As cidades ribeirinhas, em particular as estuarinas, enfrentam profundos desafios agravados pela tendência de litoralização e pelas alterações radicais nos padrões climáticos, com impactos alarmantes nessas frentes. Na dicotomia entre o potencial de regeneração de territórios obsoletos e a mercantilização de um bem comum, seria expectável um planeamento centrado na circularidade e regeneração dos recursos disponíveis.

É nas zonas costeiras onde se localiza a maior parte da população mundial, sujeita a previsíveis perigos e riscos costeiros, agravados pelas mudanças no clima. Embora em Portugal se constate um decréscimo populacional, originado pela tendência de aumento de óbitos e envelhecimento demográfico, os últimos dados do INE (Censos, 2021) registam um crescimento da população de 1,7% na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e 3,6% na região do Algarve, o que é consonante com a tendência de litoralização das últimas décadas, desde o período pós-industrial. As atividades de origem antropogénica, que resultam da comprovada influência do “sistema-homem” sobre o “sistema-ambiente”, são a grande causa do aquecimento global. 

Desde 1968 que, num dos primeiros relatórios das Nações Unidas – Activities of United Nations Organizations and programes relevant to the human environment: report of the Secretary-General – diversas questões que se relacionavam com o ambiente, poluição, crescimento urbano desordenado e descontrolado, uso racional do solo urbano, planeamento para o desenvolvimento urbano, clima urbano, entre outros temas, já se revelavam de máxima pertinência. É, aliás, nesse documento que se pondera sobre a possibilidade de o homem ser capaz de influenciar o clima, “não apenas numa escala pequena, mas também sobre áreas maiores”. Pouco mais de meio século volvido, as mesmas preocupações persistem, mas mais evidentes e assentes em consenso científico. Em linha com o que vai sendo afirmado pela comunidade científica desde o início dos anos 90 do século XX, o último relatório de síntese do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas reforça que as mudanças no clima (aumento de temperatura, precipitação mais intensa, maior frequência e intensificação de eventos extremos, ondas de calor) aumentarão as perdas e danos (irreversíveis) para os sistemas humanos e naturais. Estas previsões resultarão, consequentemente, na subida do nível médio das águas do mar (SNM), que, em combinação com outros processos físicos e forçamentos hidrodinâmicos locais, terão consequências alarmantes em frentes de água urbanas para infraestruturas, atividades económicas, condições biofísicas endógenas e para as populações costeiras.

O último relatório da Organização Mundial de Meteorologia, datado de 2024, refere que a SNM mais do que duplicou desde o início do registo por satélite, aumentando de 2,13 mm/ano entre 1993 e 2002 para 4,77 mm/ano entre 2014 e 2023, atingindo-se, claramente, um novo recorde. Já a versão mais recente (2019) do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, instrumento de topo do sistema de gestão territorial nacional, dispõe que, em Portugal, com base no marégrafo de Cascais, registaram-se subidas do nível médio do mar (SNM) de 2,1 mm/ano entre 1992 e 2004 e 4,0 mm/ano entre 2005 e 2016, aproximando-se da tendência global. 

Neste contexto de evolução, um dos relatórios produzidos este ano para o Roteiro Nacional de Adaptação 2100 indica que as regiões costeiras em Portugal em risco poderão abranger 604 Km2 até ao ano 2100, no pior cenário, dos quais 548 Km2 dizem respeito a águas interiores. O distrito de Lisboa é identificado como tendo o mais alto grau de vulnerabilidade, com um total de 221 Km2 de áreas costeiras a serem ameaçadas até 2100 no pior cenário, dos quais 220 Km2 estão projetados para serem sujeitos a futuras inundações, particularmente em zonas adjacentes a águas interiores (de onde se destacam as do estuário do Tejo). Apesar de os dados serem extremamente preocupantes, o estado da arte revela falhas de adaptação generalizadas em vários sectores e regiões. Isto culmina em vulnerabilidades amplificadas e riscos acrescidos, exacerbados por desigualdades na resiliência urbana e climática em diversas áreas geográficas, levando a uma reflexão sobre a atualidade do ensaio de Garret Hardin datado de 1968 – The tragedy of the commons – quanto à ausência de eficiência na gestão de recursos que são comuns.  

Embora a análise prospetiva aponte para a elevada vulnerabilidade das zonas costeiras estuarinas no distrito de Lisboa, e os municípios integrem, nos instrumentos de gestão territorial (IGT), as cartas de risco associadas a zonas suscetíveis a inundações e possuam dados claros (projeções, impactos e medidas de adaptação) nos Planos Municipais de Adaptação às Alterações Climáticas (PMAAC), continua a haver uma apetência (injustificável) de se contrariar o que é evidente, agravando, ainda mais, o problema. Observa-se, com alguma perplexidade, a ocupação de algumas zonas de baixa altitude ao longo das Frentes Ribeirinhas de alguns concelhos da AML, com edificações (erguidas já no decorrer da última década) de uso público, cultural, de saúde e mesmo habitacionais, acentuando a mercantilização de um bem que deveria ser comum. Não só o risco futuro se amplifica, como as fragilidades atuais se intensificam com a impermeabilização dos solos, condicionando o escoamento superficial de águas da chuva e levando, naturalmente, ao aumento do risco de inundações urbanas. Esta contradição é, ainda, mais significativa, quando a tendência deveria ser a desocupação, gradual, de áreas de elevado risco hidrográfico, assente num planeamento territorial e urbanístico que dê resposta aos desafios persistentes e evolutivos, no horizonte temporal 2100.  

As interconexões entre os eventos climáticos extremos globais (intensificados durante os últimos anos), com impactos à escala local, exigem um planeamento multinível consensual em zonas ribeirinhas. Por conseguinte, na batalha crucial contra a escalada da crise climática, é imperativo, agora mais do que nunca, refletir, profundamente, sobre a evolução das dinâmicas que ocorrem nas frentes de água urbanas, tanto nos últimos anos como na atualidade, perspetivando a sua apropriação no futuro. A urgência de formular e aplicar políticas públicas sólidas não pode ser subestimada, considerando-as vitais para orientar a gestão e promover a coesão dos territórios costeiros, a nível local, intermunicipal e metropolitano. Para isso, releva-se a importância dos IGT na compatibilidade do uso, ocupação e transformação do solo com os riscos identificados. Em alternativa ao desenvolvimento de greenfields, deverá ser dada especial atenção à regeneração de zonas industriais ribeirinhas abandonadas ou subvalorizadas (designadas como brownfields), que representam elevados passivos ambientais e com grande potencial de contaminação em cenário de SNM. Aqui se encontram verdadeiras potencialidades que devem ser ponderadas com entusiasmo pelas administrações locais, em estreita articulação com os desígnios supramunicipais. 

O (re)aproveitamento da decadência e obsolescência destes recursos construídos ou artificializados poderá potenciar a transformação e inovação urbana, como motor de adaptação aos efeitos expectáveis das alterações climáticas em frentes ribeirinhas. A (re)utilização destes territórios deve prever a constituição de espaços multifuncionais e de usos temporários non edificandi, podendo funcionar para: retardar, atenuar e limpar os fluxos de água; valorizar os recursos naturais (solo, água e biodiversidade); regenerar os ecossistemas terrestres e aquáticos, beneficiando de serviços reguladores (regulação climática), serviços culturais (espaços de lazer e recreio) e serviços de suporte (habitat para espécies, manutenção de diversidade genética). 

Se o conceito de resiliência urbana está subjacente à capacidade de persistência e resistência face a determinada mudança, torna-se premente promover, através dos IGT e de políticas públicas que incentivem uma gestão eficiente, a não edificação em territórios de elevada vulnerabilidade e, em alternativa, garantir a adaptação aos efeitos e impactos das alterações climáticas em frentes de água urbanas a partir dos conceitos de adaptabilidade, transformabilidade, regenerabilidade, multifuncionalidade e circularidade urbana de brownfields. 


Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 45 da Smart Cities – outubro/novembro/dezembro 2024