Quando pegamos no novo livro do urbanista canadense-dinamarquês Mikael Colville-Andersen, já sabemos que a bicicleta vai ter um lugar de destaque. Mas engane-se quem pensa que este é um livro sobre ciclovias, The Definitive Guide to Global Bicycle Urbanism é, acima de tudo, um livro sobre urbanismo e, sem dúvida, um must read para quem quer (re)fazer cidade.
“Este é um livro sobre bicicletas, mas é também um livro sobre urbanização”. É desta forma assertiva que Mikael Colville-Andersen começa o The Definitive Guide to Global Bicycle Urbanism. Neste livro, lançado em Março deste ano pela Island Press, a bicicleta vai estar num pedestal e o autor quer ter a certeza de que estão todos na mesma página para que o leitor não saia defraudado. Não, não é só um livro sobre bicicletas, é muito mais do que isso. É um livro sobre urbanismo e sobre como as cidades podem e devem responder ao ressurgimento da bicicleta como uma útil ferramenta para as necessidades de deslocação nas cidades. E mais, o autor diz que não é um ciclista, que não se identifica em qualquer forma ou sentido como um. Diz-se apenas mais um morador da cidade moderna que, por acaso, usa a bicicleta para se movimentar na cidade, porque é seguro e eficiente utilizá-la. Toda a introdução é cheia de conhecimento e de pequenas coisas que parecem bastante óbvias e nos escapam muitas vezes.

Ao longo das páginas do livro, que está dividido em três grandes temas e em 20 capítulos, o autor vai deixando algumas ideias que até podem parecer arrojadas e causam algum impacto inicial, mas que, depois de explicadas, passam a fazer muito sentido.
Nos cinco primeiros capítulos, fala-nos da cidade à nossa escala, “the life sized city”, do Urbanismo Ciclável através do design e da importância do desenho da infraestrutura, do papel da bicicleta na vida das cidades, da re-democratização da utilização da bicicleta e da importância de parar o touro (o carro) na loja chinesa de porcelana que é a sociedade. No final do primeiro grande tema, ficamos a saber que construir mais ruas, mais pontes, mais túneis, mais infraestrutura para carros, apenas vai atrair mais carros. Ficamos a saber que a bicicleta pertence à cidade. Que é um meio de transporte, um carrinho de compras, um adereço da família ou pode mesmo ser uma aplicação analógica de encontros. E é-nos recordado que o automóvel, quando surgiu nas cidades, era uma espécie invasora detestada pelos cidadãos. É-nos recordado também o poder da indústria automóvel, que, com uma cultura de medo, conseguiu moldar as cidades, tirando liberdade aos cidadãos. Ficamos a saber também que os avisos que aparecem nos maços de tabaco se aplicam, na totalidade, aos carros. A importância de abrandar as cidades, para garantir a segurança das pessoas, é também abordada aqui.
Uma das coisas que o autor quer que os leitores claramente retenham é que não podemos deixar 70 anos de ditadura automóvel nas ruas superarem os 7000 anos de democracia que as nossas cidades nos foram trazendo com os mais variados modos de transporte. Sempre se conseguiu circular livremente nas ruas, até chegarem os carros, que fizeram com que a bicicleta – o modo de transporte mais democrático do mundo – fosse considerada persona non grata. Só que, segundo o autor, a bicicleta é como a música: nunca conseguiremos fazer com que o mundo se livre dela.
Do capítulo 6 ao capítulo 14, fala-se do segundo tema: a curva da aprendizagem. E, aqui, o exemplo de Copenhaga é utilizado inicialmente, para se perceber que também nesta cidade houve um percurso feito para retirar os carros e fazer regressar a bicicleta em força. E, para regressar a uma rede ciclável segregada e segura, foi necessária muita vontade política e muita pressão dos cidadãos, especialmente depois de terem estado no poder políticos que chegaram a destruir a rede ciclável praticamente toda para dar lugar a vias rápidas e obras-de-arte disparatadas para o contexto urbano (muito à semelhança do que vamos vivemos hoje em Portugal). Fala-nos da climafobia, do medo do tempo que surge sempre que o clima está diferente da nossa zona de conforto, e de como podemos redescobrir o clima, saindo à rua de bicicleta e adaptando a roupa que temos. E isto também faz parte da curva de aprendizagem na utilização da bicicleta na cidade. A arrogância do espaço é um termo utilizado para descrever o espaço excessivo que as cidades oferecem aos carros (para circular e estacionar) em detrimento do espaço para peões e ciclistas. Ficamos também a saber que, muitas vezes, esse espaço é espaço morto, em que não circulam nem estacionam carros. E voltamos à mesma conclusão que vamos tirando ao longo de alguns capítulos: mau desenho urbano, bem como engenheiros e arquitetos que nunca utilizaram, nem estudaram a mobilidade em bicicleta a desenhar soluções para a bicicleta. Mikael diz mesmo que, em muitas das soluções que viu, deviam despedir imediatamente quem as desenhou, de tão más que eram. E todos deviam ler o capítulo 9 Mythbusting!, Simplesmente delicioso pela capacidade de destruir os argumentos que os céticos da bicicleta utilizam. Ao longo dos restantes capítulos, aborda-se a questão do desenho, dos pormenores, da arquitetura, das linhas de desejo e de perceber o comportamento dos utilizadores da bicicleta, de pequenos detalhes que quase se traduzem numa linguagem própria de quem usa este modo de transporte. A importância de recolher dados para poder ajudar na tomada de decisão, de medir o número de ciclistas, de ter objetivos e metas para monitorizar e adaptar soluções e atingir o topo da curva.
Nos últimos cinco capítulos, é-nos apresentado o último tema: a caixa de ferramentas. Aqui é onde o Mikael nos faz chegar as melhores práticas no design da infraestrutura. Sem muitos desenhos, o autor descreve e discute as melhores soluções, explicando o porquê de se fazer de uma determinada forma e como o fazer. Dá ênfase à importância de dar prioridade à bicicleta na cidade, sendo que para isso é necessário mudar a pergunta de “Quantos CARROS podemos movimentar na rua?” para “Quantas PESSOAS podemos movimentar na rua?”. O autor deixa ainda um alerta para se equacionarem as bicicletas elétricas com cuidados redobrados e muita racionalidade, especialmente em sistemas públicos. Alerta para a necessidade de um extremo cuidado na escolha do local e da infraestrutura de parqueamento de bicicletas e dedica todo um capítulo à logística urbana feita com recurso à bicicleta. O último capítulo é dedicado à comunicação e aos grupos que suportam a política de mobilidade.
As dicas ao longo de todos os capítulos são imensas. O livro é muito rico, muito detalhado, cheio de pequenos pormenores que revelam a imensa sabedoria que existe no autor. Não é um conjunto de recomendações, mas é um must read não só para os entusiastas da mobilidade em bicicleta, como para todos os que trabalham com cidade. Uma leitura obrigatória para todos os técnicos municipais do país que têm vindo a desenhar redes cicláveis e ciclovias. Certamente que muita asneira deixaria de ser feita, e Mikael deixaria de se rir e de criticar alguns devaneios a que vai assistindo, quando visita, em férias ou em trabalho, algumas cidades.
Copenhagenize: The Definitive Guide to Global Bicycle Urbanism
Autor: Mikael Colville- Andersen
ISBN: 9781610919388
Island Press, Março 2018
Preço: 24.00€ (aprox.)
SOBRE O AUTOR
Mikael Colville-Andersen é um urbanista e especialista em mobilidade urbana. É o CEO da Copenhagenize Design Company (muito em breve, vai abandonar o cargo), fundada por ele em 2009 em Copenhaga, e trabalha com cidades e governos em todo o mundo no sentido de os treinar para se tornarem mais amigos da bicicleta. É anfitrião da série de televisão de documentário “The Life-Sized City”, que estreou, em 2017, e o autor de vários livros.