No coração das cidades europeias, as características únicas dos bairros históricos colocam inúmeros desafios aos processos de transformação sustentável. O projeto europeu SUSHI escolheu o bairro de Alfama, em Lisboa, para perceber como levar a cabo esta missão.
Estima-se que 55,3% da população mundial viva em áreas urbanas, e as projeções indicam que, até 2030, um terço viverá em cidades com, pelo menos, meio milhão de habitantes (UNDESA, 2019). As cidades são responsáveis por cerca de dois terços do consumo global de energia e 70% das emissões globais de dióxido de carbono, contudo, são também impulsionadoras de ações globais contra as alterações climáticas.
As cidades apresentam um elevado potencial para o desenvolvimento de soluções inovadoras capazes de contribuir para os objetivos do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global, e para se atingirem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS 11 considera que as cidades devem tornar-se inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis até 2030, e o seu desenvolvimento sustentável é também fundamental para outros ODS.
Alfama: das ruas labirínticas à comunidade local
O projeto europeu SUSHI – Sustainable Historic City Districts (2018-2020), co-financiado pelo EIT Climate KIC e coordenado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT NOVA), visou oferecer inovação através de soluções integradas no coração dos centros históricos de várias cidades do Mediterrâneo (Alfama em Lisboa, Sassari e Savona em Itália, Ptuj na Eslovénia, Nicosia no Chipre, e La Valleta em Malta), tendo a sustentabilidade como motor central para torná-los mais resilientes, socialmente inclusivos, prósperos e apoiados em negócios locais e tradicionais lado a lado com novas start-ups, mantendo e respeitando o sentido tradicional de comunidade.
Alfama é uma zona estratégica da cidade e um dos mais antigos bairros de Lisboa situado entre o Castelo de São Jorge e a zona ribeirinha do Tejo. Assemelhando-se a uma típica cidade árabe medieval, Alfama é conhecida pela sua morfologia devido às ruas estreitas labirínticas, sendo um dos principais pontos turísticos da cidade.
A vida de Alfama esteve sempre fortemente ligada à atividade portuária e fluvial, onde a população era composta essencialmente por estivadores, pescadores e peixeiras. Historicamente, a população de Alfama teve origem num êxodo rural ocorrido em meados do século passado, o que justifica a origem rural materializada no modo de vida, caracterizado por fortes relações de vizinhança e sentido de solidariedade. Por razões económicas, esta realidade mudou significativamente nas últimas décadas, especialmente, entre o final dos anos 1970 e o início dos 1990, o bairro passou por uma fase complicada, onde a falta de emprego e o consumo e venda de drogas alteraram a realidade populacional, o que explica o atual hiato geracional.
O bairro de Alfama é caracterizado por ruas íngremes, muitas com escadarias, e por prédios antigos sem elevador e com baixa eficiência energética, o que torna a mobilidade um desafio para os moradores. A recente pressão do turismo, intensificada pelo terminal de cruzeiros junto ao bairro, conduziu a um processo de gentrificação, com um grande aumento da procura imobiliária, e a uma rápida transformação na utilização dos edifícios, substituindo as residências permanentes por alojamentos locais (regime Airbnb) e hotéis.
O trabalho do SUSHI para Alfama permitiu conceber um processo abrangente e estruturado de co-criação de um plano de transformação para um bairro sustentável. Este processo foi organizado em três fases principais: 1) Da visão a um Plano; 2) Do Plano à Ação e 3) Implementação (Figura 1).

Figura 1.
As três fases foram suportadas em diversas atividades e eventos participativos que envolveram as partes interessadas locais em workshops, seminários, entrevistas, entre outros, permitindo ampliar a compreensão dos principais desafios do bairro de Alfama, identificar soluções potenciais, disseminar resultados e estruturar desenvolvimentos futuros.
Apesar da pandemia em 2020, que limitou o desenvolvimento de alguns eventos presenciais, foram envolvidos, ao longo do projeto, mais de 200 atores sociais (incluindo locais, regionais e nacionais) de diferentes entidades e níveis de ação (e.g. departamentos municipais, associações locais, agências nacionais e regionais, grupos de cidadãos, ONGs, cooperativas, centros de investigação, universidades e empresas). As diferentes partes interessadas foram identificadas e mapeadas de acordo com a sua área temática de especialização (e.g. edifícios, mobilidade) e área de influência.
Alfama: bairro de energia positiva?
A visão “Alfama Sustentável e Saudável para Todos”, definida no início do projeto em conjunto com atores locais, está enraizada em áreas de interesse como a habitação e edifícios, mobilidade e acessibilidades, espaços públicos, soluções baseadas na natureza e desenvolvimento económico local. Atingir esta visão requer um trabalho lado a lado com os agentes locais e cidadãos para identificar os desafios e as soluções para a sua transformação. Foi adotada uma abordagem sistémica e integrada, em conjunto com a participação de agentes do triângulo do conhecimento para a inovação que inclui empresas, investigação e tecnologia, e ensino superior, para alinhar Alfama com essa visão, integrando os seguintes valores fundamentais: inclusividade, autenticidade, resiliência, criatividade e empoderamento.
Com base nas atividades da fase 1, o trabalho do SUSHI em Alfama, para a fase 2, foi desenvolvido dentro de um conceito abrangente de laboratório vivo e dos fundamentos de economia circular local, no quais um dos projetos temáticos selecionados para uma análise mais aprofundada foi a avaliação integrada do potencial de Alfama para ser um Bairro de Energia Positiva (BEP).
Este conceito é visto como a chave para a transformação do sistema energético das cidades rumo à neutralidade carbónica. O BEP pode ser definido como uma área urbana com elevado grau de autossuficiência energética, com balanço zero de importação de energia e emissões de gases com efeito estufa, sustentada numa redução de necessidades e consumos de energia e produção crescente de energia através de fontes renováveis. Um BEP requer a integração de diferentes sistemas (e.g. edifícios, energia, mobilidade, TIC) e interações entre as diferentes partes interessadas, otimizando a habitabilidade do ambiente urbano.
Além dos aspetos técnicos, é reconhecido que os aspetos sociais desempenham um papel fulcral no sucesso da implementação de BEP. Estes bairros são, portanto, estruturas inovadoras para o desenvolvimento das cidades com o objetivo de consumo de energia renovável e aumento da segurança energética, ao mesmo tempo que contribuem para melhorar a qualidade de vida da população. São uma parte fundamental da criação de uma abordagem abrangente para cidades mais sustentáveis, lidando com novas perspetivas tecnológicas, espaciais, regulatórias, financeiras, jurídicas, sociais económicas, e preparando o caminho para a meta de 100 cidades neutras em carbono na Europa.
A maioria dos estudos e experiências práticas sobre BEP é baseada em bairros novos ou recém-construídos, onde o planeamento e a integração de soluções inovadoras são menos complexos e mais económicos. No entanto, para alcançar a ambição europeia de neutralidade carbónica em 2050, a transformação dos bairros e edifícios já existentes é essencial, incluindo bairros históricos, que apresentam vários desafios transversais a muitas cidades europeias e bastante complexos, como habitações degradadas, elevada pobreza energética, famílias de baixos rendimentos, poucas áreas verdes e processos de gentrificação devido a fluxos massivos de turismo.
Os edifícios de um bairro histórico são, portanto, fundamentais para enfrentar as alterações climáticas, aumentar a resiliência das cidades, ao mesmo tempo minimizar a pobreza energética. Na fase 2 do processo de transformação, este conceito foi explorado em Alfama a partir de uma avaliação de diagnóstico aprofundada, incluindo a análise das necessidades atuais de energia para arrefecimento e aquecimento de espaços de edifícios residenciais, complementada por uma avaliação do impacto potencial de cenários alternativos de renovação de diferentes componentes do edificado – janelas, paredes e telhados e custos de investimento necessários. Para além disso, para os edifícios residenciais, foi estudado o potencial de integração solar fotovoltaica, avaliando diferentes tipos de tecnologias e o seu custo de investimento. Ambas as análises em torno da eficiência energética dos edifícios e integração de solar fotovoltaico permitiram desenvolver uma caracterização e mapeamento detalhado no bairro ao nível da subsecção estatística.
A análise de Alfama como um BED abrangeu também uma avaliação de restrições legais, levantamento de problemas e soluções através de entrevistas a especialistas e identificação de potenciais modelos de negócios e fontes de financiamento criando uma base de conhecimento de forma a tornar a mudança viável e sustentável a longo prazo. Para implementar com sucesso as soluções dos BEP de uma forma sistémica e holística, as barreiras devem ser cuidadosamente identificadas e as soluções para removê-las devem ser antecipadamente projetadas.
Na passagem para a fase 3 do processo de transformação e olhando para o futuro na implementação do plano, foram feitos esforços significativos para tornar o projeto visível na comunidade de cidades sustentáveis, o que resultou em parcerias internacionais, levando a duas propostas europeias bem-sucedidas; 1) um projeto spin off e complementar no âmbito da call COVID 19 do EIT do Climate KIC em 2020, no qual se desenvolveu uma plataforma online para apoio à renovação de edifícios; e 2) um projeto H2020 intitulado HUB IN: Hubs of Innovation and Entrepreneurship for the Transformation of Historic Urban Areas, derivado do SUSHI e que decorrerá nos próximos quatro anos.
Ao longo de todo o processo, a equipa do projeto SUSHI percebeu a necessidade de superar abordagens fragmentadas e o pensamento compartimentalizado muitas vezes existente nos departamentos municipais.
Tornou-se também evidente que a comunidade deve ser colocada no centro da transformação urbana e da importância de abordagens participativas para envolver a comunidade local aumentando a aceitação dos projetos transformadores, como participante ativa do processo e como principal beneficiária da transformação esperada.
E, por último, a necessidade de alinhar estes projetos de transformação à escala local com as agendas e programas em curso da administração local de forma a criar sinergias otimizando os recursos existentes.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 31 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2021, aqui com as devidas adaptações.