Grandes incêndios, cheias repentinas e tempestades inéditas fazem de Portugal um dos países europeus mais afetados por eventos climáticos extremos. Já as inundações em Valencia, Espanha, mostram como as grandes catástrofes chegam quase sempre sem aviso. Face ao imprevisto, que papel tem a tecnologia na antecipação e resposta às emergências provocadas por desastres naturais?
2024 foi um ano de extremos em Portugal. Durante vários meses houve inundações recorrentes e até episódios de tornados, ciclones e vagas de frio, enquanto outros ficaram marcados por violentos incêndios e ondas de calor. Pelo meio, um sismo com magnitude 5,3 na escala de Richter acordou o país e deixou-o em alerta. Tal como no resto do mundo, por cá os fenómenos climáticos extremos também se tornaram cada vez mais frequentes e intensos e, de acordo com um estudo da Agência Europeia do Ambiente, Portugal é o 5.º país, entre 35, com mais mortes associadas a este tipo de eventos – 9267 nos 40 anos anteriores – e o 7.º em perdas económicas, superiores a 13.400 mil milhões de euros no mesmo período. Se a estes dados juntarmos as mais de 200 vítimas mortais provocadas pelas inundações na Comunidade de Valência facilmente se constata que a Península Ibérica está em risco permanente.
Outro relatório da Organização Meteorológica Mundial refere que, a nível global, o número de desastres naturais quintuplicou nas últimas décadas, embora os casos fatais tenham sido quase três vezes menos. O que poderá explicar esta evolução positiva? Para os especialistas, dois fatores contribuíram decisivamente: uma previsão mais precoce e melhores sistemas de aviso e gestão de catástrofes. Ou seja, é aqui que a tecnologia ganha especial protagonismo face aos desastres naturais, uma vez que ajuda a melhorar a prevenção e antecipação, mas também a mitigação, a eficiência da resposta e a capacidade de recuperação.

Para Alexandre Caldas, chefe da Divisão de Divulgação de Alerta Antecipado e de Análise de Dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), os sistemas tecnológicos, aliados à capacitação e aos planos de ação, assumem um papel fundamental em dois níveis essenciais. “Está provado e quantificado que pode ter um impacto positivo de cerca de 30%, não só no número de mortes e de pessoas deslocadas, mas também na proteção da propriedade, que afeta a atividade económica e social”, revela o diretor da UNEP.
O também presidente da Rede Geoespacial da Organização das Nações Unidas (ONU) lembra que “à escala global dos 193 países no mundo, só metade é que tem algum tipo de sistemas de alerta, prevenção ou resposta a desastres”. Além disso, cerca de 70% de todas as mortes causadas nos últimos 50 anos por catástrofes relacionadas com o clima aconteceram nos 46 países mais pobres. Como resposta, as Nações Unidas lançaram o programa Early Warning for All (Avisos Rápidos para Todos) que visa instalar até 2027 pelo menos um sistema de alerta em todos os países do mundo.
Em Portugal, a tecnologia começa a estar presente nas várias fases associadas aos desastres naturais. Paulo Gil Martins, coordenador do Observatório de Proteção Civil & Safety, acredita que “é um campo com enorme capacidade que vai marcar o futuro”, mas lembra que não basta ter os equipamentos disponíveis. “Como se viu em Valência, embora não faltasse tecnologia, esta acabou por não ser utilizada da melhor forma, face a uma intensidade tão forte de chuvas que não se conseguiu prever”. Para o especialista, o nosso país continua muito longe de aproveitar todo o potencial que estes sistemas oferecem, nomeadamente em matéria de proteção civil. “Apesar de serem cada vez mais determinantes, estamos a ficar muito para trás quando comparados com o resto da Europa, por exemplo, no que que diz respeito à referenciação por GPS ou aos dashboards que nos apoiam à decisão nos teatros de operações” defende o professor do ISEC.
Satélites portugueses apoiam Valência
“Os sistemas de alerta e a inteligência artificial (IA) protegem muitas pessoas das catástrofes. Os drones e a teledeteção reduzem o tempo necessário para encontrar e socorrer as vítimas. O armazenamento em nuvem ajuda as equipas humanitárias a receber informações mais rapidamente”, refere o relatório “Inovação na gestão de catástrofes”, publicado pela ONU. A estas soluções juntam-se muitas outras, como a sensorização remota, a tecnologia blockchain, as redes de comunicação e até a impressão 3D ou as redes sociais.
Entre as muitas tecnologias disponíveis, Alexandre Caldas destaca os dispositivos de comunicação, a IA e os sistemas de monitorização hidrológica e meteorológica, como o que a Europa já tem no terreno “que permite antecipar alguns desastres naturais em cerca de sete dias, com 90% de confiança”. Incontornável é também a capacidade dos satélites. “Por exemplo, a Agência Europeia Espacial já está a instalar novos satélites que vão ter uma resposta direta aos desastres naturais, o que diz bem da sua importância”, revela o diretor da ONU.

Imagens satélite da Geosat revelaram que a área inundada em Valência (a vermelho) chegou a ser cinco vezes maior que a lagoa já existente (a azul)
Neste campo, Portugal já dá cartas, nomeadamente através da empresa Geosat, um dos principais fornecedores europeus de satélites de observação da Terra. As imagens que captam a partir do espaço permitem fazer, por exemplo, uma avaliação rápida das áreas afetadas e ajudar na avaliação dos danos, na afetação de recursos e nas operações de busca e salvamento. “Valência é um bom exemplo disso mesmo. Logo no primeiro dia de inundações enviámos as imagens às autoridades espanholas e, pelo feedback que temos, foram bastante úteis para saberem, por exemplo, o estado das vias de comunicação, as áreas saturadas de água e as zonas de eventuais deslizamentos de terra”, revela Pedro Jesus, diretor comercial da Geosat. No passado, este potencial também foi aproveitado durante os incêndios na região Centro de Portugal, desde logo para monitorizar as áreas ardidas, e por altura da erupção do vulcão de La Palma, nas Canárias, ajudando a fazer modelos de evolução da distribuição da lava. Já o futuro aponta para duas letras – IA -, uma tecnologia que permite gerar informação preciosa porque “ao ensinar os modelos a ver o que é uma alteração no terreno, torna possível fazer a alarmística e ajudar a detetar consequências de desastres naturais”.
Também Paulo Gil Martins destaca a importância das redes de satélites, “desde logo para a previsão de fenómenos climáticos extremos, mas também para as comunicações entre operacionais no terreno, já que muitas vezes são a única forma das diferentes instituições poderem comunicar entre si”. “O problema é que, embora absolutamente necessárias numa situação de catástrofe, estas comunicações satélite não existem como devia ser no nosso país”, alerta o responsável do Observatório de Proteção Civil & Safety.
Ar, terra, mar e espaço
Portugal tem procurado acompanhar os desenvolvimentos desta área e são vários os projetos que deram origem a soluções tecnológicas inovadoras, muitas delas resultantes de parcerias entre a academia, o Estado e o setor empresarial. É o caso do Firefront, que envolveu o Instituto Superior Técnico (IST), a Universidade de Coimbra, a Força Aérea e a empresa UAVision. Juntos, criaram uma tecnologia para drones que permite localizar um incêndio e antecipar em cerca de 20 minutos o processo de deteção e início do combate ao fogo.
“Com ela, é possível captar imagens normais ou térmicas, por câmaras de infravermelhos, ao mesmo tempo que um software de processamento faz a deteção de fumo e de fogo, além da sua geolocalização no terreno”, explica Alexandre Bernardino, investigador do IST e coordenador do projeto. Isto porque torna possível ir atualizando os mapas da progressão da frente de incêndio e, desta forma, planear para onde se devem deslocar as forças de combate.
“Graças aos algoritmos que desenvolvemos, as previsões podem ser enviadas diretamente para modelos de predição de propagação de incêndio, ajudando e prever para onde o fogo se vai dirigir”, acrescenta o especialista em robótica e visão computacional. Na prática, significa que em apenas três minutos é possível prever o que vai acontecer ao fogo nas próximas quatro ou cinco horas.
Se os incêndios se combatem com água, como combater as enxurradas de água? A melhor forma é tentar prevenir e antecipar os efeitos devastadores que as inundações provocam, embora isso nem sempre se consiga, como mostrou o caso de Valência. Por cá, Lisboa também tem um longo historial de cheias e uma das estratégias da capital passa por instalar sensores em pontos críticos, como túneis rodoviários, ruas em zonas baixas da cidade ou sistemas de drenagem subterrânea.
Uma tecnologia desenvolvida pela empresa portuguesa Greenmetrics.AI que, como explica o CEO Tiago Marques, “tanto permite gerar um alerta nos primeiros segundos após a deteção de uma inundação, como, a exemplo do que já aconteceu, fazer a antecipação desse tipo de eventos e dando à Proteção Civil uma capacidade de resposta até 80% mais rápida”. Em ambos os casos, o equipamento já despoletou cerca de 20 avisos no último ano e meio. Para o futuro, o objetivo é aproveitar os dados que estão agora a ser recolhidos para o desenvolvimento de modelos de machine learning e IA que “conseguirão correlacionar a quantidade de precipitação numa certa zona da cidade e o nível de drenagem com a possibilidade de ocorrerem cheias. Quando isso acontecer será possível fechar, por exemplo, um túnel rodoviário assim que o sistema indicar uma elevada probabilidade de inundação”, acrescenta o responsável.
Além de Lisboa, que tem 10 sensores instalados, também o Porto, Torres Novas, Loures, Oeiras, Loulé e Tavira já utilizam o mesmo sistema. Fora do país, as grandes inundações no Rio Grande do Sul geraram muito interesse no Brasil, enquanto as de Espanha deram origem a “conversas iniciais com algumas empresas para potenciais parcerias em Valência e Barcelona”.

Fibra ótica que passa pelos arquipélagos portugueses é capaz de detetar atividade sismica
Nas profundezas dos oceanos também se ajuda a detetar atividade sísmica, nomeadamente através de cabos submarinos em fibra ótica. Mas como funciona esta nova tecnologia já utilizada por investigadores do INESC TEC? “Recorrendo à sensorização acústica distribuída (DAS), sempre que há um movimento da terra o cabo vai sentir essa perturbação, funcionando como sensor. Assim que são detetadas ondas sísmicas, torna-se então possível sinalizar, por exemplo, a formação de um tsunami e avisar de imediato as cidades e as populações”, explica Orlando Frazão, especialista na área de fotónica.
O investigador diz que tal já é viável graças a dois projetos, um que une por cabo submarino as ilhas do Faial e das Flores, e o outro que liga Sines ao Brasil, passando pela Madeira e por Cabo Verde. “Quase todas as semanas detetamos pequenos eventos nos Açores e na Madeira, mas também já o fizemos aquando do último grande sismo de Marrocos e até de outro na China”.
Os desastres naturais também se combatem a partir do espaço, como já fez a Geosat em Valência, mas a empresa tem outro grande projeto em marcha que pode vir a ser útil nesta área: a Iberian Space Partnership. Criada em conjunto com o CEiiA, centro de engenharia e desenvolvimento de produto, e a Satlantis, empresa especializada em câmaras para satélites, esta parceria irá reforçar a Constelação do Atlântico, um grupo de satélites capaz de controlar e monitorizar a costa e florestas de Portugal e Espanha. “Nesta constelação, as autoridades nacionais têm prioridade máxima sobre o que acontecer. Ou seja, se houver uma emergência no nosso território, mesmo que haja uma aplicação comercial a decorrer, vai ter de ficar em standby porque todos os recursos vão ser focados nesse problema”, explica Pedro Jesus.
Embora a parceria ainda esteja numa fase inicial, tem potencial para, no futuro, “desenvolver uma série de algoritmia útil e estudos que poderão impactar bastante a previsão de catástrofes. Por exemplo, através de dados satélite, seria possível criar um modelo sobre as consequências de um eventual tsunami na nossa costa”, concretiza o responsável da Geosat. Porque nunca se sabe quando e onde chega a próxima grande catástrofe natural, a informação e a capacidade de antecipação serão sempre a maior força de qualquer equipa de emergência.
Tecnologia nos cinco continentes
São muitos os casos por todo o mundo a demonstrar como a tecnologia pode ser preciosa na prevenção e resposta aos desastres naturais. No Japão, por exemplo, o Sistema de Alerta Precoce de Terramotos consegue emitir alertas antecipados à população, que incluem as intensidades sísmicas estimadas e o tempo de chegada até ao movimento principal. Também na Ásia, um projeto de monitorização de cheias no Bangladesh ajudou a diminuir consideravelmente o número de mortes provocadas por inundações – em média, passaram de cinco mil para uma centena por ano – graças à articulação entre dados de satélite, estações meteorológicas e sensores de nível de água.
Na Europa, os Países Baixos desenvolveram um sistema de prevenção de inundações, assente em diques com comportas mecânicas, controladas por um computador central que calcula em tempo real o nível médio das águas do mar. Já em Espanha, a frota de satélites Copernicus Sentinel apoiou as autoridades durante a erupção do vulcão Cumbre Vieja (La Palma), ao monitorizar os níveis de dióxido de enxofre, aerossóis e cinzas emitidas, e mais recentemente, forneceu imagens das inundações em Valência que ajudaram a identificar as áreas mais afetadas e a coordenar as equipas de resgate.
Também os Estados Unidos combinam uma série de tecnologias para enfrentar os furacões, como sistemas meteorológicos avançados, radares de alta resolução e modelos de simulação. No mesmo país, o Serviço Geológico passou a utilizar ativamente a rede social X para detetar terramotos e réplicas, isto depois de constatar que o antigo Twitter lançou alertas para o terramoto de Sichuan (China) um minuto antes dos próprios sensores da organização.
Em vários países menos desenvolvidos, a ONU tem procurado a esbater o gap tecnológico que se verifica nesta área. Na Tanzânia, por exemplo, foi criada uma Sala de Situação que pode recorrer a sistemas espaciais para gerar informação geolocalizada, enquanto em Timor-Leste, na Oceânia, há um novo projeto de alerta precoce para desastres naturais que recorre a estações meteorológicas automáticas, radares e sensores oceânicos.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 45 da Smart Cities – outubro/novembro/dezembro 2024, aqui com as devidas adaptações.