Os municípios estão em contrarrelógio para cumprir a diretiva europeia que obriga a recolha seletiva de biorresíduos. Alguns já têm sistemas implementados, mas outros ainda procuram adaptar-se às novas exigências. O ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, diz que “os que por alguma razão se atrasarem ficam a perder”.
A contagem decrescente aproxima-se do fim. Até 31 de dezembro de 2023, todos os municípios portugueses deverão ter um sistema de recolha de biorresíduos implementando (ou fazer a separação e reciclagem na origem), como acabou por determinar a Diretiva-Quadro dos Resíduos da União Europeia. A poucas semanas do final do prazo, não há dados oficiais sobre o número de autarquias que já começaram a fazê-lo ou que lançaram projetos piloto, mas o processo parece estar atrasado.
Quem o admite é o próprio ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, depois de questionado pela Smart Cities sobre a possibilidade de alguns municípios não conseguirem cumprir o prazo: “Sim, admito. Mas estamos a tentar criar políticas que façam com que os municípios que não tenham iniciado percebam que estão a perder. Porque não terão tantos apoios como aqueles que, entretanto, o fizeram”, disse o governante no final da Conferência Cidades Circulares InC2, realizada em outubro, aludindo à devolução da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR). “Em 2024, vamos aumentar a percentagem da taxa de que o município vai beneficiar em volume, mas também vamos simplificar para que todos os municípios saibam que têm aquele benefício”, acrescentou.
O objetivo é “recuperar o atraso do país no que diz respeito à recolha de biorresíduos”, o que se tornou ainda mais premente depois de a Comissão Europeia ter emitido a Portugal um primeiro aviso de risco de incumprimento das metas de reutilização e reciclagem de resíduos até 2025. Ora, representando os biorresíduos quase 40% do total de lixo produzido em Portugal, facilmente se constata a importância que os “restos” alimentares e os resíduos verdes de parques e jardins assumem para os compromissos nacionais nesta área.
Também a presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), Luísa Salgueiro, assume que “ainda há necessidade de acelerar a implementação da recolha seletiva de biorresíduos durante este ano, através da contentorização e de circuitos de recolha nos sistemas em baixa, mas também maximizando o uso da capacidade”. Ainda assim, garante que os municípios “estão comprometidos com este desígnio nacional, como evidenciam as experiências e os projetos implementados por todo o território nacional”, e acrescenta o que é preciso fazer até ao final do ano para que a evolução seja positiva: “terão de ser executados os planos de gestão e de investimento e de incentivo à adesão dos cidadãos, beneficiando aqueles que mais contribuem para a separação dos biorresíduos”. Para isso, defende a ANMP, também é necessário que haja financiamento com fundos adequados.
O Governo diz que isso já acontece e sublinha que “é muito importante os municípios perceberem que só têm a ganhar”, “não só em termos de volume de fração-resto que deixam de tratar, dos aterros que deixam de ter tanta pressão, da população que lhes fica agradecida, mas também na possibilidade de transformar [os resíduos] em recurso que depois pode ser utilizado”. “Há, portanto, várias formas de aproveitamento, por isso, os municípios que por alguma razão se atrasarem ficam a perder”, conclui.
BONS EXEMPLOS: AS VANTAGENS DE COMEÇAR CEDO
Cascais foi o primeiro concelho do país a fazer recolha seletiva de biorresíduos, ao lançar um projeto piloto em 2018 que abrangeu cinco mil famílias. Os resultados incentivaram a autarquia a expandir o processo para todo o território, o que deverá acontecer até ao final do ano, assente num sistema de co-coleção (recolha conjunta de duas ou mais frações de materiais). Na prática, cada família recebe um caixote do lixo de sete litros e rolos de sacos verdes, onde devem ser colocados os resíduos orgânicos. Depois, estes sacos são colocados no mesmo contentor do lixo comum e levados para a central de triagem e tratamento da Tratolixo. É lá que um separador ótico os distingue, garantindo que, no final, os biorresíduos são usados na produção de energia e fertilizantes. Para a vereadora da Câmara Municipal de Cascais, Joana Balsemão, “o aliar desta dimensão tecnológica ao trabalho porta a porta das equipas explica o sucesso desta opção, a ponto de estarmos a pensar replicá-la noutros fluxos, como os têxteis, cuja recolha também vai passar a ser obrigatória”.
Parceiro de Cascais na Tratolixo, juntamente com Oeiras e Mafra, também o município de Sintra optou cedo por este sistema, ao lançar um projeto piloto em 2020. Dois anos depois, a recolha seletiva foi alargada a todo o concelho e atualmente abrange 45 mil pessoas. O objetivo é chegar às 80 mil no próximo ano, ou seja, 20% da população. Para o setor não doméstico, optou-se por uma abordagem similar no canal Horeca e por uma recolha exclusiva com contentorização própria para os grandes produtores.
A sensibilização da população, através de várias campanhas, tem sido uma das principais apostas dos SMAS de Sintra, a empresa municipal responsável por esta área, que também decidiu atribuir um desconto de um euro na fatura de água e resíduos a todos os clientes domésticos que aderirem ao sistema. Uma solução que, garante Carlos Vieira, diretor delegado dos SMAS de Sintra, teve efeitos imediatos: “a partir do momento em que o fizemos, mesmo sendo um desconto simbólico, isso repercutiu-se logo na procura e no número de adesões das pessoas”.
Também por isso, este tipo de incentivo será alargado às empresas, neste caso, com um desconto de 1,5€. Para Carlos Vieira, trata-se de uma solução mais fácil de implementar do que o sistema PAYT (Pay-as-you-throw), sobretudo em zonas com muita densidade populacional. O responsável dos SMAS Sintra lembra ainda que o trabalho desenvolvido no último ano permitiu um desagravamento da TGR em cerca de 10%: “Isso significa que vamos receber de volta parte do valor que foi pago pelos nossos munícipes; por isso, nos próximos meses, eles irão receber uma nota de crédito relativa aos valores que pagaram no último ano”.
No norte do país, Guimarães é um dos municípios que tem obtido melhores resultados. A recolha seletiva começou em janeiro de 2022, com um sistema porta a porta no centro histórico da cidade, depois foi alargado às escolas e ao setor da restauração, e já neste ano arrancou uma segunda fase em mais nove freguesias, o que permitiu abranger 55 mil habitantes, ou seja, cerca de 48% da população. Só nos primeiros nove meses deste ano, a recolha de resíduos orgânicos aumentou 400% (em comparação com o período homólogo do ano passado), elevando para mais de quatro mil as toneladas recolhidas. Dalila Sepúlveda, chefe de Divisão do Departamento dos Serviços Urbanos e Ambiente do município, disse à Smart Cities que o objetivo é assegurar até 2026 a recolha porta a porta a todos os utilizadores e uma taxa de captura de, pelo menos, 50% de orgânicos, antecipando as metas definidas inicialmente.
Para ela, o “grande sucesso de Guimarães” deve-se ao compromisso político da cidade com a sustentabilidade e às parcerias com várias entidades, mas também ao benefício direto que é dado ao cidadão: “ao implementarmos o sistema PAYT, que já chega a 12 mil pessoas, mostrou-se que havendo uma tarifa mais baixa para os orgânicos as pessoas vão querer recuperar mais”.
Há muito que os especialistas dizem que a maioria dos municípios está atrasada no processo de recolha seletiva de biorresíduos. É o caso de Ana Silveira, professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa, que encontra várias explicações para este facto. “A diretiva que define a obrigatoriedade de recolha de biorresíduos é de 2018. O Regulamento Geral de Gestão de Resíduos, na sequência da diretiva, foi publicado em 2020. E o PERSU 2030, com orientações específicas importantes, é de 2023. Por isso, só quem já fazia a recolha seletiva estará mais bem posicionado para o efeito em janeiro de 2024”, afirma a docente, lembrando que a aprovação dos PAPERSU (Planos de Ação do Plano Estratégico de Resíduos de Sólidos Urbanos), a apresentar até final de novembro, “condiciona o financiamento das soluções no terreno, nomeadamente a aquisição de contentores e veículos, as campanhas de formação e sensibilização”.
Para a docente, algumas dificuldades que os municípios enfrentam (como a falta de pessoal técnico e operacional ou os equipamentos obsoletos) “caminham para a resolução”, pelo que “a mobilização da população para a separação dos biorresíduos é o grande desafio”. “Antes de mais, é preciso explicar à população o que são biorresíduos e porque é que é preciso separá-los. As soluções têm de ser construídas com a população, e a mensagem tem de ser clara e uniforme a nível nacional”, acrescenta Ana Silveira.
MOBILIZAR A POPULAÇÃO E EVITAR CAMIÕES CHEIOS DE AR
Também Ismael Cassoti, da associação ambientalista ZERO, refere que, “de forma geral, o país ainda não está preparado” para a recolha seletiva de biorresíduos. Embora acredite que o difícil nem será cumprir a diretiva, porque ela não diz as quantidades que devem ser recolhidas, é da opinião de que os maiores problemas surgirão depois: “Os municípios estão preocupados com o mero cumprimento, mas, se calhar, deviam estar mais preocupados em garantir que os seus sistemas funcionem efetivamente.
A maioria apostou em contentores na via pública, e realmente esse sistema está a ter uma adesão bastante reduzida”, diz o ambientalista, que defende o sistema porta a porta, em conjunto com a compostagem doméstica e comunitária. De acordo com a ZERO, é frequente haver contentores “a uns 5, 10, 15% de capacidade, o que significa que os camiões estão a transportar grandes quantidades de… ar”. Assim sendo, torna-se difícil cumprir as metas de Bruxelas, a começar pela mais próxima, que determina uma reciclagem obrigatória de resíduos urbanos de 55% em 2025: “Como é que vamos chegar a essa percentagem, e a 60% em 2030, se agora a recolha seletiva é de apenas 20, 22%. Mesmo que consigamos vir a recolher mais 10% com os biorresíduos, ainda estaremos muito longe desses valores”, alerta.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 41 da Smart Cities (Outubro/Novembro/Dezembro 2023), aqui com as devidas adaptações.
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