Em 2021, a Gebalis, entidade que gere o parque habitacional municipal de Lisboa, faz 25 anos. Durante este quarto de século, à medida que as necessidades da cidade foram evoluindo, também a actuação a empresa municipal foi mudando, mas sem nunca perder a assinatura de proximidade, garante Pedro Pinto de Jesus. “Gosto de pensar que nos confundimos com a comunidade”, revela o presidente do Conselho de Administração da Gebalis, convicto de que “a resposta para a habitação tem de ser pública”.

Nestes 25 anos, como é que a história da Gebalis se relaciona com a história da habitação em Lisboa?

A Gebalis surge na sequência de um grande investimento do município, que foi a erradicação de cerca de 11 mil barracas, e de uma nova forma de olhar para a cidade. Nasce nesse contexto de gestão social, patrimonial e financeira de um novo edificado municipal. A ideia da câmara municipal (CML) foi a de ter uma estrutura que, mais do que ser um mero gestor, acompanhasse toda a alteração de paradigma de viver na cidade. A Gebalis teve, e ainda tem, como principal assinatura, a proximidade e, nessa medida, actua não só numa sede, mas também nos bairros. Estamos junto dos nossos residentes com microestruturas – dez gabinetes espalhados pela cidade e mais duas presenças em Lojas do Cidadão. [Posicionamo-nos] Neste contexto de gestão social, de proximidade e, como somos uma entidade gestora, sem descurar a parte financeira e patrimonial, mas sempre com o morador no centro das preocupações. A dimensão hoje é muito maior.

As necessidades também evoluíram. O que mudou desde os tempos iniciais?

O papel da empresa na cidade é hoje ainda mais determinante: são 66 bairros, 64 mil pessoas, três mil edifícios, quase 1200 elevadores, quilómetros quadrados de garagens e espaços não habitacionais, tudo espalhado pela cidade. Lisboa tem a característica de os bairros municipais estarem também no centro.

Em 2017, a Gebalis deixou de gerir exclusivamente a renda apoiada – atribuições municipais destinadas a públicos mais vulneráveis – e passou a gerir o que a CML entenda colocar sob a sua competência. Começámos com a renda convencionada, hoje estamos com a renda acessível pública – para a classe média e jovens. Obviamente, isto obriga-nos a uma reinvenção permanente e que se tem consubstanciado na forma como comunicamos e nos organizamos no território, com o aumento do número de trabalhadores em cada gabinete para dar respostas diferenciadas. A empresa passou a ter uma capacidade de investimento na requalificação ímpar.

A mando da CML, estamos a fazer um investimento de 52,5 milhões em 30 bairros e há um número significativo de famílias que vai receber o resultado deste investimento. Esta reinvenção dá-nos uma centralidade na cidade que nos orgulha e que, sem perder o nosso ADN – a proximidade –, é um processo contínuo de evolução. Não nos ficamos pela mera execução.

Os públicos-alvo da renda apoiada e da renda acessível são diferentes. Pretende-se que haja uma mistura?

É uma discussão interessante em curso. E é permanente ao longo de toda a gestão da habitação pública. Essa mistura já existe, por exemplo, no bairro da Quinta das Laranjeiras, junto ao Parque das Nações, onde temos tanto renda acessível, como apoiada. Temos casos em que a mistura dessa tipologia de contratos de arrendamento funciona. Pessoalmente, defendo essa abordagem, pois é uma alavancagem importante para a vida dos bairros. A CML atribui isto a montante e penso que há um cuidado acrescido com este tipo de matérias. A Gebalis faz ainda parte de quase 700 condomínios, que é mais um público com o qual temos experiência.

Em que medida?

Tem havido processos de alienação de fogos municipais, o que nos obriga a ter a capacidade de relação com proprietários que vivem no mesmo patamar e o inquilino municipal. É economia de escala: fazer aquilo que sabemos fazer. Daí a CML ter escolhido transitar a capacidade de gerir outro tipo de arrendamento para a Gebalis.

“É muito importante ter agora a disponibilidade financeira para dotar os municípios da concretização daquilo que são as suas necessidades habitacionais e prioridades. Quem está no terreno e contacta com as suas populações está, na esmagadora maioria das vezes, em melhores condições para executar.”

Que avaliação faz da aplicação da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) em Lisboa? Tem sido suficiente para as necessidades?

A crise no sector da habitação não é característica de Lisboa ou de Portugal. É mundial. Numa apresentação na Housing Europe, tive a oportunidade de dizer que nós, em Lisboa, somos muito exigentes connosco próprios. O presidente Medina tem feito uma aposta única, a maior de todas desde a erradicação das barracas, e muitas vezes não paramos para olhar e pensar que isto foi feito. Há anos que não se construía arrendamento apoiado novo; hoje, constrói-se, reabilita-se, inventam-se programas novos – como o Renda Segura, que é uma inovação –, aposta-se no subsídio ao arrendamento municipal, ou seja, uma panóplia de medidas que permite dar resposta a um problema de carência habitacional e no qual Lisboa tem feito um trabalho muito meritório. A Gebalis está no lado da execução de políticas predefinidas e apostas municipais, no fundo, somos o mesmo. O trabalho feito enche-me de orgulho.

Vivemos um tempo mais crítico em termos de avaliação de políticas municipais, mas, no que respeita à habitação, o trabalho dos últimos anos tem sido fantástico. A mesma coisa acontece com o Governo, que voltou a pôr a habitação no centro das decisões políticas, criou uma secretaria de Estado, tem um ministro com a pasta, um programa. A NGPH foi um momento de reflexão, e agora? Com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), estão reunidas as condições e já há muito investimento que transitou para os municípios, como o 1º Direito. Veja-se o trabalho notável que a MatosinhosHabit tem feito nesta matéria. Esta sinergia entre Europa, Governo central e autarquias, no caso de Lisboa, tem funcionado muito bem, permitindo que, num contexto de crise mundial de habitação, a cidade tenha soluções. Quando vamos apresentar o nosso caso ao resto da Europa, somos elogiados, enquanto aqui, muitas vezes, fechamo-nos sobre nós mesmos e não damos crédito ao que tem sido feito.

O PRR prevê um envelope financeiro considerável para a habitação. O que é preciso para que esses fundos cheguem onde são precisos?

O PRR é um impulso ímpar para a política de habitação no país. Aquilo que o Governo tem feito é o necessário para que se possa ter condições para executar as políticas municipais. Isto casa com o que foi a estratégia de pensamento da NGPH. É muito importante ter agora a disponibilidade financeira para dotar os municípios da concretização daquilo que são as suas necessidades habitacionais e prioridades. Quem está no terreno e contacta com as suas populações está, na esmagadora maioria das vezes, em melhores condições para executar. As sinergias, que têm sido bem canalizadas, são a solução para uma boa execução. Ainda bem que o PRR tem uma verba que será o reforço destas políticas que já estavam bem pensadas, ponderadas e bem alicerçadas entre municípios e Governo central! Há todas as condições para que as coisas corram bem.

Que novos desafios vos trouxe a pandemia?

É o desafio do século. A CML teve a capacidade de adaptação e de resposta a estes novos desafios, à forma como vivemos e experienciamos a cidade e que teve também o envolvimento da Gebalis nas medidas de protecção à economia, famílias e empresas. Do ponto de vista de ajustamento interno, o nosso trabalho é já de resiliência e adaptação constantes. Estar junto das comunidades é o centro da nossa actividade. Com esta capacidade dos trabalhadores, foi possível ultrapassar.

Como foi a actuação no terreno?

A proximidade e o facto de estarmos organizados com presença territorial também nos permitiu rapidamente entrarmos em contacto com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que gere a parte social da cidade e com quem temos uma excelente relação protocolada. Atacámos logo aqueles que eram as nossas maiores preocupações: os cidadãos seniores, idosos, isolados. Juntámo-nos ao projecto RADAR e conseguimos identificar carências, isolamento, e trabalhar com a SCML e com as juntas de freguesia em respostas à medida para estas pessoas.

Estamos a falar de quantos munícipes?

Foram contactados 5000 idosos nestas circunstâncias – não se trata apenas de um telefonema, mas de um acompanhamento e solução. Fomos nós que rapidamente percebemos que havia aqui uma dificuldade, na qual não tínhamos directamente de gerir, nem competência, mas à qual não poderíamos ficar alheios, pois são moradores municipais e dependem também da relação connosco em casos graves, muitas vezes, de vulnerabilidade social e a quem a proximidade com as famílias e o território, em estreita articulação com a SCML, permite chegar e dar respostas. Esta é uma parte complementar ao ajustamento que referi. Ninguém faz acompanhamento do património em teletrabalho, mas nós nunca saímos de território, mantivemos atendimento dentro das regras, mantivemos a proximidade através do telefone, até através de videochamadas!

Que medidas de apoio foram mais significativas?

Logo de início, houve uma concessão de uma moratória de 18 meses, isto é, a CML reagiu. A renda apoiada dispõe de um mecanismo com o qual o valor da renda é ajustado em caso de redução do rendimento da família, mediante respectiva prova junto da entidade gestora. Contactámos todas as famílias que pudemos e nas quais notámos um comportamento diferente em relação à dívida. Atacámos proactivamente com uma solução. Isso correu muito bem. Temos também isenções integrais de pagamentos da renda de estabelecimentos comerciais, instituições de cariz recreativo, social, cultural, desportivo, que estão nos bairros municipais. Esta medida foi aplicada a quase 700 estabelecimentos e foi muito importante para não deixar que a vida e o tecido social dos bairros permaneçam ao abandono. A CML foi muito cuidadosa com estas medidas…

Tudo isto tem um impacto positivo, em especial no comércio local dos 66 bairros na cidade. Agora, mais recentemente, houve o ajuste das outras rendas municipais linkando-as ao arrendamento. Há também dois programas, o Lisboa Protege e o Lisboa Protege+, nos quais estas medidas estão integradas e que dão uma resposta que não é exclusiva da habitação, mas à cidade, à pandemia. São medidas de mitigação que o presidente da CML encara simultaneamente como uma alavanca para o futuro da cidade. A CML e as juntas de freguesia tiveram um papel muito importante ao segurar a cidade neste desafio do século.

Lisboa tem investido na temática dos dados. Isso ajudou no desenvolvimento destas medidas?

Não consigo detalhar quais são os dados, mas temos um trabalho de proximidade muito grande com a CML. Partilhamos indicadores que, depois, são centralizados pela unidade especializada para o efeito na CML. Temos indicadores específicos e outros que são solicitados na periodicidade necessária. É claro que a divisão de dados da CML tem sempre porta aberta na Gebalis e temos uma relação praticamente diária.

A habitação já não funciona num silo, exige ligação a outros domínios da cidade, como a mobilidade ou a energia. Como isso se reflecte nos projectos da Gebalis?

A preocupação ambiental e com a sustentabilidade faz parte desde 2008 e temos embarcado em projectos diferenciadores para a empresa. Acreditamos que só conseguimos fazer uma melhor gestão da habitação se tivermos acesso a ferramentas e informação fora daquilo que é a nossa esfera. Fomos das primeiras unidades empresariais a abraçar a microgeração e envolvemo-nos sempre em campanhas para a distribuição de lâmpadas economizadoras ou de combate à pobreza energética. Em 2010-2013, participámos nos Ecobairros, na Boavista, num dos primeiros trabalhos de eficiência energética, juntamente com uma série de parceiros, como o LNEG ou o IST. Participámos no IMEA, um projecto internacional co-financiado e que entrámos como boas práticas com o FunLab, ainda activo.

Temos iniciativas com a Lisboa E-nova, um projecto em curso dos EEA Grants, campanhas de sensibilização, informação, etc. Temos também o programa Life, que, apesar de ter mais de dez anos, tem evoluído muito. Começou com a ideia de criar, usando robótica, domótica e IoT, uma casa capaz de dar maior autonomia a um residente com determinado grau de incapacidade de mobilidade, e evoluiu para o conceito do uso universal. Agora, vamos trabalhar na saúde mental, já que houve muita discussão sobre o papel da casa nesta pandemia. Estamos muito empenhados em introduzir esta preocupação e em tornar as casas mais friendly possível.

Participam em projectos que envolvem directamente as comunidades?

Potenciamos programas engraçados como os Guardiões do Jardim, onde ensinamos sobre alimentação positiva e tudo o mais, ou o Lotes ComVida, que é muito de empowerment e no qual ensinamos as pessoas a cuidar do que é delas, responsabilizando-as. É um programa de cogovernação e co-responsabilização. Fazemos uma estratégia para os lotes e ajudamos a concretizá-la, capacitamos os moradores para gerirem o que é de todos. Tem tido grande sucesso. No fundo, estamos em tudo o que está na comunidade. Gosto de pensar que nos confundimos com a comunidade. Sei que é idílico, principalmente para quem cobra uma renda…

Essa proximidade faz parte da fórmula para construir uma cidade mais amigável?

Até vou mais longe: não vejo outro caminho para fazer a gestão da habitação pública. Não se trabalha o eixo do desenvolvimento local, nem se alavancam comunidades sem sinergias, sem co-governação e co-responsabilização, sem o envolvimento e participação. É impossível! São territórios e públicos vulneráveis, mas com uma grande disponibilidade e vontade de participar. Parecem chavões, pois é fácil dizer isto, o difícil é ir lá.

Os territórios estão cheios de conflitos e essa não deve ser gestão fácil.

Sim, mas nós também somos fonte de conflitos. Cobramos uma renda, temos exigências com o nosso trabalho, mas os conflitos não nos afastam, nem aos 220 trabalhadores da empresa que estão habituados a isto. Daí o nosso lema ser a resiliência, a capacidade de estar ali no terreno. Mas há ainda muito a fazer.

A habitação municipal pode ser um instrumento para a equidade?

A resposta à habitação tem de ser pública. Em Viena, quase tudo é habitação municipal. Há um preconceito com a habitação pública que é preciso combater. Pode haver programas que assentam em necessidades distintas e públicos diversificados. Por isso, penso que [é possível] combater esse preconceito com a habitação pública ligada a tudo o que é habitação social e elementos mais vulneráveis. As cidades precisam de gente e de soluções para captar estas pessoas, e é o que Lisboa e muitas cidades europeias têm feito para combater os problemas conhecidos da habitação.