Pandemia. Protestos, tumultos e agitação social. Os tempos que vivemos são conturbados e estão a obrigar cidades e comunidades a uma adaptação rápida. Para ajudar nesse processo, o especialista em urbanismo norte-americano Chuck Wolfe, actualmente a viver em Londres, lança um manifesto. A proposta assenta na ideia de place-healing, uma forma para sarar as feridas do imaginário urbano.

Um pouco por todo o mundo, a necessidade de intervenções de renovação urbana e de recalibração para evitar a propagação da doença provocada pelo novo coronavírus tem colocado inúmeros desafios às cidades. Para além da pandemia, neste período, assistimos também a manifestações e agitação sociais nas cidades norte-americanas, alastrando para a Europa e culminando em ataques contra estátuas de comerciantes de escravos de tempos idos. Em contexto de pandemia e de protesto social, a necessidade de reparação tornou-se bastante clara, com respostas que invocam os elementos mais etéreos do espaço físico.

Nessa medida, e com base em investigação e experiências recentes, gostaria de explorar como podemos unir as brechas entre um passado e um futuro imediato, buscando inspiração em exemplos simples que estão mesmo à frente dos nossos olhos. As cidades e as suas histórias já mostraram como as pessoas se podem adaptar e fazer a transição para algo novo. Gostaria de lhe chamar “place-healing”, uma espécie de terapêutica para os espaços e que me parece o termo adequado para os tempos em que vivemos.

A expressão cívica já nos mostrou o que é o place-healing. Nos Estados Unidos, as manifestações violentas foram seguidas por iniciativas de limpeza e reparação de estragos espontâneas. Em Londres, os manifestantes quebraram as suas barreiras ideológicas para ajudar aqueles que foram feridos nos protestos. Este tipo de place-healing tem por base a empatia e a identificação com o outro. É uma demonstração fundamental do potencial humano para recuperar o seu sentido de comunidade, tal como é exibido na Capitol Hill Autonomous Zone em Seattle.

Exemplos adaptativos

É curioso ver também como as adaptações voluntárias de place-healing mostram como a aparência e as experiências dos espaços urbanos vão transformar-se.

De cabine telefónica a artefacto. ©Chuck Wolfe

Em cidades como Londres, a diversidade e os resquícios de outros tempos definem uma boa parte da paisagem urbana. Uma História rica e longa permite uma continuidade que é expressada de uma forma estranhamente reconfortante. Num local, podemos ver uma cabine telefónica vermelha, que combina com a intervenção feita num passeio para combater a pandemia. Este ícone colorido – um artefacto, na verdade, pois já não é utilizado – partilha agora os holofotes com uma medida de saúde pública de emergência. Estes dois elementos podem parecer triviais, mas é esta justaposição que sustenta o novo com a familiaridade do antigo, algo que o place-healing exige e que está já a acontecer.

Outros exemplos podem incluir as entradas improvisadas, as esplanadas (onde antes se faziam as refeições no interior), móveis de época que servem agora de balcão de take-away para os restaurantes, e carruagens de metropolitano bifurcadas para garantir o distanciamento social no seu interior.

Em última análise, instituições – e até negócios privados – podem viver de uma forma diferente, pois honram um sentido de ética necessário ao place-healing: o respeito pelas pessoas envolvidas. Um exemplo é a Bobtail Fruit, em Londres – começou por ser uma antiga barraca de venda de fruta em Covent Garden e, graças ao proprietário que lhe dá o nome, cresceu para cinco lojas espalhadas por toda a cidade. Recentemente, o negócio adaptou-se para um portal on-line de venda de cabazes de fruta, legumes e leite de qualidade. Ao que pude apurar, o sucesso da Bobtail ao longo do tempo prende-se com um respeito intangível por este place-healing para com o serviço aos clientes e à comunidade – tal como aconteceu, anteriormente, com a entrega de presentes durante as festividades nos bairros onde tinham a barraca de frutas. Durante a pandemia de Covid-19, a Bobtail estava bem posicionada para expandir a sua área de entregas, chegando a mais clientes residenciais, enquanto a sua clientela habitual estava a trabalhar a partir de casa.

No exemplo da Bobtail, o espaço físico já não define o processo de vendas, que está agora baseado num armazém renovado e sujeito ao fornecedor da fruta e legumes. Porém, é um imperativo de serviço ao cliente que remonta aos dias de Covent Garden que continua a ser determinante para o negócio e que se adaptou às necessidades do cliente num novo formato.

Uma entrada adaptada em Kew Gardens. © Chuck Wolfe

Em suma, o imaginário urbano a dar sinais de adaptações e a abordagem “centrada nas pessoas” da Bobtail Fruit mostram como se pode transformar a angústia em acção. A capacidade de adaptação e de mistura vão enquadrar os próximos passos para algo novo, mas ainda precisamos de uma receita proeminente para lá chegar.

O Manifesto Place-Healing

Se o place-healing é o catalisador que vai permitir mais casos de adaptação e transição, devíamos articular formas de destacar mais histórias e estratégias para uma mudança significativa. Para responder a esse desafio, proponho o Manifesto Place-Healing,com base no seguinte:

• Enfatizar a comunicação. Cada município deve continuar a optimizar o modo de comunicação com os seus cidadãos, sobretudo tendo em conta as semanas de isolamento que precederam os eventos actuais;

• Compreender diferenças e limitações. A atenção a diferenças nas linguagens, idades e acesso à tecnologia, assim como o potencial para facilitar o diálogo, são mais críticos do que nunca;

• Abraçar o “alpendre”. As redes de placemaking mundiais reavivaram as atenções para projectos de “alpendre” que incluem modos de comunicação que permitem o distanciamento social em vigor. Sem dúvida de que há muitas mais oportunidades criativas para criar formas culturalmente contextuais que permitam aos vizinhos comunicar entre si;

• Procurar a educação e compreensão mútuas. Mais do que o que aprendemos na escola, todos devem fazer o seu trabalho para compreender o outro. A formação, ou uma “educação contínua” profissional, deve ser altamente sensível a questões de privilégio ou de classe;

• Honrar histórias diferentes de minorias. Para além do discurso, todos devemos dar o nosso melhor para compreender a cultura histórica dos outros e como esta afecta as experiências do dia-a-dia;

• Considerar novas métricas para o espaço. Nos EUA, a WalkScore, uma métrica de para avaliar a “caminhabilidade”, tornou-se um método popular de classificar a atractividade de um local. Porque não um EquityScore (índice de equidade)?;

• Universalizar o pro bono. E se todas as profissões tivessem obrigações pro bono? Já é tempo de haver mais serviços gratuitos para quem mais precisa;

• Direccionar as redes sociais para o serviço público. E se, todos os dias, as redes sociais mostrassem, na página de entrada, um resumo ou vídeo que identificasse oportunidades para ajudar a reverter as práticas recorrentes de discriminação na área geográfica desse utilizador?;

• Co-criar. No que se refere à condição urbana, é cada vez mais evidente que as imposições top-down de forma e função fazem parte de uma abordagem pouco favorecida nas democracias actuais. Em alternativa, há um movimento crescente a favor das sinergias da co-criação e capacitação especializada dos cidadãos afectados, que são quem conhece melhor os territórios onde vivem;

• Por fim: a consultadoria é necessária? Nem sempre. Num contexto de pandemia, foi costume de vários profissionais adaptar a sua área de especialidade às circunstâncias actuais e prescrever soluções. No entanto, a melhor oportunidade de emprego nos meses que se seguem pode ser o de facilitador, alguém que pode juntar uma receita colectiva para a recuperação do local que está ainda para acontecer.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 28 da Smart Cities – Julho/Agosto/Setembro 2020, aqui com as devidas adaptações.