A situação de autêntico Estado de Excepção que se vive em Portugal em virtude da expansão da pandemia Covid-19 e do accionamento do estado de emergência com a obrigatoriedade de isolamento social e quarentena, bem como as limitações à liberdade de circulação e de actividades económicas, acirraram a discussão em torno do direito à habitação em Portugal. Os colectivos e associações de defesa deste direito souberam capitalizá-lo como direito humano pela dificuldade de acesso à habitação em condições de habitabilidade digna e que permitem o isolamento requerido pelas autoridades políticas de saúde, catapultando este assunto para o topo da agenda social e política.

Multiplicaram-se os protestos digitais, campanhas, abaixo-assinados, petições ou até ofícios e memorandos dirigidos às autoridades políticas com responsabilidade na matéria. No passado dia 16 de Março, a Associação dos Inquilinos Lisbonenses enviou um ofício ao Senhor Primeiro-Ministro, a todo o Governo e grupos parlamentares, sugerindo que, tendo em conta a gravidade e a excepcionalidade do momento Covid-19, não só deveriam ser suspensos os despejos, como deveria ser decretada a suspensão da legislação do arrendamento no que respeita a prazos, que só deveriam começar a contar findo o período de contingência. Considerou-se que os senhorios não devem poder invocar a denúncia ou a oposição à renovação de contrato de arrendamento durante o período de contingência. Por fim, defendeu-se também o diferimento do pagamento das prestações dos empréstimos para compra de habitação por parte do cidadão comum ou no caso da aquisição de propriedade para associações sociais, culturais, etc. Todas estas medidas servem como forma de protecção à morada de família enquanto perdurar a situação de pandemia e quarentena.

Nesse mesmo fim-de-semana, já a Associação Habita e o colectivo Stop Despejos tinham produzido um manifesto intitulado “Como se faz quarentena sem casa?”, subscrito por mais de 50 associações e colectivos, incluindo a plataforma Morar em Lisboa. O referido manifesto deu origem a um abaixo-assinado, que reúne cerca de 2500 assinaturas. O manifesto pede o fim imediato dos despejos, o realojamento imediato de todas as pessoas e famílias despejadas e dos que se encontram a viver na rua, a requisição de casas vazias, sejam apartamentos turísticos, sejam casas de luxo ou municipais, para realojamentos de emergência. Por sua vez, são pedidas também a suspensão do pagamento das rendas das casas para todas as pessoas afectadas pela crise, a suspensão do pagamento dos créditos habitação e das hipotecas, a suspensão das rendas dos espaços sociais, como colectividades e associações, bem como a suspensão das rendas de pequenos comércios e de pequenas empresas afectadas pela crise.

Neste contexto recente dramático de expansão da pandemia e de vigência do plano de contingência Covid-19, a intervenção destas e de outras associações foi fundamental para obrigar a democracia representativa a compreender e agir em conformidade perante o imperativo categórico de defesa da habitação para toda a gente. Uns mais moderados, outros mais radicais, uns mais institucionais, outros mais basistas, revelam um esforço de cidadania participativa para uma outra agenda política. Mas a maior valência deste amplo espectro de intervenção, bastante diferenciado, está precisamente na diversidade de actuação, e, sobretudo, na complementaridade, integração e união na luta.

“Neste contexto recente dramático de expansão da pandemia e de vigência do plano de contingência Covid-19, a intervenção destas e de outras associações foi fundamental para obrigar a democracia representativa a compreender e agir em conformidade perante o imperativo categórico de defesa da habitação para toda a gente.”

A Assembleia da República acolheu com aprovação e com sentido de urgência algumas das propostas feitas, e o consenso do plenário levou a que o Senhor Presidente da República acabasse de promulgar, no dia 19 de Março a Lei 1-A/2020, “Medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, no qual se determina que sejam suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega do imóvel arrendado, quando o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.

Para além disso, foi criado um regime extraordinário e transitório de protecção dos arrendatários que determina que, até à cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica Covid-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, ficassem suspensas as denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional (comercial e associativo) efectuadas pelo senhorio e a execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente.

Ainda que conscientes de que estas são medidas excepcionais e temporárias, associadas ao Estado de Emergência gerado por esta crise pandémica, no horizonte pós-covid, alguns vislumbram que estas políticas de cariz anti-capitalista, tomadas por um Estado social robusto, possam antecipar alguma mudança de regime de transição pós-capitalista. Não esqueçamos, porém, que estas são medidas biopolíticas, tomadas num contexto de totalidade sistémica neoliberal, de forma a reproduzir os corpos e as massas da força de trabalho e de consumo. Afinal, é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.