Desperdiçar passou de moda e a sociedade já não pode dar-se a esse luxo. A proposta dos apoiantes da economia circular encontra inspiração nos processos da natureza e parece simples, mas não é. Fechar o círculo é um desafio de gigantes, mas há que enfrentá-lo.

“Extrair, transformar, descartar”. É assim que consumimos, tiramos, usamos e deitamos fora. Por vezes, somos tentados a pensar na malvadez do consumismo, mas rapidamente somos assoberbados por um modelo económico linear que contraria a própria circularidade e finitude físicas do planeta e que não nos permite alternativa que não seja um encolher dos ombros. Mas, aqui, não há factos alternativos e, se o planeta não é uma linha contínua e os recursos, afinal, até são finitos, talvez faça sentido abandonar esta linearidade na procura de uma solução para um problema que não desaparece. A circularidade pode muito bem ser a resposta.

“Hoje, as pessoas agem como se fosse uma coisa nova, mas claro que não é. A economia circular existe desde há muito, uma mímica da natureza, dos processos naturais, quer se elimine o desperdício, quer aja o desperdício como input para novos processos, nova vida”. É assim que Lindsey Wuisan, 31 anos, fundadora da plataforma Circular Economy Portugal (CEP), se refere ao modelo de economia circular.

Há que entender, antes de mais, do que se trata. Uma economia circular encontra o seu propósito na natureza em que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Lavoisier disse-o bem. Numa economia circular, abandonamos a linha contínua de exploração do capital natural e colocamos um ponto final no consumismo insustentável do “extrair, transformar, descartar”, adoptando, antes, os princípios da regeneração e restauração. A argumentação dos defensores deste modelo económico encontra-se invariavelmente ligada à sustentabilidade e confronta um modelo que já esteve mais longe de entrar em contacto directo com os seus próprios limites físicos. “No final do dia, o objectivo passa por fazer produtos tão amigos do ambiente quanto possível”, e para isso há que ter em conta o tempo útil de vida de um produto, contrariando a realidade, hoje muito presente, de uma obsolescência planeada. “Empresas como a Apple fabricam os seus produtos de forma a que durem dois anos e depois avariem, não deixando hipótese de reparação e obrigando à compra de um produto novo. Isso é obviamente linear. Numa economia circular, os produtores fabricam os seus produtos para que estes durem o máximo de tempo”, esclarece Lindsey.

A nível internacional, o tema está a ser debatido nas altas esferas políticas. No final de Janeiro, os membros do Parlamento Europeu propuseram uma nova meta para 2030: reciclar 70% da totalidade dos resíduos urbanos produzidos no espaço comunitário. Estatísticas de 2014 mostravam que a taxa de reciclagem na zona Euro fixava-se nos 44%. Em Portugal,  dados da Agência Portuguesa para o Ambiente de 2015 dão conta de um número mais tímido: 36%. Muito há a fazer também em relação à deposição de resíduos em aterro. A meta proposta pelos eurodeputados, a alcançar em 2030, é de 10%. E é aqui que boa parte dos esforços nacionais deve incidir: em 2015, 45% dos resíduos produzidos dentro da fronteira acabavam, precisamente, em aterro.

 

Aprender boas práticas

Lindsey está por Portugal há menos de um ano, vinda de propósito da Holanda, e não é o português tímido, embora esforçado, que lhe tolda a ambição. Ainda prefere o inglês nas entrevistas, não vá o português pregar-lhe uma rasteira num assunto que lhe é querido, mas, mal o gravador se desliga, a história muda e é a própria quem assume o desafio de treinar o idioma. “Fiz uma pesquisa por economia circular Portugal no Google e não havia nada, não existia nenhuma organização a trabalhar no tópico. E brinquei com a ideia, ‘bem, talvez possa começar a minha própria organização’”. Pôs mãos à obra e aquilo que era apenas uma ideia deixou de o ser e está hoje a concretizar-se. Escolheu Portugal porque “é um grande desafio”, aqui “há mais para fazer, mais para alcançar”. Hoje, a CEP conta com uma equipa de pessoas comprometidas em acelerar a transição para a circularidade e pretende mostrar que, através de uma abordagem bottom-up, “é possível montar um negócio a partir da sustentabilidade”.

A Holanda “é um dos líderes em matéria de economia circular” e é uma realidade que a mentora e fundadora da CEP conhece bem. Esteve envolvida no primeiro programa do governo holandês para a economia circular e sabe de algumas medidas que não são “rocket science”, nem “dependentes do contexto”, logo, “o que é feito lá pode, também, ser feito cá em Portugal”. Um desses exemplos está na taxa de reciclagem e reutilização dos resíduos provenientes das actividades de construção e demolição. Este sector é responsável pelo consumo de quase metade das matérias-primas extraídas a nível mundial e o volume de resíduos que gera pesa entre 25 e 30% do total de resíduos produzidos dentro do espaço comunitário. Estatísticas da União Europeia, publicadas em 2011, mostram que países como Holanda, Alemanha e Itália registam taxas de reutilização e reciclagem destes resíduos acima dos 90%, enquanto, em Portugal, não alcançavam, sequer, os 50%. Os números confirmam as suspeitas de Lindsey sobre o panorama nacional: “o sector da reciclagem não está a explorar o potencial existente”.

 

Quando os pequenos podem inspirar os grandes

Ser completamente circular e alcançar desperdício zero não é fácil, sobretudo num ecossistema que não promove eficazmente a transição. “É muito complicado fechar verdadeiramente o círculo. Penso que são muito poucas as organizações que conseguem, de facto, fazê-lo”. Lindsey sabe que é “importante começar com pequenos passos” e é precisamente por isso que a CEP “trabalha maioritariamente com empreendedores criativos, em estruturas pequenas”, já que “são mais flexíveis, mais abertos, mais inovadores e são os líderes que mostram que é possível”.

Em Portugal, a economia circular ainda está a dar os primeiros passos. “As empresas ainda têm dificuldades em alcançar [o conceito], em compreender, em investir na sustentabilidade tradicional”. Mas o sucesso dos pequenos pode muito bem ser o catalisador para a mudança dos grandes. “São sempre precisos líderes para inspirar, depois o pelotão vai segui-los, se tudo correr bem”.

Os exemplos começaram já a surgir em Portugal, como é o caso da Nae, uma marca de sapatos com uma filosofia diferente. Nasceu em 2008, pelas mãos de Paula e Alejandro Perez, um casal com filosofia vegan, para suprir um espaço desocupado no mercado nacional. “Havia muito pouca oferta de calçado com uma filosofia de não exploração animal, ecológica e de qualidade, e o que existia não era produzido cá”, conta fonte da marca. Produzem sapatos com materiais alternativos ao couro e adoptaram um modelo de negócio que incorpora vários princípios base da circularidade, reutilizando, para a manufactura dos sapatos, materiais como pneus de carro ou garrafas de plástico.


No lugar de produtos, serviços

O mundo funciona dentro da lógica estabelecida pela economia linear, sobre isso não restam dúvidas. Mas será possível remar contra a maré e, mesmo assim, ter sucesso? É esta a questão que se coloca a quem quer alterar o estado das coisas. A fundadora da CEP está certa de que sim, mas sabe, melhor do que ninguém, que são necessárias mudanças estruturais, até porque o consumismo vigente é incompatível com a ideia de circularidade. E se, em vez de se venderem produtos, fossem vendidos serviços? Esta é uma das soluções óbvias que a economia circular oferece. Vender serviços em vez de vender produtos contribui para a optimização da eficiência e para o consumo sustentável dos recursos. Não precisamos de um berbequim, precisamos da função que ele desempenha, tal como não precisamos de uma máquina de lavar a roupa, mas sim de a lavar –  é esta a mensagem que Lindsey quer passar. Adoptar os princípios da economia circular requer adaptações, mas não significa fazer menos dinheiro. É, antes, “uma maneira diferente de fazer dinheiro. Em vez de conseguir lucro vendendo mais e mais rapidamente, vendendo produtos reais [físicos], uma empresa pode, em alternativa, concentrar mais os seus esforços em vender os seus serviços ou o acesso a um produto, focando-se mais no desempenho”.

Uma mudança tão grande no funcionamento da economia pode deixar a descoberto a aversão à mudança. Os medos e anseios, fundados ou não, ficam à vista. “As pessoas receiam que uma economia circular, mais eficiente com os recursos e menos consumidora, signifique uma economia mais pequena e mais encolhida”. Lindsey não se revê nesta visão e entende que a “desmaterialização e a eficiência no consumo de recursos significam menos custos com materiais”. Isto ganha maior importância, segundo a própria, quando levamos em consideração a flutuação dos preços das matérias-primas. Esta pode ser uma estratégia de antecipação a problemas futuros.

O Repair Café é uma iniciativa que nasceu há sete anos em Amesterdão e que junta pessoas com vontade de ajudar e pessoas que procuram ajuda para reparar as mais variadas coisas.

A partilha como solução

O Repair Café é uma iniciativa que nasceu há sete anos em Amesterdão e que junta pessoas com vontade de ajudar e pessoas que procuram ajuda para reparar as mais variadas coisas. De leitores de CD a bicicletas, o objectivo é entrar com um problema e sair sem ele. Foi a CEP quem trouxe o evento para Lisboa, no ano passado. Pelo meio, há conversas e novos amigos. E o ambiente, onde quer que se realize, é de buliço e informalidade, de sorrisos e entreajuda. A versão lisboeta da iniciativa é recente, mas o sucesso já não passa despercebido. Aos 28 anos, Tânia Salvaterra assume a coordenação do Repair Café Lisboa e fala sobre o evento com entusiasmo, revelando que a aposta está centrada “na coesão social” e na criação de um espaço “onde as pessoas podem partilhar conhecimentos e também criar um pouco um sentimento de comunidade”.

Para Lindsey, a economia de partilha e a economia colaborativa “estão muito ligadas à economia circular, sobrepõem-se” e são respostas na transição para o modelo que propõe. “Partilhar é uma forma de ser mais eficiente no consumo de recursos” e o Repair Café Lisboa é uma das formas de o fazer. Mas está longe de ser a única. A partilha tem o potencial de responder a alguns dos maiores desafios que as cidades enfrentam. O combate pela libertação do espaço ocupado pelo automóvel na cidade pode encontrar uma solução em sistemas de carsharing. “Portugal é um dos países com mais carros por pessoa. Será que precisamos de tantos carros?”. Na Holanda, os sistemas de partilha de automóveis são muito populares e há empresas de sucesso a operar, como é o caso da Greenwheels. “Em cada canto, está um carro que podemos usar e isso significa menos carros por pessoa, menos trânsito, menos emissão de gases com efeito de estufa e isso é melhor para o ambiente e para a sociedade”. Há um problema a resolver, porque “as pessoas têm carros, mas não os usam a toda a hora” e “o sistema de transporte privado, como hoje o conhecemos, é altamente ineficiente em termos de uso de espaço e infra-estrutura”. Mas, embora a solução seja conhecida, requer, no caso português, “uma mudança de mentalidade, as pessoas não estão habituadas ao conceito, mesmo que seja possível”. Quem fala de carros, fala, também, de máquinas de lavar roupa ou até do aluguer de fatos e vestidos para ocasiões muito particulares. Precisaremos mesmo do bjeto, do produto, ou mais da sua função, do serviço?

Uma economia de aparências

Também os municípios têm um papel importante a desempenhar na transição para uma economia circular e o exemplo holandês nunca é de mais. Cidades como Amesterdão e Roterdão já trabalham em programas de política circular. Em Portugal, Lindsey lança o desafio: “as cidades portuguesas também deviam adoptar esta abordagem e expressar a sua ambição”.

É seguro afirmar que um modelo macroeconómico como a economia circular, que pugna por uma sociedade sem desperdício e que se baseia na produção e consumo sustentáveis, deveria ser incentivado. Será que é? A transição para a circularidade pode, até, começar pela economia linear. Mas ainda não estamos lá. Lindsey não duvida de que os preços dos produtos deveriam “reflectir as externalidades”, referindo-se, neste caso, ao impacto social e ambiental negativo a que a produção em massa não consegue escapar. As taxas que existem sobre o uso de água e de energia não são suficientes e, para além disso, “não há incentivo para as empresas consumirem menos”. A subida dos impostos “não é uma medida popular” e “muitas pessoas receiam que tudo vá ficar mais caro, portanto tem de existir um equilíbrio.” Para além disso, o potencial de criação de emprego numa economia circular é, segundo a própria, muito grande e poderia significar uma estagnação, ou até uma inversão, da tendência global de desemprego tecnológico: “Se, por um lado, subimos os impostos sobre a matéria-prima, devemos, por outro, baixar os impostos sobre o trabalho, porque uma economia circular vai necessitar de mais mão-de-obra e isso é positivo, porque queremos dar trabalho ao maior número de pessoas possível. A nossa economia é baseada em mais industrialização, mais mecanização e menos pessoas”. Apesar de não ser contra a tecnologia, a mentora da CEP considera que “deve existir um balanço” e que é necessário “olhar para formas de criar emprego, não para formas de o destruir. E uma reforma do sistema fiscal pode ser uma forma eficaz de conseguir isso mesmo”.

A Nae concorreu recentemente ao Portugal 2020 e viu a sua candidatura rejeitada. Fonte da empresa, em declarações à Smart Cities, conta que “existe a vontade de criar empresas mais sustentáveis, mas poucos incentivos”. E as expectativas não são as melhores, já que “sem ajudas ou apoios, o surgimento de empresas sustentáveis vai ser muito lento”. “Hoje, é mais caro produzir de forma sustentável”, lamenta.

Lindsey sabe que em Portugal “não há muito dinheiro para investir em sustentabilidade, e é por isso que acredita na importância de mostrar que investir numa economia circular não só custa dinheiro como também é capaz de gerar fontes alternativas de receita”.

*O artigo foi publicado, originalmente, na edição #14 da revista Smart Cities. Aqui, com as devidas adaptações.