Professora e investigadora na Universidade de Coimbra, onde coordena a Cátedra UNESCO em biodiversidade, Helena Feitas é uma voz ativa e respeitada na defesa da ecologia e dos ecossistemas que, garante, estão mais ameaçados do que nunca.

Em entrevista à Smart Cities durante o Digital with Purpose Global Summit, a bióloga e também diretora do Parque de Serralves, no Porto, alerta para a necessidade de se “agir já, e depressa”, enquanto põe o dedo na ferida em vários temas, das soluções baseadas na Natureza ao ordenamento florestal do país.

Temos assistido a uma perda de biodiversidade cada vez maior. Que causas estão na origem deste problema e o que é preciso fazer para tentar travar o desaparecimento das espécies mais ameaçadas?

A esmagadora maioria da nossa atividade não tem em conta o impacto que provoca na Natureza. As causas prendem-se, desde logo, com a transformação dos solos e a sua utilização para urbanização, mas também com a expansão de espécies exóticas, a poluição e a sobreexploração de recursos, designadamente dos ecossistemas marinhos.

Penso que hoje há uma consciência crescente de que estamos a perder Natureza a um ritmo sem precedentes, portanto, absolutamente ameaçador. E em alguns grupos isso é particularmente evidente, como acontece com o colapso dos insetos, dignamente os polinizadores. Mas embora tenhamos uma perceção dessa perda crescente, os mecanismos que construímos para reduzi-la são muito incipientes. No fundo, trata-se, sobretudo, de instrumentos de política geral e de política económica, que passam por incentivos para deixar as atividades que, clara e objetivamente, destroem a Natureza. A solução é passar a apoiar as que fazem bem, cuidando e restaurando e, claro, garantindo que uma parte substancial do Planeta é, de facto, para a Natureza. Porque ela presta-nos um serviço indispensável.

Já afirmou em várias ocasiões que a taxa de extinção é de uma violência tal que a ciência não será capaz de resolver o problema em tempo útil. Entrámos num caminho irreversível?

As perdas são absolutamente brutais! E a questão não é só a perda de biodiversidade em número de espécies. É o equilíbrio das populações, a diversidade genética associada, a capacidade de as espécies responderem aos novos cenários climáticos. E, de facto, o ritmo com que estamos à procura de soluções não é aquele que precisamos implementar. Do ponto de vista do conhecimento científico, o que sabemos ainda é muito pouco, cerca de 20% daquilo que a ciência estima existir à escala planetária. Mas percebemos que, hoje, a taxa de extinção é estimada cerca de 100 a mil vezes aquilo que seria a taxa natural de extinção das espécies.

O ritmo a que estamos a construir as soluções ainda é muito frágil e, enquanto isso, damos conta que a perda de Natureza vai ter impactos sérios. É claro que também depende do nível de proximidade a que estamos dos acontecimentos. Nós aqui, vivendo na Europa, no nosso contexto, porventura não temos a mesma perceção, mas, por exemplo, as comunidades indígenas, as comunidades que vivem diretamente desses recursos percebem isso no seu quotidiano.

É por isso que durante o Digital with Purpose Global Summit tem insistido na necessidade de se “agir já, e depressa”?

Sim, sem dúvida. No domínio da biodiversidade temos um tratado que devíamos agarrar com todas as forças. E todos sem exceção, desde os poderes públicos aos privados e às empresas, sem esquecer o digital. Estou a falar do tratado Kunming-Montreal, que foi assinado na COP15 da biodiversidade e estabelece um conjunto de objetivos que já trazem para a discussão a questão da economia, dos financiamentos e dos incentivos.

De facto, temos de agir e não estar sistematicamente a mitigar e até a corromper processos através de narrativas alternativas, por parte daqueles que não querem realmente transformar o Mundo. A nossa capacidade de conservar a biodiversidade é determinante também para a pacificação e capacidade de construir um Mundo realmente capaz de viver em harmonia com a Natureza. Não tenho dúvidas que a biodiversidade é instrumental para a mudança coletiva, para uma nova Humanidade e, por isso, também nesta área do digital temos de ser capazes de fazer o melhor possível.

Por falar em digital, que papel é que este setor pode assumir em matéria de biodiversidade?

O digital pode fazer-nos aceder à informação e aos dados, tornando-nos mais conscientes, mais capacitados e capazes. É claro que há imensa desigualdade neste processo, por isso é preciso que o digital chegue a todo lado e que a informação esteja cada vez mais em plataformas de acesso fácil, como os telemóveis. Portanto, as plataformas de dados, de informação, devem ter essa capacidade e temos de fazer um esforço para que o digital chegue a todo lado com essa qualidade, também democrática.

Além disso, é preciso acelerar a capacidade mundial de diálogo e compromisso, bem como a articulação entre projetos que têm capacidade de ser implementados rapidamente no terreno. É muito importante haver cada vez mais espaços em que esta articulação é possível, para percebermos exatamente que projetos precisam rapidamente de tecnologias e quais podem beneficiar mais rapidamente do apoio tecnológico.

E as cidades, como podem dar um contributo neste esforço de preservação da Natureza?

A capacidade urbana não deve ser esquecida porque quando falamos em biodiversidade não estamos só a falar de florestas tropicais, de mangais ou do mar profundo. Estamos a falar também das cidades, que devem ter a capacidade de trazer a Natureza e trabalhar com ela. E essas são certamente aquelas cidades em que todos queremos viver, por isso há uma nova forma de fazer cidades preocupada em trazer a Natureza para as suas narrativas e processos construtivos.

Elas podem, de facto, assumir um protagonismo efetivo e são indispensáveis, por isso, digamos, é muito importante que este diálogo aconteça. E parece-me que no caso das cidades portuguesas, isso começa a acontecer porque elas querem ser campeãs, não só da neutralidade carbónica, mas também dos espaços naturais. Não tenho qualquer dúvida que as cidades são indispensáveis a este movimento coletivo de transformação e que devem colocar a Natureza no centro das preocupações porque nós não vivemos sem ela, nós somos parte dela.

Neste contexto, as soluções baseadas na Natureza podem ser efetivamente úteis às cidades?

Essa é uma agenda forte, robusta e muito relevante, mas há sempre duas faces deste tipo de narrativas de transformação. Porque elas só são realmente soluções baseadas na Natureza se respeitarem, de facto, a biodiversidade. Isto é absolutamente crítico. Caso contrário, são outra coisa qualquer, ou seja, brincamos com a Natureza, manipulamos, fazemos coisas bonitas, mas não estamos realmente a fazer soluções baseadas na Natureza.

Isso acontece muito?

Já acontece em alguns casos, por isso temos de ser vigilantes, temos que as denunciar e não deixar que sejam utilizadas erradamente. Por ser uma narrativa muito forte, nós precisamos muito dela, de facto, e realmente também há muito exercício conceptual com muito rigor e qualidade. Como tal, não as devemos deixar cair só porque alguns – são sempre menos – fazem delas esquemas viciados e menos corretos. Uma NbS [Nature-based solutions] tem de ter no centro da sua atividade, da sua preocupação, a conservação da biodiversidade.

A época de incêndios está à porta. Porque é que o país continua sem conseguir proteger devidamente as florestas e os seus ecossistemas?

De uma forma muito simples diria que nos desligámos da maior parte dos territórios florestados e da relação que tínhamos com a Natureza. Portanto, a floresta passou a ser, nas últimas décadas em particular, um produto, um rendimento, que, de facto, não corresponde à relação de proximidade que tivemos anteriormente. Portanto, fomos construindo em função do interesse das comunidades e não soubemos equilibrar aquilo que devia ser a floresta de conservação daquilo que é atualmente a floresta de produção, digamos assim.

E nunca nos devemos esquecer de um caso português, o do Pinhal Interior, em 2017, totalmente dramático, uma tragédia coletiva que não podia ter acontecido e devia ter sido muito melhor tratada pelos poderes públicos. Aliás, se hoje formos visitar estes territórios, verificamos que praticamente não há mudanças que possamos registar. Houve algum investimento, mas não o suficiente para este tipo de situações.