Até 2030, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) quer produzir localmente, pelo menos, 15% dos alimentos consumidos na região. A meta faz parte da Estratégia para a Transição Alimentar na AML, que junta 18 concelhos à volta de um objetivo comum: criar um sistema alimentar mais sustentável e resiliente.

Em entrevista à Smart Cities, o primeiro-secretário da AML, Carlos Humberto Carvalho, revela que o caminho passa por valorizar a produção local, ao mesmo tempo que se dinamizam os circuitos curtos e uma rede de distribuição mais sustentável. 

Em que ponto está a Estratégia para a Transição Alimentar na área Metropolitana de Lisboa (ETA-AML) e quais os principais objetivos e medidas que apresenta?

A ETA-AML está concluída e encontra-se agora na fase de procedimentos formais para aprovação pelos órgãos próprios para posteriormente procedermos à apresentação pública. Este documento foi concebido como uma orientação para as políticas públicas metropolitanas de transição alimentar, promovendo uma abordagem integrada e articulada com todas as dimensões relevantes, nomeadamente com as políticas de ordenamento do território.

O principal objetivo da ETA-AML é fomentar um sistema alimentar sustentável, resiliente, inclusivo, seguro e diversificado. Pretende-se assegurar que o acesso à alimentação saudável seja transversal a toda a população, reduzindo o desperdício alimentar e garantindo a preservação do ambiente.

Entre os objetivos principais, destaca-se a valorização das áreas de produção no ordenamento e gestão do território, a implementação de soluções inovadoras para a comercialização e distribuição de alimentos, o incentivo ao consumo saudável e sustentável, bem como a organização dos circuitos de recolha e a modernização dos sistemas de tratamento e valorização de resíduos orgânicos alimentares.

Relativamente aos objetivos e medidas da ETA-AML, destaca-se o compromisso de assegurar que, pelo menos, 15% do consumo local seja proveniente da produção da AML (o objetivo de maior relevância).

E qual a melhor forma de alcançar este objetivo?

Esta é uma das metas mais ambiciosas da ETA-AML. Contudo, é importante salientar que a Área Metropolitana de Lisboa (AML) já excede as suas necessidades de consumo em determinados produtos, como tomate e carne suína. Também em outros produtos a região apresenta uma significativa capacidade produtiva, nomeadamente no milho, no arroz e no peixe, cuja produção ultrapassa em 60% as necessidades metropolitanas, no leite e no vinho, que são produzidos cerca de 40% acima do consumo local, e ainda na batata, nos crustáceos e nos moluscos, cuja produção excede em 20% as necessidades da região.

Estes dados demonstram que uma parte da solução para a concretização desta medida já existe na produção local. Uma fração desta produção já se destina ao consumo regional, mas é essencial compreender qual a percentagem efetivamente consumida localmente e aprimorar os dados estatísticos que permitam monitorizar esta informação.

O desafio agora passa por criar mecanismos para fomentar a outra parte da solução: o consumo local. Para o efeito, é essencial promover os circuitos curtos, incentivando o contacto direto entre produtores e consumidores através de mercados de proximidade, e estimular hábitos alimentares alinhados com a dieta mediterrânica, privilegiando os produtos locais, produzidos de forma sustentável.

Paralelamente, é essencial promover redes de distribuição de proximidade com baixas emissões, reduzindo a pegada ambiental e promover um modelo de negócio mais sustentável. Adicionalmente, a criação de uma marca que identifique os produtos e produtores do sistema alimentar da AML, e que esteja alinhada com os princípios orientadores da ETA-AML, poderá ser um passo fundamental para valorizar a produção local, fortalecer o sistema alimentar metropolitano e contribuir para alcançar esta meta.

AML destaca a importância dos circuitos agroalimentares curtos para a redução das emissões de gases poluentes

Numa região onde 38% das terras ainda são para fins agrícolas, é fundamental assegurar o consumo de produtos oriundos de circuitos curtos?

É importante perceber que os circuitos curtos contribuem para reduzir as emissões de gases poluentes. Promover o consumo de produtos sustentáveis e eliminar a necessidade de um número significativo de intermediários, torna os produtos mais acessíveis e saudáveis.  Além disso, fomentam dinâmicas sociais entre diferentes partes da região, aproximando produtores e consumidores, e, consequentemente, impulsionando o desenvolvimento territorial e social. Assim, os circuitos curtos oferecem vantagens significativas, como a redução do consumo de energia, a diminuição de emissões de carbono e a promoção de uma alimentação saudável.

Adicionalmente, existem benefícios económicos associados ao setor e oportunidades para novos modelos de negócio, especialmente porque o Valor Acrescentado Bruto (VAB) do setor primário é relativamente baixo, correspondendo apenas a 0,4%.

Neste contexto, o turismo assume um papel importante na promoção de produtos provenientes de circuitos curtos, dado o peso significativo deste setor na região, que pode contribuir para o mercado potencial de 21 milhões de consumidores, considerando os habitantes e visitantes da região.

A dimensão dos circuitos curtos está alinhada com o papel que a ETA-AML pretende desempenhar, nomeadamente na integração e articulação de políticas. É, portanto, sublinhado na Estratégia a importância de considerar as dimensões socioeconómicas para que estes mecanismos beneficiem todas as partes envolvidas. Nesse âmbito, destaca-se a reorganização dos produtores e das áreas de produção, a garantia da segurança alimentar, o reforço da coesão social e territorial da AML, a promoção de dinâmicas urbano-rurais e a preservação da biodiversidade.

No entanto, reconhece-se, e está referida na ETA-AML, que não se deve limitar apenas à promoção de produtos provenientes de circuitos curtos. Apesar dos benefícios já referidos, a importação de alimentos de mercados de maior escala pode trazer vantagens, sendo essencial manter dinâmicas comerciais com mercados e produtores externos à AML.

Durante a elaboração da Estratégia traçou-se um retrato dos sistemas alimentares da região, além de identificados os principais desafios e oportunidades. Quais destacaria em ambos os casos?

A elaboração do diagnóstico realizado no âmbito da ETA-AML permitiu identificar lacunas do conhecimento relativo ao setor alimentar, mas também contribuiu para entender os desafios e respetivas oportunidades com que este setor se depara.

Assim, destaca-se, desde logo, o aumento do investimento na investigação relacionada com o sistema alimentar para aprofundar o conhecimento das suas interdependências com os restantes sistemas, nos diferentes níveis (inter-regional; nacional e internacional). Com maior conhecimento estamos mais preparados para poder acelerar e tornar mais eficiente a transição alimentar.

Como já referido, o VAB proveniente deste setor é pouco relevante no contexto regional, o que constitui, sem dúvida, como um desafio e, simultaneamente, uma oportunidade. Torna-se mais evidente quando conjugado à pretensão de incorporar ações inovadoras e tecnológicas no âmbito do sistema alimentar, podendo contribuir para tornar o setor mais produtivo, gerar emprego mais qualificado em todas as diferentes fases do setor alimentar regional.

Por fim, importa salientar, mais uma vez, que a ETA-AML pretende integrar e articular as diferentes políticas públicas metropolitanas, nomeadamente as políticas de ordenamento do território com as políticas alimentares. Para tal, torna-se necessário uma visão coordenada entre o ordenamento do território e a gestão eficiente dos recursos necessários ao funcionamento do sistema alimentar, designadamente o uso e ocupação do solo.

Esta visão deve ter em consideração a aptidão ecológica do solo para fins agroalimentares e a pressão urbana existente, especialmente considerando que a AML se constitui como a principal área urbana a nível nacional, comportando 28% da população nacional.  

Neste sentido, a coordenação de um vasto leque de atores e articulação dos seus distintos interesses e com tudo o que isso implica é, sem dúvida, um desafio. Contudo, é também uma oportunidade para construir um sistema alimentar resiliente, saudável e sustentável.

A AML também lidera, juntamente com o Município de Milão, a Parceria para a Alimentação da Agenda Urbana para a União Europeia. Quais os projetos e iniciativas desenvolvidos neste âmbito?

A Parceria para a Alimentação da Agenda Urbana para a União Europeia, que envolve 26 parceiros de 14 países, encontra-se ainda em fase de construção do seu plano de ação, procurando desenvolver um trabalho sólido e preciso.

Vale a pena recordar que a visão da Parceria para a Alimentação assenta na promoção de políticas que transformem os sistemas alimentares, tornando-os mais sustentáveis e resilientes. Através do alinhamento de políticas e da otimização de recursos, pretende-se impulsionar mudanças sistémicas.

Entre as iniciativas em destaque, sublinha-se a apresentação do documento de orientação, que define a visão da Parceria que assenta três temas principais: financiamento inovador, quadro cidade-região e regulação nacional e europeia.

Adicionalmente, destaca-se um conjunto de webinars que a Parceria para a Alimentação realiza regularmente, abordando cada um destes temas e apresentando estudos de caso que permitem a troca de experiências e boas práticas entre atores europeus e internacionais. Ao longo deste ano, aprofundaremos estas ações assim que for concluído o processo de desenho do plano de ação, do qual resultaram diversas iniciativas.

Ao mesmo tempo, decorre a iniciativa “AML Alimenta”. Que trabalho está a ser realizado neste âmbito?

A AML encontra-se atualmente envolvida num conjunto de parcerias e redes estratégicas que conferem maior relevância à área da alimentação. A iniciativa AML-Alimenta está prestes a concluir-se, encerrando ainda no primeiro trimestre deste ano. Com o objetivo de promover a alimentação saudável na AML, a iniciativa contou com a participação de diversas entidades e incluiu várias ações de sensibilização destinadas a educar as comunidades sobre a importância de hábitos alimentares alinhados com os princípios da dieta mediterrânica, da redução do desperdício alimentar, da sazonalidade dos produtos e do consumo de produtos locais.

Neste contexto, estamos atualmente a desenvolver um acordo-quadro para as refeições escolares e a trabalhar na criação de um website do projeto, que reunirá informação sobre as iniciativas e ações desenvolvidas. Também no âmbito do projeto AML-Alimenta, no passado mês de junho, foi apresentada a Estratégia de Valorização da Produção Local e dos Mercados da AML, fruto de um processo participativo que envolveu os diferentes atores ligados a estes espaços, de forma a garantir o alinhamento com os objetivos do projeto. Pretende-se, assim, desenvolver uma plataforma digital que integre os mercados municipais da AML, destacando os produtores e comerciantes. O objetivo é dinamizar estes espaços, fomentar novas dinâmicas sociais e económicas e contribuir para o desenvolvimento comunitário e regional.