O mês de outubro, com temperaturas amenas e as medidas anti-Covid mais relaxadas, foi perfeito para a Semana de Blockchain de Lisboa, que decorreu entre os dias 18 e 24. A quantidade de eventos que se encadearam uns nos outros contribuiu para fortalecer um ecossistema praticamente desconhecido e underground na capital portuguesa.
Centenas de developers, artistas, designers, influencers, investidores e crypto-geeks aterraram de malas e bagagens para uma semana frenética, que incluía, além das conferências, muitas festas, hackathons, exposições, concertos de música, rooftop parties e raves na praia. Chegava a ser estonteante o ritmo de circulação entre eventos e locais de reunião de todos os participantes que se foram espalhando pela cidade e arredores como um organismo integrado na urbe, mas, ao mesmo tempo, apenas visível aos mais atentos e conhecedores da realidade underground.
Este foi um dos primeiros metaversos que consegui experimentar em Portugal. Uma realidade desconectada, no geral, do mainstream, mas, ao mesmo tempo, ligada e a usufruir de infraestruturas e espaços de eventos noturnos na cidade onde decorreram algumas as reuniões ‘sociais’ mais vibrantes. Quem são estes participantes? De onde vêm? O que fazem? Possíveis respostas serão afloradas mais adiante. Para já, outros metaversos em curso no mundo.
E o que é afinal um metaverso? É um conceito amplo. A palavra é usada no mundo dos jogos e transporta-nos para mundos virtuais. Trata-se, no fundo, de utopias digitais em que muitos participam através da tecnologia que lhes dá acesso. O exemplo mais recente de um gigante tecnológico a desejar criar um metaverso é o Facebook. Mark Zuckerberg, possivelmente cansado de tantos escândalos e brechas na privacidade e segurança, estará a preparar-se para zarpar para um mundo onde o virtual é intangível às leis e normas da sociedade real. Mas não é o único e é espantoso ver a quantidade de admiradores e seguidores que vibram com as novas utopias anunciadas com cidades construídas de raiz ou “zonas de inovação” um pouco por todo o lado, algumas já referidas em crónicas passadas. São indivíduos fora de série, multibilionários e poderosos, que, numa primeira divisão, competem por um lugar na corrida espacial a bordo de foguetões fálicos com destinos incertos. Num segundo patamar, os que se propõem a construir novas cidades de raiz, com as suas próprias leis e estruturas sociais alegadamente “mais livres”. Livres dos regulamentos estúpidos de alguns países. Livres dos impostos absurdos, livres de uma censura social que os oprime.

Vivem no seu próprio universo abonado de seguidores, fãs e colaboracionistas. Desejam construir as novas cidades-estado, suportadas na “liberdade” e mérito, mas sem se aperceberem de que o mundo novo sonhado levará à decadência e ao conflito social, pois existirá sempre um “mundo velho” repleto de problemas que poderiam ser solucionados ou minimizados com uma percentagem desse investimento utópico.
Embora falemos de cidades novas, existe uma âncora que os irá prender à realidade. Muitos destes projetos concebem-se como metaversos na nuvem. A cloud será a nova atmosfera para trocas e interações digitais com todos os dados filtrados e analisados por Inteligências artificiais e novos processos de votação, contratos e autenticação, concedendo identidades novas e autónomas.
“O problema das utopias anarquistas é a essência humana. A concretização deste tipo de sonhos será acompanhada, inevitavelmente, de conflito e insegurança no confronto com a realidade das leis e regulamentos”
O caso da cidade de Telosa é um dos exemplos. Um sonho do bilionário americano Marc Lore e com a participação do arquiteto do regime, o inebriante Bjarke Ingels. São utopias que soam bem: “um futuro mais igualitário, justo e sustentável”; Telosa custará 400 biliões de dólares e será uma “cidade de 15 minutos com espaços de trabalho, escolas e outros serviços básicos”, com poucas distâncias entre si, evitando grandes deslocações dos seus residentes e utilizando veículos verdes e não poluentes, com ênfase para bicicletas, scooters e carros autónomos.
Um sonho, mas é um sonho partilhado por centenas, senão milhares, de outras cidades “normais” em todo o mundo e que poderia tornar-se realidade com os investimentos e recursos tecnológicos e influências políticas destes bilionários. Contudo, não é o que se pretende.
Temos a sensação de que há um novo poder emergente e que está a tentar desancorar-se de normas sociais, leis e regulamentos. Uma tentativa de refundar o capitalismo, tornando-o mais justo e garantindo mais equidade. Sem dúvida de que a sonoridade das palavras é cativante, sobretudo num mundo onde a corrupção é crescente, a incompetência e o clientelismo grassam e os impostos cobrados financiam tudo menos o bem-estar dos cidadãos.
Outro caso, o de Dryden Brown: um universitário que pretende fundar a sua cidade utópica baseada em estátuas NFT (non-fungible token) que serão, depois, replicadas no mundo real. Dryden considera que os EUA têm regulamentos e leis muito restritas, “estúpidas” até, e, por isso, está a considerar Chipre para lançar a sua cidade. Certamente desconhecerá as dores de cabeça dos regulamentos europeus, que, já observando um estado de monopólio dos grandes fornecedores de cloud, se preparam para lançar novo regulamento, supostamente com vista a dar mais transparência e justiça a esta área.
O que têm estes e outros projetos utópicos em comum com Lisboa e a sua relação com a Semana de Blockchain? Tudo se resume à tecnologia que corre nas veias de todo eles. Uma descentralização do poder de decisão assente em blockchain e criptomoedas com especial enfase para a plataforma Etherium.
Se, no caso dos multibilionários, existe capital para lançar cidades de raiz em diversos pontos do globo, há iniciativas e experiências mais modestas, a decorrer em simultâneo, que consistem na aquisição de terrenos com alguma dimensão e co-criação de novas comunidades sustentáveis misturando permacultura, retiros zen e empreendedorismo verde ou ecológico. Em Portugal, são já vários.
Os resultados anunciados são mais ou menos idênticos: justiça e equidade nas decisões com recurso a DAO (Descentralized Autonomous Organizations), smart contracts desenvolvidos em Etherium e NFT, que alimentem a criatividade, a inovação e disrupção de mercados e novas fontes de rendimento.
Enquanto o mundo normal lida com crises energéticas, guerras, pandemias, fomes, alterações climáticas, corrupção, crime e insegurança, entre outras maleitas sociais, há todo um metaverso já real constituído por anarco-crypto-hippy-nerds que usam as mesmas ferramentas para construírem as suas utopias. Todos sonham com um mundo melhor, mas é o mundo real que ainda os acolhe e, no caso de Lisboa, oferece divertimento, sol, praia e comida que o mundo virtual não tem.
O problema das utopias anarquistas é a essência humana. A concretização deste tipo de sonhos será acompanhada, inevitavelmente, de conflito e insegurança no confronto com a realidade das leis e regulamentos. E, no caso dos anarco-capitalistas, a exagerada proximidade com os poderes instituídos, governos e empresas, que sobrevivem e interagem no mundo real. Para qual das utopias tenderá a sociedade nos próximos anos?
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.