[…] a vida oscila entre necessidades muito básicas e desejos muito profundos, de atividades diárias a eventos extraordinários, do individual ao coletivo. Então, acho que é por isso que devemos ter uma vida em primeiro lugar; conhecer o objeto que estamos tentando abarcar. Cuidar e melhorar é imprescindível.

Alejandro Aravena, no discurso por ocasião do Prémio Pritzker

A Bienal de Veneza é a mais icónica exposição internacional de arte do mundo, realizando-se desde 1895. Com a sua chancela, a Mostra Internacional de Arquitectura – a Bienal dedicada à Arquitectura –foi estabelecida em 1980. Desde então, este evento atrai um público planetário e marca os verões dos anos pares com o seu impressionante circuito de exposições e pavilhões nacionais, impossível de ser visitado na totalidade. Com cada país procurando superar-se – na sua capacidade para propor novas ideias, demonstrar a excelência do seu trabalho ou lançar desafios aos restantes participantes –, a Bienal permite que uma vasta comunidade se encontre para debater o que de mais extraordinário se vai produzindo por todo o mundo nos campos da arquitectura, do urbanismo, da cidade.

A 15.ª edição da Bienal inaugurou a 28 de maio e fica patente até 27 de novembro. Alguns números dão ideia da escala da operação: 65 participações nacionais e 20 eventos colaterais distribuídos por mais de 60 pavilhões espalhados pelos Giardini, o Arsenale (antigos estaleiros) e a própria malha urbana. O tema deste ano, Reporting from the Front, é desenvolvido na exposição principal, com 88 participações de 37 países – estando Portugal bem representado, com sete instalações. O comissário da Bienal é o chileno Alejandro Aravena (n. 1967), célebre pelo seu projecto Elemental, um ‘Do Tank’ em que habitação de baixo custo foi desenhada e construída de forma incremental, num processo colaborativo, envolvendo os próprios moradores. Liderados pela sua visão, somos levados a compreender para onde vai – ou deveria ir – a Cidade, o que é fundamental quando hoje mais de 50% da população mundial vive em cidades, em resultado da intensificação da migração.

 

Uma imagem vale mais do que…

Aravena escolheu para imagem da Bienal uma fotografia explícita na sua mensagem: alguém (uma mulher) empoleira-se no topo de uma escada metálica para perscrutar o horizonte. Assim, conquista um olhar expandido. Percebe-se perfeitamente que sem esse dispositivo para nos elevarmos acima do usual, do corrente, do quotidiano, não seremos capazes de compreender a realidade, mesmo a mais próxima. Para Paolo Baratta, presidente da Bienal, “esta figura humana [no cartaz] é uma metáfora visual para uma função social da arquitectura (esclarecida): ganhar perspectiva e estar em posição de partilhar conhecimento e experiências, inventividade e pertinência para aqueles que se encontram no solo”.

A Bienal gera, portanto, um espaço público baseado no concreto, profusamente documentado, onde especialistas e leigos se encontram. Numa altura em que “os meios escasseiam, os constrangimentos são férreos e as urgências estão à vista”, mostra casas, escolas, estações de combóio ou edifícios governamentais não tanto enquanto fruto de inovações formais, mas como respostas em tempo útil a situações críticas para a vida humana. Experiências locais, resultado de contextos específicos espalhados por todo o mundo, adquirem assim o carácter de exemplos a seguir globalmente. Esta Bienal tem esse mérito, o de cartografar boas práticas arquitecturais de forma transversal. Entre a exposição principal – as escolhas pessoais de Aravena – e as propostas autónomas dos pavilhões nacionais, desenha-se um mapa de soluções que vão do problema imediato dos refugiados até ao que fazer com territórios destruídos por mega-indústrias desactivadas, da eterna questão do que é “uma boa vida” até a mais chãs, de como desenhar espaços públicos para o usufruto comum.

 

Um léxico ‘mãos na massa’ para a arquitectura sair do impasse

Uma ideia-chave desta edição é a de que se a arquitectura dá forma aos lugares habitados pelas pessoas, isso não pode ser separado de uma reflexão sistémica. O meio urbano deve ser entendido como um puzzle imenso – global – que não podemos entregar a profissionais sem escrúpulos ou políticos sem visão. Termos como ‘grassroots’ e ‘hands-on’, muito presentes em certas práticas espaciais, tornam o programa numa espécie de caixa de ferramentas conceptual e pragmática, não só ao nível das metodologias partilhadas, mas da própria diversidade nos métodos para expor e encenar as ideias. A Bienal, neste aspecto, é muito mais do que apenas um encontro focado numa disciplina.

Esta é também uma Bienal com foco na dimensão social, passando ao lado de muitas hierarquias habituais, ao mesmo tempo que aflora complexas dinâmicas de legitimidade e poder. Demonstra pedagogicamente como qualquer projecto é necessariamente uma síntese de decisões que decorre da interpretação de valores éticos. Não se nota qualquer tendência para o chavão ideológico, percebendo-se antes, com perfeita clareza, que de, um lado da barricada, há quem não queira atentar aos crimes (contra a qualidade, o território, o humano) e, do outro, quem na sua profissão seja movido por uma ética de cuidado e rigor, nomeadamente científico.

Ao dar uma panorâmica, mundo afora, das condições (nomeadamente sócio-económicas) que levaram a um certo estado das coisas (com efeitos na nossa vida de todos os dias), a Bienal é um evento “menos na perspectiva da oferta e mais da procura” (Baratta). De onde os holofotes são apontados para a questão da inovação, com muitos projectos retomando e reinventando conhecimentos obscurecidos. Da questão do craft às que decorrem de múltiplas actualizações da teoria de sistemas, a ‘arte’ da arquitectura procura interligar disciplinas e saberes, e, sobretudo abandona a lógica do star-system para estar atenta a processos ‘bottom-up’, realizados por/em colaboração com arquitectos independentes interessados na participação cívica.

 

Gestos são tudo

Entre gestos de enorme delicadeza e estatísticas que impressionam, passando por actos quase heróicos em quadros de inaudita dificuldade, desenha-se um sentido inédito para a arquitectura, pois o que a Bienal acaba por promover é a ideia de que, no sistema-Terra, ela não pode apenas valer-se de soluções top-down (por mais esclarecidas), mas da promoção de uma cidadania global informada, capaz de lidar com o estético não menos do que com o ético e o técnico, num regime de imagens também ineditamente fluído e exigente.

Em  todo o caso, entre as muitas histórias e imaginários compactados no denso percurso da exposição principal, o que ficará na memória do visitante serão aqueles protagonistas e situações que, por um lado, são sensorialmente mais apelativos; por outro, oferecem no momento algo de conceptualmente estimulante, a partir do qual podemos começar a investigar por nossa conta. Quando isso acontece, cada núcleo da mostra torna-se um portal para entrarmos na arquitectura como arte de habitar a Terra. Esta perspectiva tarda em ser reconhecida, mas a sua visibilidade por via de Veneza espera-se que proporcione algum impulso para a uma mudança de paradigma que, se já vai sendo visível, não aparece no radar de muitos dos agentes fundamentais do sistema urbano.

Em conclusão, se a Bienal decorre sempre, à partida, de uma estrutura organizacional que é, para muitos efeitos, obsoleta – o anacronismo dos pavilhões nacionais, por exemplo –, Veneza é ainda assim um intensa proposta de troca de olhares e experiências, nessa cidade-utopia que, durante seis meses, expõe um poder criativo que atravessa os campos da investigação, da produç ao fime ao cabo, ainda,aemnto diversidade, a redundnecessidade de alterar-se cresce.esponder ao feedbacke a evoluçobretudo realão e da própria comunicação. Esperamos que este breve itinerário, focado primeiro na exposição principal e depois nos pavilhões, sugira como todo este acervo experiencial está a contribuir para cidades mais… inteligentes.

 

Arquitectura útil

Esta “arquitectura que faz a diferença” é, enquanto resultado de tradição e filosofia, ciência e prática, ao mesmo tempo, um instrumento de auto-governação e expressão de uma civilização humanista. Ao final, é um bem público. A indústria cega aos valores humanos verá aqui traços de lirismo; outros temerão o carácter activista; outros ainda sentir-se-ão chamados, independentemente da sua formação académica, para um ‘toca a reunir’ em torno de assuntos que interessam a uma esmagadora maioria da população mundial.

Qualidade de vida, desigualdades, sustentabilidade, tráfego, desperdício, crime, poluição, comunidades, migração, segregação, desastres naturais, informalidade, periferias, habitação… Cito prioridades no esquema desenhado por Aravena, um diagrama possível para que a arquitectura faça mais sentido para todos. Consequentemente, uma das principais mensagens desta edição é a de que a Arquitectura tem de ir ao encontro dos processos sociais. Pode dizer-se que é uma Bienal dedicada à acção, colocando aliás a dimensão teorética entre parêntesis, para levar à letra aquele apelo ao pragmatismo que o futurista Almada Negreiros um dia nos lançou (até hoje, à estação do Metropolitano do Saldanha): “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa, salvar a humanidade”.

O evento funciona em suma como um manual para um novo belo. A noção de altruísmo, bem como a de uma cidadania inevitavelmente transversal e inclusiva, traduzem “um realismo do espírito positivo”, empenhado em concretizar, por via de actos ética e tecnicamente fundamentados, as belíssimas paisagens que o intelecto e a emoção entrevêem no horizonte mas raramente concretizam (a não ser na filosofia, na arte ou na poesia). Talvez isto explique a graça pedagógica e construtiva de eloquentes pedaços da exposição como os raios de luz natural de Transsolar (com Anja Thierfelder) ou a black box de Aires Mateus, em que geometrias de luz dão a conhecer a essência última de diferentes espaços. A sensação final com que o visitante fica é a de que o universal é por via de mais absoluta localidade que pode ser apreendida. Isso torna esta Bienal ineditamente glocal.

 

O trabalho de…

Em termos materiais e visuais, esta é uma Bienal de manufactura e cantaria – uma exposição terrena, dominada por tijolo, cerâmica, madeira e terra amassada, no lugar do aço, do vidro ou do pixel.

Christopher Hawthorne

Desejando ser envolvido emocionalmente na mensagem, o público contemporâneo não está apenas interessado em presenciar a demonstração de resultados, mas propriamente em viver as soluções. No Arsenale e nos Giardini, a primeira sala do percurso principal é aliás a materialização de um statement: os espaços terão sido constituídos pelo material recolhido na Bienal anterior – 14 quilómetros de perfis de alumínio, pendurados densamente do tecto, com 10.00 metros quadrados de ladrilhos em volta… A ‘peça’ procura antever como, caso após caso, a legitimidade da arquitectura vem da sua capacidade de demonstrar, como defende a crítica Mimi Zeiger, rectidão material, lógica espacial e tecnologia.

Nesta imersiva ‘figura de convite’, a Bienal inicia a demonstração de que as coisas podem ser diferentes. Mas, afirma Ziegler, “actos de honestidade não são necessariamente transparentes ou verdadeiros”. E isso explicará um sabor agridoce que pontua essa sala e mesmo toda a exposição, já que aos processos de participação e de envolvimento da comunidade, não é difícil associarmos a ingenuidade ou o populismo. Isto é, se a arquitectura como bem comum não é possível de ser separada da sua própria retórica, isso implica que discurso e prática nem sempre possam ser absolutamente coincidentes.

Mas a verdade é que, em muitos pontos do mundo, existem arquitectos efectivamente envolvidos em mudanças tão extraordinárias como eficazes. Aravena faz questão de introduzir estes projectos da exposição central com um singelo: ‘O trabalho de…’. Segue-se o nome do projectista em que consistiu a sua intervenção, sendo aí explicada a razão para ser considerada uma ’frente’. Através deste registo de comunicação ‘tongue in cheek’ (e até ‘low res’, na sinalética…), a experiência da visita fica de imediato condicionada por esta agradável proximidade.

O trabalho de Francis Kéré no Burkina Faso, relacionando sabedoria local com o conhecimento universal na implementação de escolas… o trabalho de Michael Braungart, radicalmente sustentável e comunicando esse desígnio de forma original e performativa… o trabalho de Anna Heringer e Martin Rauch em prol da arquitectura em terra… o trabalho de Paulo David na Madeira – extraordinária a encenação das suas maquetas… O desafio da cidadania surge por via de percursos idiossincráticos e dos mesmos como processos que integram um campo de escrutínio em que o saber, distribuído, monitoriza as múltiplas formas de ‘desvios’ que são inadmissíveis quando a democracia é assumida como valor comum. Neste cenário, em que boas práticas são comunicadas como experiências e tornadas públicas, a Bienal pode ser vista, ao limite, como uma monumental intervenção de… arte pública, comunicando processualmente a própria essência dos ‘trabalhos em curso’.

 

A intensidade segundo Renato Rizzi

Se Aravena propõe, contra a escassez, a inventividade, e, contra a abundância, a pertinência, as vias práticas para aí chegar são múltiplas. Mas o trabalho de Renato Rizzi merece nota especial. Rizzi é autor de um notável projecto, o Teatro de Shakespeare em Gdansk, onde acaba de concretizar a sua visão da arquitectura como realidade intensa. Nas palavras de Aravena, Rizzi é talvez o elo perdido entre as forças mesquinhas e arrogantes que normalmente definem o nosso ambiente edificado.

A sala dedicada ao arquitecto de Veneza nos Giardini consiste numa câmara de maquetas em gesso, sobre as quais se afirma: “no exercício contemporâneo de navegarmos na internet, onde a arquitectura é publicada e consumida, as miniaturas (thumbnails) têm o fatal poder de homogeneizar os vários níveis de complexidade – um rendering (em que todas as variáveis podem ser controladas pelo autor) é apresentado como se fosse a obra construída (onde nenhuma das variáveis é controlada pelo autor). Eis uma razão para entendermos que o que não é construído não contaÉ fácil ter a ideia, difícil é implementá-la”.

Ora, para Aravena, no magma de imagens na internet, apenas muito raramente um edifício se destaca da uniformidade, e Rizzi conseguiu este nível de controlo no teatro público acima referido, projecto que é algo entre o edifício e a máquina, a arquitectura como intensificação da realidade. A sala de Renato Rizzi demonstra portanto como a arquitectura pode contribuir de forma decisiva para a vida pública, assumindo, na sua conquista do lugar, uma condição sagrada, apesar da secularidade do programa.

Concluindo. Esta Bienal de Veneza resulta da postura positiva de um curador colocando-se em cima da escada que é esta oportunidade única numa vida, para observar o que, pelo mundo fora, está a fazer a diferença ao nível da qualidade da vida nas cidades. Em todos os projectos da extraordinária exposição principal, demonstra-se que, como ele, muitos arquitectos estão a trabalhar com vistas para o futuro, com os pés bem assentes nos seus contextos próprios.