“A crise climática exige que desafiemos os sistemas que perpetuam a desigualdade, a destruição ambiental e a injustiça social”. O alerta é deixado por Patricia Imbarus, fundadora do movimento Ethical Assembly, que este mês organizou em Lisboa uma cimeira com o mesmo nome, assente numa agenda independente, sem patrocínios de grandes empresas ou “qualquer tipo de greenwashing”. No final, os mais de 150 oradores concordaram que “é urgente uma mudança real e sistémica”.
Em entrevista à Smart Cities, a produtora e ativista ambiental romena, radicada há vários anos em Lisboa, diz que Portugal tem feito “alguns progressos admiráveis” em matéria de justiça climática e social, mas defende que muito está por fazer, apontado o dedo à burocracia, à corrupção e ao crescimento de movimentos de extrema direita.
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O que é a Ethical Assembly e porque razão decidiram organizar uma cimeira dedicada à justiça climática e social?
A Ethical Assembly é uma cimeira de justiça climática e social que fundei em 2019 para promover conversas verdadeiramente autênticas e inclusivas em torno da sustentabilidade. Após participar em inúmeros eventos dominados por patrocinadores corporativos, muitos dos quais contribuem significativamente para a crise climática, ficou claro para mim que essas plataformas eram frequentemente comprometidas por greenwashing e modelos pay-to-play. Muitas vezes, as vozes críticas e as soluções grassroots inovadoras são esquecidas em detrimento de patrocínios dispendiosos, limitando a diversidade e o diálogo aberto.
Na Ethical Assembly, concentramo-nos em derrubar estas barreiras, dando ênfase à intersecção da justiça climática com a justiça social, de género e racial. Acreditamos na amplificação das vozes de todos os grupos da sociedade, porque sabemos que a mudança sistémica requer o envolvimento de todos – desde os decisores políticos aos cidadãos ativistas. Com o tempo a esgotar-se para enfrentar a emergência climática, esta abordagem inclusiva e intersectorial é essencial!
Que ideias, mensagens e conclusões resultaram da cimeira?
A cimeira da Ethical Assembly deste ano, que durou dois dias, foi uma experiência intensa e inspiradora, reunindo mais de 150 oradores e 70 sessões, para além de um festival de cinema, workshops e vários eventos paralelos. Ao cobrir um espectro vasto de tópicos, que vão desde a agricultura regenerativa e a moda ética à saúde dos oceanos e à green finance, surgiu uma conclusão fundamental: é urgente uma mudança real e sistémica. Os oradores sublinharam que a resolução da crise climática exige que desafiemos e transformemos os próprios sistemas que perpetuam a desigualdade, a destruição ambiental e a injustiça social.
Outra mensagem ressonante foi o poder das conversas abertas e honestas. O nosso grupo diversificado de oradores e participantes, provenientes de todos os setores, sublinhou a importância de estabelecer um diálogo significativo sobre temas complexos e muitas vezes desconfortáveis, quer se trate da responsabilidade empresarial, do consumo ético ou das intersecções da justiça social e climática. Além disso, não nos podemos dar ao luxo de abordar estes tópicos em silos; em vez disso, temos de promover alianças intersectoriais e novas formas de colaboração.
Talvez a lição mais importante tenha sido o imenso poder da comunidade. Vimos repetidamente como a ação coletiva e os esforços grassroots podem conduzir a mudanças positivas, com inúmeros exemplos de inovações de pequena escala que conduzem a grandes impactos. A assembleia reforçou a ideia de que todos, quer sejam decisores políticos, líderes empresariais, ativistas ou cidadãos individuais, têm um papel fundamental a desempenhar na resposta a estes desafios globais.
Já disse em várias ocasiões que muitas conferências sobre sustentabilidade são “apoiadas por enormes poluidores e dominadas por narrativas unilaterais”. O que o tornou o vosso evento diferente?
O nosso evento distingue-se pelo facto de ser totalmente independente, com uma agenda orientada para a investigação e um conjunto de oradores meticulosamente selecionado. Não aceitamos patrocínios de grandes empresas nem permitimos qualquer tipo de greenwashing, garantindo a integridade do debate. O nosso objetivo é criar um diálogo aberto, transparente e honesto que acolha todos os grupos da sociedade, desde cientistas, decisores políticos, ONGs, jovens ativistas e muito mais.
As reações que recebemos demonstram o que nos torna diferentes: uma agenda bem estruturada, diversificada e inspiradora, uma atmosfera acolhedora e um espírito de comunidade que se sente real e apaixonante. Ao contrário da maioria dos eventos, não existem passes VIP, nem salas exclusivas para executivos – todos são iguais. Podem sentar-se para almoçar com os oradores inspiradores que acabaram de ouvir, e isso é intencional. Humaniza o espaço, criando magia, acasos felizes e ligações autênticas.
Também evitamos o networking transacional. Os crachás dos participantes não têm códigos QR ou títulos de empresas, o que incentiva conversas genuínas e espontâneas. Queremos que os participantes se apresentem como seres humanos, não apenas como cargos ou títulos, e isso levou a diálogos verdadeiramente interessantes e inesperados. Muitos participantes disseram-nos o quanto gostaram desta nova forma de interagir e como isso os inspirou a pensar mais horizontalmente sobre o seu papel e impacto.
Em última análise, é disso que se trata: juntar as pessoas, eliminar as barreiras e criar uma comunidade dedicada a uma mudança real e sistémica.
Por ser cada vez mais comum, corremos o risco de começarmos a desvalorizar e mesmo desresponsabilizar o greenwashing?
Sim, existe o risco de que a utilização excessiva do termo “greenwashing” possa diluir o seu significado e até desviar o foco da responsabilização das empresas. À medida que a sustentabilidade se torna mais comum, há uma preocupação crescente de que a palavra esteja a ser aplicada de forma demasiado ampla ou utilizada de forma casual, o que pode tornar mais difícil distinguir entre empresas que estão a fazer esforços genuínos e aquelas que estão simplesmente a falar sem seriedade sobre questões ambientais.
Se não tivermos cuidado, o termo “greenwashing” pode tornar-se apenas mais um chavão do marketing, perdendo o seu poder de chamar a atenção para práticas enganosas. Isto é perigoso porque permite que as empresas continuem a adotar comportamentos insustentáveis sem um escrutínio adequado. Para além disso, num mundo em que as relações públicas podem muitas vezes ultrapassar a realidade das práticas empresariais, é importante que mantenhamos a nossa lente crítica aguçada.
A chave é mantermo-nos vigilantes e continuarmos a exigir transparência. A verdadeira responsabilidade advém não só da deteção do greenwashing, mas também da celebração de mudanças reais e da exigência de que as empresas cumpram as suas promessas. Temos de garantir que o greenwashing não se torna uma desculpa conveniente para a inação, ou pior, uma parte aceite do manual das empresas. Para combater esta situação, temos de continuar a promover espaços como a Ethical Assembly, onde possam acontecer conversas abertas e honestas, onde o greenwashing seja denunciado e onde sejam destacadas soluções inovadoras e significativas.
No fundo, embora o risco de desvalorização do greenwashing seja real, a responsabilidade reside no facto de se apurar continuamente a narrativa, promover a transparência e manter a pressão sobre as empresas para que efetuem mudanças mensuráveis e verificáveis.
Qual a melhor forma de fazer justiça climática e, ao mesmo tempo, garantir a igualdade social e de género?
Para alcançar a justiça climática e, ao mesmo tempo, garantir a igualdade social e de género, temos de reconhecer, antes de mais, que estas questões estão interligadas e não podem ser resolvidas de forma eficaz isoladamente. As alterações climáticas afetam desproporcionalmente grupos marginalizados, incluindo mulheres, comunidades indígenas, grupos com baixos rendimentos e pessoas de cor. Por isso, abordar a justiça climática significa confrontar as desigualdades que amplificam estes impactos.
A verdadeira justiça climática é muito mais do que apenas reduzir as emissões de carbono. Trata-se de garantir que aqueles que são mais vulneráveis às alterações climáticas sejam ouvidos, apoiados e protegidos. E isso exige que criemos processos de tomada de decisão inclusivos que amplifiquem as vozes marginalizadas e garantam o acesso equitativo a recursos, oportunidades e soluções. A justiça de género é uma parte fundamental deste processo, porque as mulheres e as minorias de género estão frequentemente na linha da frente dos impactos climáticos – quer através dos seus papéis na gestão da alimentação, da água e dos recursos familiares, quer enfrentando barreiras sistémicas à liderança e à tomada de decisões.
Um passo em frente fundamental é concentrarmo-nos na mudança sistémica e não apenas em soluções rápidas. Temos de desmantelar os sistemas de desigualdade subjacentes, quer se baseiem na raça, no género, na classe ou na capacidade, que deixam algumas comunidades mais expostas aos riscos climáticos. Isto significa conceber políticas climáticas que não se limitem a reduzir as emissões, mas que trabalhem ativamente para corrigir injustiças históricas e estruturais.
Também é essencial reconhecer a liderança e a resiliência das mulheres e das comunidades marginalizadas. Ao elevar as diversas vozes e centrá-las nas discussões sobre o clima, criamos soluções mais eficazes e equitativas que abordam os desafios ambientais e sociais. No fundo, a justiça climática tem a ver com a criação de um mundo mais justo e equitativo para todos. Trata-se de construir um futuro em que tanto as pessoas como o planeta possam prosperar em conjunto.
“O espaço da tecnologia climática está em expansão, mas grande parte deste investimento continua a seguir os mesmos velhos padrões – concentrando-se no lucro, na quota de mercado e em retornos rápidos, em vez de se focar na mudança sistémica a longo prazo.”
Tem origem romena, mas vive em Portugal há dez anos e tem corrido o mundo a trabalhar ou em missão de ativismo. Como está o nosso país em matéria de justiça climática e social comparativamente com o resto da Europa, por exemplo?
Penso que é importante sermos completamente honestos nesta matéria. Por um lado, Portugal tem feito alguns progressos admiráveis. Existem iniciativas grassroots fantásticas, movimentos liderados por cidadãos e projetos centrados na sustentabilidade, na resiliência das comunidades e na justiça social. Estes esforços são verdadeiramente inspiradores e mostram o poder das pessoas que se juntam para exigir mudanças.
Mas, quando olhamos para o quadro geral, especialmente em comparação com outros países europeus, Portugal está a ficar para trás em termos de políticas ambientais e sociais progressivas. A burocracia é uma barreira enorme, dificultando o acesso de projetos importantes ao financiamento e ao apoio de que necessitam para prosperar. Os fundos podem existir, mas os mecanismos para lhes aceder são muitas vezes inacessíveis ou opacos, o que impede um verdadeiro progresso social. A corrupção e o nepotismo continuam a desempenhar um papel significativo, criando um sistema em que quem se conhece pode muitas vezes ser mais importante do que o que se está a fazer para fazer a diferença.
O que mais me preocupa é a ascensão de partidos e movimentos de extrema-direita, o aumento do racismo e a crescente divisão de classes em cidades como Lisboa e Porto, que estão a ser transformadas em parques de diversões para turistas e estrangeiros abastados através de programas como o Golden Visa. Estas políticas estão a aumentar as desigualdades e não estão a contribuir de forma significativa para o bem-estar das comunidades locais.
Estamos numa encruzilhada crítica. Podemos continuar neste caminho, permitindo que os sistemas injustos se instalem, ou podemos redirecionar a nossa energia, recursos e inovação para a criação de um futuro que seja justo, inclusivo e sustentável. Neste momento, a nível governamental e empresarial, há uma sensação de retrocesso. Porém, a nível dos cidadãos, há uma onda de energia e de empenhamento como não se via há uma década. Isso dá-me esperança. Ver as pessoas nas ruas, a organizarem-se, a lutarem por um mundo melhor, mostra que a mudança é possível. Não é demasiado tarde!
Temos de nos perguntar: De que lado da história queremos estar? Não nos podemos dar ao luxo de ficar na margem, porque não fazer nada significa estar do lado dos opressores. Temos o poder de moldar um futuro diferente, mas vai ser preciso que todos nós, trabalhando coletivamente, o façamos acontecer.
Que desafios espera Portugal e o resto do mundo em matéria de sustentabilidade?
Esta é uma questão tão crítica, que nos obriga a ser brutalmente honestos sobre o estado das coisas. Estamos num momento crucial, não apenas para Portugal, mas para o mundo, no que diz respeito à sustentabilidade. Os desafios que enfrentamos são imensos, e enfrentá-los exigirá mais do que apenas mudanças incrementais – exige um repensar total da forma como vivemos, trabalhamos e interagimos com o nosso ambiente e uns com os outros.
Em primeiro lugar, um dos maiores desafios é a diluição do termo “sustentabilidade”. Tornou-se tão utilizado que corre o risco de perder o seu verdadeiro significado. As empresas, os governos e até os indivíduos estão a utilizar cada vez mais a linguagem da sustentabilidade, mas sem uma compreensão profunda ou uma ação genuína que a sustente. Estamos a assistir a um greenwashing generalizado, em que a sustentabilidade é mais uma ferramenta de relações públicas do que um compromisso sério de mudança. Para resolver este problema, precisamos de enquadramentos claros e acionáveis sobre o que é realmente a sustentabilidade – enraizados na ciência, na justiça e no pensamento a longo prazo, e não apenas em palavras-chave como relatórios ESG ou eco-iniciativas simbólicas.
Outra questão crítica é o facto de a sustentabilidade se ter tornado a nova corrida ao ouro. O espaço da tecnologia climática está em expansão, mas grande parte deste investimento continua a seguir os mesmos velhos padrões – concentrando-se no lucro, na quota de mercado e em retornos rápidos, em vez de se focar na mudança sistémica a longo prazo. Temos de deixar de ver a sustentabilidade como a próxima oportunidade de extração e lucro, e começar a pensar em termos de regeneração, resiliência e prosperidade partilhada. Isto significa adotar modelos de investimento e desenvolvimento que sejam pacientes, orientados por valores e alinhados com o bem-estar das comunidades e dos ecossistemas, e não apenas com os bolsos dos acionistas.
Depois, há o mito do “crescimento verde”. A ideia de que podemos continuar com um crescimento económico infinito, mesmo que seja verde, é fundamentalmente errada. Num planeta com recursos finitos, isso simplesmente não é possível. O que precisamos de falar é de decrescimento, repensando a forma como medimos o progresso, o sucesso e o bem-estar. Trata-se de um enorme desafio porque vai contra tudo aquilo em que as nossas economias se baseiam, mas é também uma oportunidade para redefinir a prosperidade de uma forma que respeite os limites do planeta e dê prioridade ao bem-estar em detrimento do consumo.
Outro grande desafio é o risco de repetir padrões coloniais e extrativistas em nome da “transição verde”. Por exemplo, estamos a assistir a uma corrida aos recursos como os minerais de terras raras, o lítio e o cobalto, que são essenciais para tecnologias como as baterias e os painéis solares. Se não fizermos esta transição de forma justa – assegurando que estes materiais são obtidos de forma ética e que as comunidades locais beneficiam em vez de serem exploradas – acabaremos por reproduzir os mesmos sistemas de desigualdade e degradação ambiental que criaram a crise climática.
Por último, temos de enfrentar as divisões sociais e políticas que impedem o progresso da sustentabilidade. Desde a ascensão dos movimentos de extrema-direita até à crescente desigualdade e injustiça racial, estas dinâmicas ameaçam fazer descarrilar quaisquer esforços significativos de mudança sistémica. Não podemos falar de sustentabilidade num vácuo. Não se trata apenas de uma questão ambiental – é uma questão social. As comunidades mais vulneráveis são frequentemente as mais afetadas pelas alterações climáticas e as menos responsáveis pelas suas causas. Por isso, o desafio não é apenas reduzir as emissões de carbono, mas fazê-lo de uma forma que aborde as injustiças históricas e crie um mundo mais justo e inclusivo. A justiça climática é justiça social.
Ao fim e ao cabo, temos de fazer uma escolha: Continuamos a fazer as coisas como de costume, disfarçando-as de “sustentáveis”, ou entramos no desconforto de uma verdadeira transformação, uma transformação que vai para além das soluções superficiais para atacar as causas profundas da desigualdade, da degradação ambiental e da exploração?