Em 2020, trilhou a pé 832 quilómetros, em 58 dias, ao longo da costa portuguesa a recolher lixo das praias, acompanhado de um ukulele e de uma garrafa de água reutilizável. Depois da The Plastic Hike, deu seguimento, neste ano e já sobre rodas, à The Butt Hike, durante a qual foram apanhadas 1,1 milhões de beatas de cigarros. Andreas Noe é conhecido como The Trash Traveler e conta já com uma equipa de oito voluntários e inúmeros parceiros. Mais do que limpar, o objectivo é consciencializar a comunidade para a poluição de plástico e promover a economia circular.
Um dos objectivos simbólicos para a iniciativa The Butt Hike, que começou em Viana do Castelo, em Agosto, e terminou em Tavira, em Setembro, era recolher, pelo menos, um milhão de beatas de cigarro. Conseguiram ainda mais. Que significado retira disto?
Um milhão de beatas é um belo feito que conseguimos concretizar, mas estaria feliz independentemente de o atingirmos. O projecto não é acerca de limpar. Pode parecer um pouco contraditório visto que estamos a fazê-lo, mas a iniciativa tem mais a ver com mudar hábitos e atitudes e sensibilizar as pessoas com algo especial, daí esse objectivo simbólico.
Para mim, é bonito ver quantas pessoas se juntam para aumentar a consciencialização [para o impacto da poluição]. Neste ano, tivemos o apoio de mais de 600 pessoas e mais de 70 ONGs e iniciativas, o que mostra que muitas pessoas estão preocupadas com o ambiente e querem contribuir para espalhar a mensagem.
Recolhermos este montante espectacular de beatas é admirável, mas penso que é também chocante. Se fizermos os cálculos, precisámos de investir dois meses para apanhar um milhão de beatas de cigarro – uma quantidade que vai parar ao chão em duas horas e meia em Portugal. É um “abre-olhos”.
A forma como veicula esta séria questão da poluição de plástico é caracterizada como sendo mais descontraída e divertida, tendo também uma vertente artística. A visão dos parceiros do projecto estava alinhada com esta abordagem?
A minha abordagem tem a ver com a minha personalidade: estou sempre a tentar falar com as pessoas com respeito e a tentar perceber outros pontos de vista. Uma pessoa pode deitar uma beata ao chão e não estar bem consciente do impacto que isso tem, por exemplo. Por isso, acho que, com uma abordagem e uma discussão mais positivas, conseguimos alcançar essas pessoas, que até estão receptivas a mudar as suas atitudes.
Contudo, também sei que a poluição de plástico – dentro da qual usamos as beatas, que também contêm plástico, como um vector – é um problema muito sério. Temos muitos parceiros que estavam a abordar a questão de forma diferente. Ainda assim, em termos de como o nosso projecto é percepcionado, o feedback que temos recebido, inclusive dos parceiros, é completamente positivo.
Aquilo de que gosto muito no projecto é o facto de ser inclusivo. Temos pessoas a participar de todo o tipo de áreas e com tantas formas diferentes de olhar para o problema, algumas mais sérias, outras mais científicas, outras mais artísticas. Isso é interessante. Eu quero unir essas pessoas para lidarmos com o desafio que temos porque não há apenas um caminho, não há só o caminho mais positivo e divertido, com o ukulele e com a arte. Precisamos de abordagens diferentes para alcançar um maior número de pessoas.
A ideia é que as beatas sejam expostas em diferentes locais. Porquê esta escolha e como vão agilizar este processo?
Nos dois meses da Butt Hike, experienciei que limpar não é tão importante porque as pessoas agradecem, mas não ficam chocadas. Aquilo que é realmente impactante é colocar muitas, muitas, muitas beatas de cigarro num só lugar e ter as pessoas a pararem e a perguntarem-se “que raio é isto?”. Então, começam a pensar no problema.
Por isso, as beatas de cigarro estão em bio-contentores de plástico, que vão ser fixados a uma pirâmide – uma de quase um milhão de beatas ou, se o recinto for mais pequeno, de cerca de 500 mil. Além da quantidade enorme de beatas, a pirâmide será complementada com descrições, para explicar melhor a poluição do plástico e o impacto ambiental de deitar fora as beatas, e com pequenos ecrãs, para as pessoas se sentirem inspiradas duma forma mais artística com o projecto Trash Traveler.
Neste momento, estou a desenvolver os vídeos e as placas descritivas. Vou estar a fazer isso até Janeiro e, a partir daí, o processo [de exibição da pirâmide] estará pronto para arrancar. A ideia é levar esta pirâmide a eventos e a escolas, por exemplo, que são a melhor via para a consciencialização – as crianças são muito puras e se vêem algo de errado a acontecer, como deitar lixo ao chão, não percebem e tornam-se “guerreiras” ambientais também. Já estabelecemos alguns contactos com professores de diversas escolas em Portugal e com municípios, que nos perguntam se podem reservar a pirâmide.
Referiu os municípios. No geral, estão receptivos a este tipo de mensagens? Consegue já ter alguma percepção sobre se existe alguma tendência nos que se mostram mais interessados?
O Trash Traveler está a decorrer há dois anos e, desde há um ano para cá, tem sido cada vez mais um projecto comunitário. Estamos no início, mas, neste ano, enquanto andámos pela costa portuguesa, estivemos a trabalhar mais de perto com oito municípios [de um total de 12 que estão a apoiar o projecto]. Estabelecemos uma boa relação e sentimos que apreciam a iniciativa. De resto, acho que, em geral, os municípios maiores têm sempre mais coisas a acontecer e com que lidar. Ainda não trabalhámos, por exemplo, com Lisboa. Mas acho que conseguirei responder melhor a esta pergunta num par de anos, depois de ter tido mais experiências a este nível.
Actualmente, o projecto conta com o apoio das câmaras municipais de Albufeira, Cascais (programa Maré Viva), Espinho, Esposende, Mira (projecto MoverMira), Odemira, Sesimbra, Setúbal, Sintra, Tavira, Torres Vedras, Vila do Bispo. Conta ainda com o apoio da junta de freguesia de Gafanha da Nazaré e da junta de freguesia de Santa Maria, São Pedro e Sobral da Lagoa (Óbidos).
Além das pirâmides, as beatas de cigarros vão também ser reutilizadas, em alinhamento com a ideia de economia circular. O que têm em mente?
Sim, o projecto chama-se “biatacircular” e é desenvolvido em parceria com a Nãm Urban Mushroom Farm e a Rede Biatakí [movimento para reduzir a poluição causada pelo descarte de beatas]. No dia 12 de Novembro, começámos o nosso primeiro experimento e fomos à Nãm, que faz a reutilização criativa [upcycling] de borras de café para, misturando palha e micélio, cultivar cogumelos. Nós queremos misturar essa massa com as beatas de cigarro. Os cogumelos, sendo os melhores upcyclers e recyclers na natureza, conseguem eliminar as toxinas do produto para, no final, termos uma nova massa não tóxica. Será um tipo de massa dura, uma espécie de tijolo. Depois, no final do próximo ano, pretendemos usar esses “tijolos”, porque temos muitos, e também plástico do oceano para construir uma pequena casa. Ainda não temos a certeza de qual vai ser o desfecho, se irá funcionar ou como vai funcionar.
Para mim, mesmo que esteja apenas a apanhar lixo nalgum lado, é muito importante ter este foco nos processos circulares e preconizar a importância da economia circular. É uma experiência que queremos fazer para mostrar que é preciso fechar o círculo e que podemos encontrar valor até em beatas de cigarro e não as ver apenas como lixo. Podemos recuperá-las e dar-lhes outro propósito.
Nesta fase em que estamos, reciclar não é suficiente. Se pensarmos a nível mundial, apenas 14% do plástico é reciclado, um valor muito baixo. Devemos focar-nos em Recusar, Reduzir e Reutilizar, para não estarmos focados na desculpa de “podemos reciclar”. Nesta perspectiva, reduzimos, em primeiro lugar, o consumo de plástico e o montante de lixo que produzimos e, assim, as empresas de reciclagem e de resíduos também têm de lidar com menos embalagens e podem aumentar a taxa de reciclagem.
Já tem em vista um projecto novo. Pode falar mais sobre isso?
Eu quero focar-me de novo na poluição de plástico, na linha da frente. O novo projecto será uma aventura maior do que as anteriores. Ainda não posso revelar detalhes, mas será novamente um projecto em que todos podem participar, municípios, empresas, associações, pessoas, em actividades de limpeza e de consciencialização. O projecto será anunciado em janeiro ou fevereiro [de 2021].
Disse que gostaria de levar projectos similares à Alemanha, onde nasceu. Essa hipótese ainda está em cima da mesa? E, nesse caso, acha que o projecto que iniciou cá teria continuidade?
Sim, a dada altura, estou a pensar fazer algo na Alemanha, mas agora estou a sentir-me mais em casa aqui em Portugal. Não o faço por o problema da poluição ser pior aqui do que em qualquer outro lugar no mundo. Faço-o cá porque adoro o país e é onde estou. Mesmo nos próximos anos, vou estar a desenvolver projectos conectados a Portugal.
Acho que também aqui há uma certa beleza no Instagram e nas redes sociais em geral. Não importa onde a pessoa esteja, consegue estar sempre conectada ao projecto. Exemplo disso é que tenho algumas pessoas na Alemanha a seguir os percursos aqui em Portugal e também tenho feedback de pessoas de outros países, como Seicheles e os Estados Unidos. É por isso que estou a desenvolver o projecto maioritariamente em inglês, para conseguir plantar a semente por todo o lado no mundo.