Numa sociedade onde a tecnologia evolui a um ritmo vertiginoso, não é de estranhar que o destino a dar aos Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos (REEE) faça soar alarmes. É preciso poupar o ambiente, mas os números mostram que ainda há muito trabalho a fazer.  

De acordo com dados da Agência Portuguesa do Ambiente, em 2022 foram colocadas no mercado 226.909 toneladas de equipamentos elétricos e eletrónicos. Nesse ano, o último sobre o qual há registos oficiais, foram recolhidas em Portugal 56 mil toneladas através de diversos meios, que foram tratadas sobretudo no país (52.673 toneladas em Portugal e 3.416 enviadas para outros países da União Europeia). Os valores representam cerca de 28% do peso médio dos EEE colocados no mercado nos três anos anteriores, bem abaixo dos 65% que a União Europeia (UE) traçou como meta.  

Os números não têm oscilado muito: em 2021 foram 53,7 mil toneladas, em 2020, cerca de 59,6 mil toneladas e, em 2019, a recolha rondou as 52,5 mil toneladas. “Há uma baixa taxa de recolha e mesmo essa está sobre avaliada”, considera Rui Berkemeier, da associação ambientalista Zero. “As grandes multinacionais enchem o mercado de equipamentos e não estão a cumprir a sua responsabilidade alargada, não há dinheiro para fazer campanhas, recolha, tratamento. O sistema não funciona”, acrescenta, explicando que o ecovalor, ou seja, o valor de prestação financeira devido pelos produtores, embaladores ou fornecedores de embalagens às entidades gestoras de fluxos específicos de resíduos, é “baixo” para as necessidades.  

“Portugal, assim como vários outros países da UE, tem registado aumentos de consumo de novos EEE, fruto de uma sociedade mais digital, mais tecnológica e do desenvolvimento urbano. Este crescimento é influenciado por um maior consumo de equipamentos eletrónicos, com ciclos de vida curtos devido à obsolescência programada, e políticas de gestão de resíduos ineficientes”, aponta Luísa Magalhães, diretora executiva da Smart Waste Portugal.  

Os números nacionais “não são animadores” e a realidade mundial também não. De acordo com “o 4.º relatório Global E-Waste Monitor da ONU, em 2022, apenas 22,3% dos equipamentos elétricos foram corretamente recolhidos e reciclados, de um total de 62 mil milhões de quilos de equipamentos elétricos usados mundialmente, com 7,8 quilos per capita. Em comparação, em 2010, foram 34 mil milhões de quilos, com 8 mil milhões tratados adequadamente”, adianta Luísa Magalhães.  

Mas estes equipamentos têm muito valor. Além do cobre, alumínio e ferro usados habitualmente em fios elétricos e carcaças de eletrodomésticos, as placas de circuito impresso podem conter ouro, prata e platina e as baterias têm metais raros como lítio, cobalto e terras raras. A fileira que trata dos REEE é muito relevante para a recuperação destes materiais, que apresentam um elevado risco de escassez.  

Para se ter uma ideia, o Global E-Waste Monitor indica que, em 2022, os REEE para reciclagem continham 31 mil milhões de quilos de metais, 17 mil milhões de quilos de plásticos e 14 mil milhões de quilos de outros materiais. O valor económico dos metais nesses resíduos foi estimado em 84 mil milhões de euros.  

Intensificar recolha para potenciar setor  

O setor enfrenta diversas dificuldades, desde a necessidade de se intensificar a recolha à existência de um mercado paralelo que urge combater, “para termos mais investimento e trabalho neste setor que tem potencial para crescer”, defende a diretora executiva da Smart Waste Portugal. É, pois, essencial sensibilizar a população para reutilizar e reparar quando possível, entregar o que já não serve, facilitar o acesso a pontos de recolha, fortalecer a fiscalização e rastreabilidade ao longo de toda a cadeia de valor.  

A Smart Waste Portugal considera, ainda, que é premente demonstrar a importância de a indústria utilizar materiais reciclados, aumentando a circularidade e tornando a economia mais resiliente. As “matérias-primas de reciclagem devem inclusive ser priorizadas no contexto da descarbonização. Neste ponto, a UE está a preparar reformas e nova legislação que acreditamos que muito irá acelerar e agilizar este mercado”, antecipa Luísa Magalhães.  

Ricardo Furtado, diretor geral de Elétricos e Pilhas do Eletrão, uma das duas entidades gestoras de sistemas coletivos de gestão de REEE em Portugal, considera, igualmente, que os grandes entraves que continuam a impedir que Portugal apresente melhores resultados nesta área são a acumulação de equipamentos nas casas – um estudo do WEEE Forum, associação Internacional que congrega várias entidades gestoras de equipamentos elétricos usados, em 2022, apontava para a existência, em média, de 74 equipamentos eletrónicos nas casas europeias, sendo que, desses, 13 estão fora de uso e quatro estão danificados – e no mercado paralelo.  

O esforço de recolha de REEE no ano passado mostra resultados positivos. Em 2023 foram recolhidas e encaminhadas para tratamento, pelo Eletrão, mais de 27 mil toneladas de REEE, o “melhor resultado dos últimos anos”. Representa um aumento de 16% face a 2022 e um crescimento de 67% relativamente a 2021. Ricardo Furtado diz que os resultados se devem ao envolvimento dos parceiros operacionais, às campanhas junto da comunidade e ao “aumento exponencial do número de locais de recolha”. A rede desta entidade tem, atualmente, 11.500 pontos, mais 3000 do que há um ano.  

Os resíduos elétricos recolhidos foram encaminhados na sua totalidade para unidades que asseguram o correto tratamento e reciclagem, através das operações de despoluição, reciclagem, e ainda de outras operações que permitem também potenciar a reciclagem e valorização dos materiais. A taxa de reciclagem dos resíduos recolhidos e enviados para unidades especializadas atingiu os 76% em 2023. A de valorização, que inclui reciclagem e valorização energética, chegou aos 83%.  

Mercado paralelo causa prejuízos  

Quanto ao mercado paralelo, leva ao desvio de “milhares de toneladas” e é um problema grave, pois “implica graves prejuízos para a saúde pública e para o ambiente, já que estes aparelhos são tratados sem que seja acautelada a sua descontaminação”. É, por isso, “imperativo fiscalizar e sancionar os agentes económicos que operam” à margem da lei, considera o responsável do Eletrão.  

Também Ricardo Vidal, Diretor geral da Interecycling - Sociedade de Reciclagem, um dos principais operadores de tratamento de resíduos nacionais, realça a importância de haver maior fiscalização para acabar com o mercado paralelo. Há operadores que “vandalizam os equipamentos em função de alguns materiais, mas ignoram a despoluição e outro conjunto alargado de materiais, como plásticos mistos. Em Portugal, têm muito peso face ao setor formal”, explica. Para além disso, são precisas “condições para que as indústrias da reciclagem possam continuar a investir de forma previsível e rentável”.  

O setor formal em Portugal tem capacidade e conhecimento técnico para lidar com este tipo de resíduos, sendo que várias empresas, como a sua, estão a trabalhar aquém da capacidade instalada, revela Ricardo Vidal.  

Em média, há 74 aparelhos no mercado paralelo e nas casas europeias.

À Interecycling, em Tondela, chegam frigoríficos, aparelhos de ar condicionado e monitores que vão para as respetivas linhas, onde se inicia o processo de pré-despoluição. Sofrem, depois, vários processos físico-químicos, para separação de alguns componentes. Muitas frações vão para outras linhas, onde se consegue “mais pureza e qualidade final”, com vista à reintrodução destes materiais na cadeia de valor.  

Quando as “matérias-primas secundárias têm qualidade, há indústria interessada nestes produtos”, afiança Ricardo Vidal. No caso da Interecycling, estes materiais têm como destino tanto empresas nacionais como estrangeiras, que as usam para produzir novos utensílios e equipamentos.  

O lítio ou outros componentes valiosos que são mais difíceis de retirar são enviados para “grandes empresas europeias especializadas na sua recuperação”, nomeadamente na Alemanha, Bélgica e França. Segundo Ricardo Vidal, este tipo de processos “precisam de escala”, que ainda não existe em Portugal.  

Relativamente às substâncias perigosas, são encaminhadas para outras empresas especializadas, que “fazem a sua valorização ou eliminação final”, continua Ricardo Vidal, explicando que em causa estão óleos de radiadores e compressores, cristais líquidos, clorofluorocarbonos (CFC), condensadores, mercúrio.  

Tentam retirar metais valiosos de lixo eletrónico  

Na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), um grupo de investigadores está a desenvolver um processo que permita a recuperação de metais valiosos de lixo eletrónico, para que possam ser novamente incorporados na cadeia de valor. O projeto, que decorre no âmbito da Agenda Microeletrónica do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), arrancou no ano passado e junta equipas de diferentes áreas.  

O objetivo, explica Paula Morais, docente da FCTUC e investigadora no Laboratório de Microbiologia do Centro de Engenharia Mecânica, Materiais e Processos, é desenvolver um processo híbrido inovador. Numa primeira fase, investigadores de engenharia química vão retirar cobre. Depois, é transferido para a microbiologia, onde bactérias e moléculas biológicas ajudam a remover outros metais críticos e de elevado valor, como níquel e ouro, que estão geralmente em menor quantidade.  

“Há empresas que se dedicam à reciclagem deste tipo de lixo eletrónico, mas ainda há muito a fazer, em termos de tecnologia, para trabalhar e otimizar o processo de recuperação”, refere Paula Morais. Os REEE, acrescenta, “são um caso gritante de um resíduo que tem muito valor e que temos de investigar e evoluir tecnicamente para conseguir recuperar os elementos metálicos desses resíduos”.  

“No início dos telemóveis, existia mais ouro numa tonelada de telemóveis do que numa mina aberta. Existiam seis gramas de ouro por tonelada de telemóvel e, geralmente, numa mina da África do Sul, existem três gramas de ouro por tonelada de matéria”, conta Paula Morais. Atualmente já não é tanto mas é um exemplo de como “existe um valor muito grande nestes resíduos, que é preciso estudar e recuperar”. Só assim se caminhará realmente para a circularidade, evitando a extração de novas matérias-primas.  

Os investigadores esperam ter, no próximo ano, o processo integrado em laboratório, para depois se passar para a indústria, que tem manifestado interesse.   

Mudar mentalidade com criatividade  

A Trash4Goods, uma empresa que nasceu de um projeto universitário no Instituto Superior Técnico, acredita que a gamificação pode ser um caminho para incentivar a reciclagem de diversos tipos de resíduos. Atualmente não estão a trabalhar com REEE, mas já tiveram uma experiência com este tipo de equipamentos, num programa que envolveu também a ERP Portugal. Na altura, conta Afonso Ravasco, a empresa verificou que “muitos jovens não entregam estes resíduos, acumulam em casa”. Fizeram projetos-piloto em academias e lojas worten, tendo reciclado cerca de 3.700 itens (cerca de 2 toneladas) em três meses.  

Um dos fatores positivos da gamificação, diz o empreendedor, é “a mudança de comportamento, sobretudo junto dos mais jovens, e deve ser explorada na forma como olhamos como os resíduos para ajudar a atingir as metas”. 

 


Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 44 da Smart Cities – julho/agosto/setembro 2024.