O que é a realidade hoje, em plena era digital? Num mundo cada vez mais virtual, quando olhamos o que é que vemos? Apetece dizer, quanto mais olhamos menos vemos. O “Pare, escute e olhe” de ontem, já não chega nos dias que correm. Paramos, mas não reparamos, escutamos, mas não ouvimos, olhamos, mas não vemos. Estamos em apuros. O nosso mundo encolheu dramaticamente e o drama dos limites é, também, uma anunciada tragédia dos comuns. Ao encolher, o nosso mundo colocou os bens comuns da humanidade ao alcance dos irresponsáveis e perante o risco iminente de colisão. Façamos então uma brevíssima incursão ao centro do mundo e tentemos declinar alguns paradoxos da realidade hoje, bem como a eventualidade de uma tragédia dos comuns.

Em primeiro lugar, vivemos numa cultura da representação e da simulação, a cenografia e a coreografia são atividades de composição extenuante que nos deixam próximos da exaustão. Imagine-se, agora, o princípio da realidade a contas com a simulação dos objetos quando estes, por via da internet das coisas, começarem a ditar, também, a sua realidade.

Em segundo lugar, quando todos comunicarem entre si – pessoas, coisas e inteligência artificial – através de uma internet totalmente acessível e distribuída teremos atingido o paroxismo absoluto, uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado, se quisermos, uma espécie de grande indigestão coletiva.

Em terceiro lugar, o nosso arsenal teórico e, muito em especial, o campo das ciências sociais e humanas, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, com origem no iluminismo moderno e na cultura analógica estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital.

Em quarto lugar, e este é o grande paradoxo da realidade, quanto mais incerteza mais liberdade. Isto é, alarga-se o campo das possibilidades e logo, também, o campo do episódio acidental. Por outro lado, os sinais dessas interações acidentais podem ser de tal modo fortuitos e furtivos que dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais e instrumentais habituais.

Em quinto lugar, a realidade não para de aumentar todos os dias à medida que a inteligência se transfere para ecossistemas e ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência. As faculdades humanas estão a transitar para fora do seu habitat biológico, o corpo humano, para se instalarem em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos. Mergulhámos num imenso oceano de informação, experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção e, menos ainda, a economia da antecipação.

Dito isto, no passado, o drama dos limites, a tragédia dos comuns e a noção de risco moral não tinham o alcance e a amplitude que têm hoje. No tempo do capitalismo urbano-industrial, o progresso e a utopia estavam à nossa frente, hoje, porém, à nossa frente, parece estar uma mistura acre de risco, ansiedade e distopia. Por isso, e em face das grandes transições – climática, ecológica, energética, digital, transumanista – o drama dos limites, a tragédia dos comuns e a extraterritorialidade, alertam-nos para as seguintes interrogações e desafios:

– Será que, perante os desastres climáticos e a tragédia dos comuns, a transição ecológica e energética será suficiente para repolitizar o nosso tempo, recolocando a equação do tempo no registo certo? Ou será que a transição e a adição digitais contribuirão, antes, para despolitizar as nossas relações pessoais e sociais, tornando-nos, cada vez mais, idiotas úteis dos novos poderes instalados?

– Será que o medo, a ansiedade e a insegurança transformarão a esfera pública num espaço de transação de riscos, ameaças e perigos que põem em causa, constantemente, a nossa confiança e reputação, numa espécie de grande irmandade entre o Big Data e o Big Brother? Ou será que os principais protagonistas da política contemporânea têm consciência, em toda a sua amplitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência?

Há, todavia, boas razões para estarmos otimistas. A ecologia, a economia e a tecnologia convergem em muitas áreas: a redução das pegadas e o sequestro de carbono, a intermobilidade urbana, as medidas de redução, reciclagem, reutilização e reparação, as economias de proximidade e os consumos partilhados, as dinâmicas de inovação social e cultural, a smartificação dos territórios e sua inteligência coletiva, as leis europeias sobre proteção da privacidade e inteligência artificial. No final, a responsabilidade prospetiva partilhada, as comunidades de risco e uma economia dos bens comuns, face ao risco iminente de colisão, serão as marcas decisivas do nosso próximo futuro.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 45 da Smart Cities – outubro/novembro/dezembro 2024, aqui com as devidas adaptações.