos para a resposta urgente com flexibilidade e de manter o restante ecossistema em funcionamento para que não tenhamos um caos.
Considera que este contexto está a pressionar a adopção de tecnologias de inteligência urbana?
Antes disto, já se registava uma aceleração enorme de tudo o que tem a ver com a adopção de tecnologias na cidade. Na nossa abordagem ao conceito de cidade inteligente, usamos a tecnologia para incrementar a qualidade de vida, o desenvolvimento económico, a sustentabilidade e, agora, a resiliência, que, neste momento, é um ponto chave. Nunca foi tão importante usar a tecnologia como no momento actual. Primeiro, porque os funcionários municipais estão em casa, mas precisam prestar serviços municipais em contexto de teletrabalho. Ora, as ferramentas digitais têm de estar prontas para que os funcionários trabalhem num ambiente que não é físico, por um lado, e, por outro, em que os sistemas estão preparados para que os cidadãos, que não se podem deslocar, consigam ter os seus serviços tratados. Isto só se faz através de tecnologia. Segundo, é necessário dar resposta em termos de saúde. Temos estado envolvidos em vários projectos nessa matéria.
No que consistem esses projectos?
Em 15 dias, desenvolvemos, em conjunto com outros parceiros, uma plataforma para fazer a gestão de recursos críticos para os 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Esta é claramente uma solução smart para responder a desafios concretos relacionados com a pandemia. Nessa plataforma, os municípios indicam que tipo de recursos têm disponíveis para que os outros os possam utilizar, numa perspectiva de partilha de máscaras, zaragatoas, etc., para garantir que, se houver falta de um lado, existe disponibilidade do outro. Este é um projecto que foi desenvolvido em Lisboa, alargado à AML e que poderá chegar à escala nacional. Em Cascais, temos outro exemplo: a plataforma CitySynergy, que faz a gestão urbana, está a ser utilizada para monitorizar casos covid-19 através da ligação aos Bombeiros, Protecção Civil e centros de diagnóstico, permitindo, automaticamente, ver quais os principais focos [da doença]. Nessa mesma plataforma, está a fazer-se a assistência ao tema dos lares, identificando, quando há um problema, quais os espaços alternativos para onde os idosos podem ser deslocados, que médicos estão disponíveis, etc. Uma outra iniciativa – feita também numa semana – é uma solução para a gestão de doações de empresas pelo município. Está também a discutir-se o desenvolvimento de uma solução em dois municípios piloto para garantir a prestação de informação atempada sobre as medidas disponibilizadas pelo Governo às PME. São muitas medidas, numa miríade de domínios, e, muitas vezes, é difícil para uma PME perceber como pode chegar lá e que medidas são ou não aplicáveis ao seu caso. Por isso, estamos a fazer um portal de informação estruturada por tipologia de empréstimo e que vai ter uma lógica de partilha de recursos físicos, humanos, materiais, etc. Há imensas coisas a acontecer.
“Tenho responsabilidades a nível global e, pelo que vejo, a rapidez de resposta que está a conseguir dar-se nalgumas autarquias, em Portugal, é, mais uma vez, exemplo à escala internacional. Não significa que não haja excelentes exemplos lá fora, mas sinto que, cá, estamos acelerar um processo: as autarquias estão a fazer coisas e estão a partilhá-las com as outras autarquias.”
Pode, então, dizer-se que o contexto está a levar ao desenvolvimento e implementação de soluções tecnológicas.
Apesar de ser um cenário muito negativo para a população, isto que estamos a viver vai ter efeitos muito positivos em termos da agilidade das cidades no futuro e da aceleração digital da gestão local. Outro aspecto que foi agilizado nesta fase e que trará notas para o futuro é a contratação dos serviços para temas urgentes e relacionados com tecnologia. Da parte do Governo, há um regime de excepção, a nível da contratação pública, durante o período de emergência, que agiliza a aquisição de bens e serviços urgentes e que estejam relacionados com o tema da covid-19. Para o futuro, há conversas na esfera internacional, e que têm de ser aplicáveis em Portugal, que reforçam a necessidade de agilizar a contratação pública.
Acredita que vão cair algumas das barreiras existentes até aqui nessa matéria?
Diria que sim. Há vários temas nos quais este momento trará aceleração, nomeadamente a transformação digital, a sustentabilidade e a resiliência. O e-Government vai ser muito desenvolvido, assim como, para as PME, a adopção de plataformas on-line e a incorporação de produtos em mercados digitais. Nesse ponto, há um alinhamento grande com o ministério da Economia e a estratégia “Portugal Digital”. Há conversas entre municípios, o ministério da Economia e organizações que têm plataformas digitais, como os CTT, para ajudar as PME a entrar nestes mercados digitais e, assim, colmatar um pouco o embate causado pela pandemia. São coisas que se fazem uma vez nesta fase, mas que acabam por ficar para o futuro.
Por diversas vezes, afirmou que Portugal tem capacidades para ser uma smart nation. Estamos, neste momento complexo, a conseguir tirar partido dessas capacidades?
Na Deloitte, funcionamos em ecossistema e, neste momento, estamos envolvidos, de forma transversal e muito disseminada, com municípios e também com Comunidades Intermunicipais (CIM). Tenho responsabilidades a nível global e, pelo que vejo, a rapidez de resposta que está a conseguir dar-se nalgumas autarquias, em Portugal, é, mais uma vez, exemplo à escala internacional. Não significa que não haja excelentes exemplos lá fora, mas sinto que, cá, estamos acelerar um processo: as autarquias estão a fazer coisas e estão a partilhá-las com as outras autarquias. E estão mesmo a fazê-lo! Nesse momento, vejo muitas coisas a serem feitas e em colaboração no sentido de conseguir escalar-se soluções. E, finalmente, o que é bem feito está a ser partilhado com algum envolvimento da coordenação nacional – e nosso país é pequeno! Por isso, sim, temos condições e estamos a acelerar essas condições. Temos conseguido coisas bastante bem feitas!
“A resposta para melhorar tudo isso nas cidades, mas também à escala nacional, tem a ver com tecnologia e, se tivermos procedimentos de contratação pública muito rígidos, não vamos conseguir essa aceleração.”
Que impacto antecipa que o momento actual terá no negócio das smart cities?
O negócio das smart cities estava já a acelerar a nível global. Para ter uma ideia, na Deloitte, o volume da relação e parceria na área das smart cities cresceu cerca de 40% e estamos a crescer 80% nas grandes cidades à escala global. Isto quer dizer que, em princípio, as grandes cidades estão a fazer 80% mais coisas do que faziam no passado. Esta é apenas uma percepção, não tenho dados científicos, mas acredito sinceramente, e com este cenário de pandemia, que a quantidade de tecnologia que tem de ser implementada é enorme, a nível de infra-estrutura de telecomunicações, para efeitos de teletrabalho ou teleserviços, ou para responder a todas as necessidades que falámos anteriormente. Tudo isto vai induzir uma aceleração que é positiva quer no contexto das smart cities, quer no que se refere à prestação de serviços ao cidadão no futuro, aos níveis da sustentabilidade e resiliência, e que terá como consequência um contributo para o desenvolvimento económico. Embora não tenha dados para medir, penso que há uma aceleração grande e digo isto porque, estando nós, Deloitte, no centro do ecossistema, não temos parado com o número de solicitações, de iniciativas e de projectos a nível nacional e local. Essa dinâmica enorme também se sente a nível internacional, nas cidades, porque estas – mais uma vez – têm mesmo de responder, de fazer coisas, e estão a fazê-lo.
Com base na experiência que a Deloitte tem tido nestas semanas, que recomendações finais deixa, quer aos municípios, quer ao Governo?
Neste momento, penso que o caminho está trilhado. É preciso fazer rápido. A primeira coisa é partilhar, porque as soluções válidas para uma cidade são exactamente iguais às soluções válidas para outra, mesmo que em dimensões diferentes. Se se demora tempo a partilhar, já se perdeu tempo e, aí, estamos já noutra fase da pandemia, mais pessoas morreram ou mais empresas faliram. Partilhar é a primeira coisa a fazer. Nós, como somos transversais, podemos ser facilitadores e estamos a tentar sê-lo com a rapidez possível. Mas tudo muda muito rapidamente: há uma semana, todos falavam na necessidade de responder; esta semana, todos falam na recuperação; e, na próxima semana, o tema já será outro. A segunda recomendação – e já está a acontecer – é trabalhar ao nível do ecossistema, empresas privadas com o sector público, etc. A terceira acção está ao nível do Governo, que deve aproximar-se do Poder Local numa resposta coordenada, pois só assim se consegue acelerar a capacidade de resposta. Gostaria de deixar uma última nota para o futuro que é a importância de agilizar o tema da contratação pública em tudo que diga respeito a soluções de tecnologia para aumentar a qualidade de vida, a sustentabilidade ou a resiliência. A resposta para melhorar tudo isso nas cidades, mas também à escala nacional, tem a ver com tecnologia e, se tivermos procedimentos de contratação pública muito rígidos, não vamos conseguir essa aceleração. Estes meses de desastre que estamos a viver vão demonstrar que se consegue fazer muita coisa de forma mais rápida e, apesar dos efeitos muito negativos que vamos ter no curto prazo, acredito que iremos ter também efeitos positivos no médio prazo.