A menis de um mês da entrada em vigor da diretiva europeia que determina a implementação de sistemas de recolha seletiva de bioresíduos nos municípios, a Smart Cities falou sobre o tema com Ana Silveira, uma das principais especialistas nacionais na área dos biorresíduos.

Numa entrevista escrita, a propósito da edição n.º 41 da revista, a professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa diz que a maioria dos municípios está atrasada neste processo e defende que não há modelos universais, mas sublinha que o sucesso de qualquer sistema terá de passar, necessariamente, pelo envolvimento da população.

Segundo a Diretiva Quadro dos Resíduos da União Europeia, os municípios deverão ter operacional, a 1 de janeiro de 2024, um sistema de recolha seletiva de biorresíduos. Que importância tem esta medida?

Esta diretiva vem concretizar aquilo que já era consensual, a importância dos biorresíduos na composição dos resíduos urbanos e a urgência da sua gestão adequada. Os biorresíduos são a maior fração dos resíduos urbanos. Em Portugal, constituem quase 40% dos Resíduos Urbanos, mais do dobro da fração embalagens. Estas últimas têm, desde há muito, metas específicas de valorização. As preocupações da UE com a gestão inadequada dos biorresíduos surgem com a diretiva aterros (1999), obrigando ao seu desvio com metas específicas (2006, 2009 e 2016), com o intuito de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamente o metano.

Posteriormente, a diretiva de resíduos de 2008, no artigo 22º, estipula que os Estados-membros tomem medidas que incentivem a recolha seletiva dos biorresíduos, e na diretiva de 2018 são definidas metas para a redução do desperdício alimentar, bem como a obrigatoriedade da recolha a partir de janeiro de 2024. Até dezembro de 2024, a Comissão admite avançar com metas de reciclagem de biorresíduos específicas como existem para as embalagens (artigo 11, 6º). Disponibilizar o serviço de recolha de biorresíduos é uma etapa, mas não basta, é preciso mobilizar e formar a população para a separação deste fluxo.

A pouco tempo do horizonte temporal definido pela União Europeia, estão os municípios e o país preparados para cumprir a diretiva?

Em relação à obrigatoriedade da recolha seletiva de biorresíduos em janeiro de 2024, há municípios que já o fazem e estão a alargar o serviço de recolha, sobretudo com foco nas habitações, enquanto outros estão a iniciar este serviço em zonas específicas. A diretiva que define a obrigatoriedade de recolha de biorresíduos é de 2018, o Regulamento Geral de Gestão de Resíduos, na sequência da directiva, foi publicado em 2020, e o PERSU 2030, com orientações específicas importantes, é de 2023, por isso só quem já fazia a recolha seletiva estará melhor posicionado para o efeito em janeiro de 2024.

Mesmo assim, houve outras iniciativas específicas sobre biorresíduos relevantes neste período, tais como o documento Contas Certas com os Resíduos (2020) e o apoio financeiro para a elaboração de estudos municipais sobre biorresíduos (2021-22), através do Fundo Ambiental. Este apoio foi realmente um incentivo que fez com que a grande maioria dos municípios, isoladamente ou em associação, pensasse pela primeira vez, e ao mesmo tempo, sobre a gestão dos biorresíduos na sua área de jurisdição. Estes planos serviram de apoio à elaboração dos PAPERSU a apresentar até final de novembro, cuja aprovação condiciona o financiamento das soluções no terreno, nomeadamente a aquisição de contentores, veículos, campanhas de formação e sensibilização. Em resumo, para 2024, a maioria dos municípios estará atrasado.

Quais são os maiores desafios e dificuldades que os municípios têm enfrentado e ainda vão enfrentar neste processo?

Na evolução da gestão dos resíduos urbanos, genericamente, as câmaras municipais ficaram apenas responsáveis pela gestão dos resíduos indiferenciados, dos resíduos volumosos, e de outros resíduos deixados fora dos contentores de indiferenciados e dos ecopontos. Numa expressão: lixo. Acrescenta-se a falta de pessoal técnico, mas também operacional, equipamentos obsoletos, o pagamento do serviço com base no consumo de água e a ausência de fiscalização.

Considerando que as questões anteriores caminham para a resolução, a mobilização da população para a separação dos biorresíduos é o grande desafio. Antes de mais, é preciso explicar à população o que são biorresíduos e porque é que é preciso separá-los. As soluções têm de ser construídas com a população, e a mensagem tem de ser clara e uniforme a nível nacional.

O modelo de recolha de biorresíduos escolhido por cada município poderá determinar um sucesso maior ou menor da recolhe seletiva dos biorresíduos? Qual a importância da adequação deste modelo?

Não há modelos universais. Qualquer que seja o modelo de recolha, a população tem de ser envolvida logo na fase inicial do desenho do modelo de recolha seletiva, para deste modo, contribuir ativamente para o seu sucesso. Este passo é essencial e contribui para a mobilização da população para a separação dos biorresíduos. A formação/sensibilização da população, a monitorização frequente da recolha (quantidade e qualidade dos biorresíduos separados), a informação da população sobre o sucesso/dificuldades medidas no terreno, a implementação de sistemas pay-as-you-throw ou semelhantes, e a fiscalização contribuem para o sucesso do modelo.