O decreto-lei que permite a construção em terrenos rústicos, até agora proibidos, foi publicado esta semana em Diário da República e entra em vigor no final do mês de janeiro. Ao simplificar a lei dos solos, o Governo deu aos municípios a facilidade de afetarem mais terrenos rústicos à construção e urbanização, permitindo que, excecionalmente, a decisão dependa apenas das câmaras e assembleias municipais.
De acordo com o polémico decreto-lei que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), o objetivo é facilitar “a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis, promovendo, assim, uma maior equidade social e permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso a habitação digna”.
A medida levantou críticas por parte das associações ambientalistas e dúvidas entre alguns autarcas, mas, segundo o Executivo, os municípios continuam a ter de respeitar as especificidades dos terrenos. “Continua a vigorar a proibição de construção em unidades de terra com aptidão elevada para o uso agrícola, nos termos da Reserva Agrícola Nacional. Quanto à Reserva Ecológica Nacional, continuam a ser salvaguardados os valores e funções naturais fundamentais, bem como prevenidos os riscos para pessoas e bens”, pode ler-se no documento, promulgado pelo Presidente da República a 27 de dezembro.
Marcelo Rebelo de Sousa não deixou, no entanto, de levantar reservas ao documento, que diz “constituir um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”. Ainda assim, justificou a decisão com a “urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção da habitação” e a “intervenção decisiva das assembleias municipais”. Isto porque qualquer reclassificação dos terrenos de rústico para urbano terá de ser é legitimada por deliberação da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal.
Ambientalistas criticam, autarcas alertam
Uma vez aprovada a medida, um grupo de 16 organizações ambientalistas e especialistas em gestão territorial enviaram uma carta aberta ao Executivo, onde revelam “uma forte e veemente preocupação face à pretensão do Governo”.
Embora reconheçam a gravidade da crise habitacional e a necessidade de soluções acessíveis, o grupo acredita que a construção em solos rústicos dará origem a “mais problemas do que soluções”. “Deve ser promovida a recuperação dos solos rústicos degradados, para manterem a funcionalidade agrícola e contribuírem para a segurança alimentar no nosso país e para a manutenção de habitats e da biodiversidade, e não deve ser permitida a sua destruição, com construção e infraestruturas complementares”, pode ler-se na carta aberta, intitulada “Em defesa do solo do nosso país”.
A associação Zero considerou mesmo esta decisão um dos cinco factos mais negativos do ano de 2024, defendendo que “permitir a flexibilização da reclassificação de solo rústico em urbano, sendo que estes estão, em regra, incluídos na Reserva Agrícola Nacional ou na Reserva Ecológica Nacional, dando mais liberdades aos municípios para decidir, dificilmente dará bom resultado”.
Por parte dos autarcas, o diploma trouxe algumas dúvidas e alertas, relacionados, sobretudo, com o facto de permitir que uma parte da área urbanizada (30%) não seja destinada, necessariamente, a habitação pública, arrendamento acessível ou habitação a preços moderados.
De acordo com um parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), a que o Jornal de Notícias teve acesso, a medida poderá trazer “grande pressão ao planeamento e à gestão urbanística”, além de “alimentar “um elenco de medidas que ultrapassa claramente a finalidade habitacional”. Isto ao mesmo tempo que irá coincidir com os Planos Diretores Municipais já aprovados por diversas entidades, a que as câmaras municipais estão vinculadas.
Embora alguns presidentes da câmara já tenham elogiado a medida, como José Ribau Esteves, de Aveiro, outros levantaram reservas, sobretudo do interior do país, alegando que nos territórios de baixa densidade não faltam terrenos para construção e alertando para o eventual risco de abusos ou especulação.
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