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Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.

Corria o ano 2014. O dia 22 de setembro antecipava-se chuvoso. Nada que se estranhasse, afinal o Outono já tinha chegado. Mas a dimensão da intempérie surpreendeu todos e expôs graves fragilidades que trouxeram à memória momentos dramáticos do passado na Grande Lisboa.

A tempestade veio pelo Norte. A densidade urbanística e a excessiva impermeabilização dos concelhos limítrofes não conseguiram reter o caudal gerado pela chuva torrencial que se deslocou em força para os grandes caneiros da capital. O Tejo, também nervoso, reagia com turbulência e não cooperava. A maré estava a encher e fazia barreira natural à libertação da rede de efluentes. Sem conseguir ser libertada, a água procurou outras alternativas de fuga. Rapidamente, a rede de saneamento nas zonas baixas da cidade viu a sua função invertida e as tampas de esgoto começaram a saltar como geysers para libertar o excesso de água aprisionada.

Em poucos minutos, a zona baixa de Alcântara ficou inundada. Entretanto, a chuva torrencial chegou a Lisboa e a tempestade tornou-se “perfeita”. Completamente impotentes, restou-nos esperar que esta passasse. Felizmente, não houve vítimas, mas os prejuízos materiais foram muitos e os ensinamentos também.

O dia seguinte antecipava-se conturbado. Muitos dos lesados procuravam culpados e exigiam ser ressarcidos. Reclamavam, com razão, da incapacidade da cidade de alertar os cidadãos para precaveram os seus bens e de coordenar com eficácia o auxílio das forças de segurança e da proteção civil, que se tinham mostrado insuficientes. Um dos autores desta crónica [Jorge Máximo] era, à data, o vereador com o pelouro do saneamento na cidade de Lisboa, e aqueles dias dificilmente serão esquecidos.

Com transparência e frontalidade, fez-se uma reunião pública aberta à comunidade para se explicar o ocorrido e reflectir-se sobre o que falhou, o que poderia ter sido feito e como evitar que voltasse a acontecer. O contexto não era positivo. O investimento e a manutenção da rede de saneamento estavam limitados ao mínimo indispensável, a aguardar a evolução do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL), suspenso há vários anos por falta de financiamento.

A gestão integrada do ciclo da água em Lisboa estava também perturbada pelo impasse nas negociações para a venda de rede de saneamento da cidade à EPAL (Estado), por falta de alinhamento com o Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais (PENSAAR), que o Governo de então pretendia implementar. A agravar, os sistemas de informação municipais tinham sido desenvolvidos de forma vertical e não havia uma cultura de intercomunicação e cooperação entre as várias estruturas de reação rápida da cidade. Havia que assumir: Lisboa não estava preparada. Definitivamente, o contexto não era smart.

A reunião começou nervosa, mas acabou cooperante e compreensiva. Todos sabiam e confiaram que não poderíamos continuar a funcionar da mesma forma. Os erros e a inércia do passado não resolviam problemas. Poucos dias depois, a 13 de outubro, algo semelhante voltou a acontecer. Foi a gota de água. A discussão em torno do PGDL tinha de ser retomada e o município tinha de assumir as suas responsabilidades. Foi o que aconteceu. O PGDL voltou a ser uma prioridade estratégica. Em 2015, foi atualizada a versão do plano original evoluindo para uma solução que contemplava a construção de dois grandes coletores, bacias de retenção e antipoluição das águas, com respostas mais vigorosas para a capacidade de drenagem das águas pluviais da cidade, procurando antecipar os efeitos das alterações climáticas nos quais, a grandes períodos de seca, se sucedem episódios de pluviosidade extrema.

Melhorar a gestão de resíduos e da água é uma das medidas necessárias para criar um futuro mais sustentável, económica e ambientalmente, e para mitigar os efeitos das alterações climáticas nesta região do mundo, num país que sofre já de forma evidente o impacto do aquecimento global.

Apesar da ambição inicial e do arranque da construção de algumas componentes importantes do plano, nomeadamente no que se refere a algumas bacias de retenção, a execução do PGDL voltou a encontrar novas barreiras e a desacelerar nos anos seguintes. Só recentemente, já na presidência de Carlos Moedas, foi formalizada com o Banco Europeu do Investimento (BEI) a assinatura do contrato de financiamento e apresentada a última versão do Plano, cuja coordenação da execução passará a estar a cargo do ex-presidente da câmara municipal de Lisboa Carmona Rodrigues, que, enquanto edil, tinha estado na origem da decisão do lançamento do PGDL em 2004.O prazo de conclusão do plano estima-se agora para 2025, ou seja, mais de 20 anos decorridos do seu planeamento e decisão inicial!

Em paralelo, há que continuar a investir na integração dos sistemas de informação de resposta operacional e a criar uma cultura de planeamento, decisão e informação, baseada na variação de indicadores de monitorização e reação, que permitam antecipar as melhores respostas. Até lá, resta-nos desejar que os efeitos das alterações climáticas, já sentidos hoje em todo o mundo, não se traduzam em novas e agravadas inundações para as quais a cidade ainda não está preparada.

No entanto, é preciso ter consciência de que o PGDL incide essencialmente sobre efluentes residuais e no seu tratamento e escoamento, pelo que não irá resolver todos os problemas de gestão eficiente dos circuitos de água de Lisboa. Outras medidas estruturantes para o subsolo da cidade necessitam também de planos concertados assegurando, nomeadamente, que as medidas de proteção contra as cheias e inundações da cidade sejam complementares e integradas com investimentos nas infraestruturas de distribuição de água potável, de forma a aumentar o reaproveitamento reciclado de águas residuais e pluviais para usos públicos, diminuindo o desperdício de água potável essencial ao consumo humano.

De facto, o desperdício de água potável continua a ser um tema premente, não apenas em Lisboa, mas em todo o país. No último relatório publicado pela Entidade Reguladora de Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), relativo ao ano de 2020, constata-se que muitas autarquias e serviços municipalizados, ao mesmo tempo que faziam apelos à população para poupar água, apresentavam valores de água não faturada, nalguns casos, superiores a 70%, como foram os casos de Estremoz (74,1%), Macedo de Cavaleiros (77%), Vila Nova de Cerveira (82,4%).

A média nacional ponderada é de 28,7%, o que coloca uma enormidade de concelhos do mapa nacional no vermelho. Ainda assim, as grandes áreas metropolitanas, embora mais populosas, têm conseguido maior capacidade de investimento e eficiência na gestão da água, apresentando desperdícios inferiores a 20%. No interior, apenas alguns municípios se pintam de verde, com menos de 20% de água não faturada – muito pouco para um país que esteve em seca severa até às primeiras chuvas deste outono, em quase todo o seu território continental.

Apesar deste retrato, importa salientar que, entre 1993 e 2020, o país investiu cerca de 13 200 milhões de euros em recursos públicos, na melhoria das suas redes de abastecimento e tratamento de águas limpas e residuais, com impacto significativo na melhoria da qualidade de vida das populações. No entanto, o circuito de investimentos foi muito desagregado e tornou o sistema de abastecimento muito complexo, ineficiente e de difícil manutenção.

Para otimizar a gestão do ciclo de água, há ainda outras dimensões onde muito pode ser feito: por exemplo, o reaproveitamento das redes secundárias da distribuição de água não potável de provenientes das ETAR ou o reaproveitamento da água em edifícios inteligentes e parques industriais são ainda quase inexistentes. A reutilização desta água na rega de espaços verdes e hortas urbanas, bem como em uso industrial e na lavagem de ruas, traria evidentes vantagens; apesar disso, continua a ser pouco referida na maioria dos planos integrados de intervenção no subsolo pelas autarquias.

Mas nem tudo é mau. Começam também a aparecer bons exemplos que merecem ser realçados. É o caso das Águas do Tejo Atlântico, SA, responsável pela gestão e exploração do sistema multimunicipal de saneamento de águas residuais da Grande Lisboa Norte e Oeste, que serve uma população de quase 2,5 milhões de habitantes. Esta entidade tem procurado implementar conceitos modernos na gestão de águas residuais tais como a produção de energia a partir do biogás e a reutilização da água para fins não potáveis em lugar de a devolver na totalidade à natureza. Criou a marca “Água+”, que procura colocar no mercado como alternativa à água potável, na agricultura, na rega de espaços verdes e na lavagem de ruas. Claro que, para aumentar este negócio, falta criar redes paralelas de distribuição de água não potável e legislação específica, um pouco por todo o país.

Também a ADENE – Agência para a Energia criou um sistema de classe hídrica denominado AQUA+, dedicado a edifícios mais eficientes no uso de água, que usa uma escala que classifica entre F a A+, conforme o seu nível de eficiência. Esta classificação é, para já, orientada a edifícios residenciais e hotéis e avalia, por exemplo, sistemas inteligentes de gestão da água e práticas de reaproveitamento de águas do duche para os sanitários. Não existe, por enquanto, uma estatística de quantos edifícios beneficiam já desta classificação, mas tudo leva a crer que, num futuro próximo, a classificação hídrica de um edifício caminhe lado a lado com a classificação energética para efeitos de valorização do imóvel.

A eficiência hídrica terá de ser um dos pilares da boa governança das smart cities (e já vamos tarde). Recentemente, David Boyd, relator especial para os direitos humanos e meio ambiente da Organização das Nações Unidas (ONU), visitou o nosso país durante nove dias em setembro e, mesmo sem ter redigido o relatório final, proclamou que o país precisa de medidas rápidas e urgentes para enfrentar a emergência climática. Melhorar a gestão de resíduos e da água é uma das medidas necessárias para criar um futuro mais sustentável, económica e ambientalmente, e para mitigar os efeitos das alterações climáticas nesta região do mundo, num país que sofre já de forma evidente o impacto do aquecimento global.

Portugal está comprometido com a Agenda 2030 e com o Objetivo 6 – Água Potável e Saneamento dos ODS – Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, da ONU, e devemos reconhecer esse esforço. Durante o primeiro semestre deste ano, esteve em consulta pública o novo Plano Estratégico para o Setor de Abastecimento de Águas e Saneamento de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030), cuja visão para a próxima década passa por “atingir serviços de águas de excelência, para todos e com contas certas (…), e que criem valor ambiental, territorial, económico e societal, no quadro de uma crescente tendência para a circularidade”. Este documento faz um diagnóstico exaustivo do retrato nacional e propõe cerca de 70 medidas corretivas, incluindo a proposta de investimento público de cerca de 5 500 milhões de euros na próxima década.

O PENSAARP 2030 poderá ser o documento estruturante para atingir serviços de águas de excelência, universais e economicamente sustentáveis, prestados por entidades gestoras modernizadas, que ajudem a mitigar os impactos das alterações climáticas e melhorem a eficiência hídrica nos setores habitacional, industrial e agrícola.

Para já, as expectativas são elevadas. Faturar água que hoje é desperdiçada, reutilizá-la depois de tratada, voltar a faturar para fins industriais e agrícolas só pode ser vantajoso para todos. Se incorporarmos, nestes ciclos, sistemas de retenção de águas pluviais em zonas de proximidade à sua utilização, isso só pode ajudar-nos a construir um futuro melhor para as nossas cidades. Muitas ideias e soluções podem ser apontadas, mas não nos podemos esquecer de que, sem boa governança e planos deste tipo, estruturados e com boa orientação estratégica, as novas oportunidades de negócio geradas nestas áreas podem sair fortemente penalizadas.

Dificilmente conseguiremos evitar secas severas ou fortes inundações no futuro, mas devemos estar preparados para quando voltarem a acontecer. Saber reconhecer e aprender com os erros do passado e agir de forma proativa e concertada é acautelar o futuro e isso, sim, é smart.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 37 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2022, aqui com as devidas adaptações.