Em Portugal, a seca dos últimos meses fez soar a campainha: a água não é um bem adquirido. Nas nossas casas, cada um vai fazendo mais ou menos para poupar este recurso, mas, nas nossas cidades, a gestão da água vai muito além do poupar na torneira. É, sim, lidar com uma força da natureza.

Chamam-lhe o “Dia Zero” – o dia em que as torneiras vão ser fechadas e as pessoas terão de esperar em longas filas para ter acesso a água potável. A cena, que parece inspirada num filme da saga Mad Max, é uma possibilidade real na Cidade do Cabo, na África do Sul, e teve até data marcada no calendário: 11 de Maio de 2018. A cidade sul-africana vive a pior seca dos últimos 300 anos e as seis barragens que asseguravam o abastecimento de água a quatro milhões de habitantes, simplesmente, secaram. Na incerteza de quando virá a chuva, a cidade tenta desesperadamente adiar o “Dia Zero” e já limitou o consumo de água a 50 litros por dia/pessoa (4,4 menos do que o cidadão comum português).

A situação na Cidade do Cabo é, provavelmente, a mais dramática entre as grandes cidades, mas, um pouco por todo o mundo, espera-se que a pressão hídrica se vá acentuando. Portugal não escapa e a Península Ibérica está identificada como uma das zonas com mais elevado risco de stress hídrico da Europa. Os últimos meses têm-nos lembrado disso: Janeiro foi o décimo mês consecutivo com precipitação mensal abaixo do normal, encontrando-se 56% do território em seca severa, 40% em seca moderada e 4% em seca fraca, referem dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Pela primeira vez desde há algum tempo, a possibilidade de um racionamento de água bateu à porta dos portugueses. No território nacional, uma das situações mais complexas do último ano viveu-se em Viseu. Logo em Julho de 2017, o município viu-se obrigado a adoptar um plano de contingência para a diminuição de consumos de água, que incluiu medidas como a redução das pressões na rede pública de distribuição ou a reactivação de furos de água para abastecimento de subsistemas e para rega de jardins públicos. Até Outubro, a situação agravou-se de tal forma que a albufeira de Fagilde atingiu mínimos históricos (nos 20% da capacidade instalada) e alguns depósitos de água da zona Norte do concelho tiveram de ser abastecidos com recurso a cargas de camião-cisterna.

Os portugueses acompanharam o episódio de Viseu com mais atenção do que é costume e a palavra “seca” tornou-se habitual nos media. As chuvas brandas de início de Janeiro fizeram-nos respirar de alívio, mas é preciso reconhecer que vivemos num novo contexto. Entre a comunidade técnica, a urgência não é novidade, mas o tema tem sido frequentemente posto debaixo do tapete, não só ao nível dos decisores, mas também nas nossas próprias casas. As declarações recentes do ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, dão nota da mudança: “Temos mesmo de nos adaptar a um tempo com menos água, menores recursos hídricos e com maior irregularidade da sua distribuição”. Com isto, a água parece estar finalmente a entrar na agenda política nacional e começa a trilhar o caminho também junto da sociedade civil, com várias campanhas de sensibilização para o uso eficiente da água a ganharem forma. Os portugueses estão a aprender a não desperdiçar, mas, quando aumentamos a escala, o desafio ganha outras dimensões.

milhões de pessoas vivem em situação de stress hídrico durante o Inverno, aumentando esse número para os 70 milhões no Verão (EEA).

Uma questão de planeamento

Abordar o tema da água de forma inteligente é fundamental para alcançar qualquer um dos 17 Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas e não só aqueles que lhe dizem directamente respeito. A gestão sustentável deste recurso vai ser, por exemplo, determinante para garantir a segurança de abastecimento alimentar, o acesso a energia limpa ou ainda a saúde e bem-estar das populações. Mas, até 2030, os desafios serão imensos. Nesse horizonte, a iniciativa Carbon Disclosure Project, cuja missão é garantir a disponibilidade de fontes de água potável nas áreas urbanas, aponta três grandes factores a considerar: o aumento da população urbana, que, nessa altura, deverá atingir os 5 mil milhões de pessoas; uma diminuição de 40% na água potável disponível; e um aumento na ordem dos 55% das necessidades de consumo nos centros urbanos.

A pressão exercida por estes factores será imensa e, a eles, junta-se ainda o grande vilão dos nossos tempos: as alterações climáticas. Em linha com que está definido pelos ODS, é aqui que as áreas urbanas têm um papel crucial e a batalha passa pelo aumento da resiliência das cidades. Como? Na forma como gerem a água. O Conselho Mundial da Água (WWC, na sigla em inglês) faz algumas recomendações nesse sentido, começando pela melhoria da infra-estrutura de abastecimento e saneamento existente e diversificação as fontes de água potável, promoção da participação das comunidades locais e da partilha de experiências e a cooperação entre cidades e ainda a intervenção nas linhas de água existentes das zonas urbanas.

Para o coordenador do grupo dedicado à água da Quercus, Luís Alegre, quando se fala de água nas cidades, o problema está naquilo que foi o planeamento do território, ou a falta dele. “O grande drama é que as cidades foram crescendo sem qualquer planeamento de escoamento, canalizaram-se os rios e impermeabilizaram-se as bacias hidrográficas”. Esta falta de planeamento sustentável e equilibrado do ponto de vista ecológico da cidade traz consigo inúmeros riscos, que são agora agravados pelas alterações climáticas. “Se vamos construir em zonas de risco de inundação, artificializar por montante uma bacia hidrográfica, então, é certo que vamos ter cheias. Por causa da impermeabilização, na cidade a água corre muito mais rapidamente do que no campo”, exclama.

O que fazer, então? O activista ambiental tem duas sugestões: “primeiro, restituir os rios às cidades e não construir em zonas de risco de inundação; em segundo, usar a inovação tecnológica para monitorizar de forma eficiente a precipitação, o escoamento, os caudais, etc., e, assim, evitar as cheias em zonas urbanas”. E quando não chove? “Bem, a única forma de resolver o problema da seca é planeando, monitorizando, utilizando a tecnologia a nosso dispor para saber que água temos disponível e gastá-la eficientemente, sempre com a perspectiva de ter uma almofada confortável para o próximo ano, porque nunca sabemos o que vai suceder”.

Água a mais

Em resultado das alterações climáticas, segundo o WWC, 63% das cidades mundiais prevê riscos no seu abastecimento de água. Sendo a maior cidade nacional e estando particularmente exposta aos efeitos da mudança climática, Lisboa é uma cidade vulnerável nesta matéria. “Para além do aumento da temperatura, o nosso grande problema vai ser o da água – o excesso acumulado e a falta”, explica Duarte Mata, adjunto do vereador do Ambiente, Estrutura Verde, Clima e Energia da câmara municipal de Lisboa (CML).

Lisboa foi finalista ao título de Capital Europeia Verde 2019 e, embora tenha perdido a corrida para Oslo, os motivos que levaram à sua candidatura não desapareceram. Um deles é o Plano de Eficiência Hídrica, no qual se incluem medidas de adaptação e de mitigação às alterações climáticas com base na gestão da água. Em matéria de adaptação, o município optou por trabalhar com a natureza, aplicando Nature Based Solutions (NBS) adaptadas à falta de água. Este novo conceito de planeamento urbano visa a criação de espaços urbanos resilientes e tem vindo a ganhar popularidade. “São soluções soft que devem ser pensadas logo à cabeça no processo de planeamento, percebendo onde não se deve construir e colocando as zonas naturais nos locais correctos”, esclarece.

A Comissão Europeia define-as como “acções inspiradas, apoiadas e copiadas da natureza”, usando as características e funcionalidades do sistema natural, tais como a capacidade de armazenar carbono e regular o fluxo de água, com vista a atingir objectivos definidos, como a redução do risco de desastre, a melhoria do bem-estar e o crescimento inclusivo sustentável. Mas o que são, na prática? Há muitos exemplos, desde espaços verdes a plantação de árvores, hortas urbanas, e, no ciclo da água, bacias de retenção e infiltração in situ. Para além dos ganhos ecológicos, há mais benefícios que resultam destes espaços. “As pessoas podem tirar daqui outros serviços de ecossistema, como o lazer, benefícios para a saúde, regulação das temperaturas, ou, no caso das hortas urbanas, a alimentação e a rede social”, refere o responsável.

Lisboa está a aplicar o princípio em 11 locais, incluindo a “futura” Praça de Espanha, para a qual o caderno de encargos previa um parque permeável e onde se pedia que o projecto destacasse a componente de gestão da água, e a nova Feira Popular, cuja base vai ser um parque verde, onde quatro enormes bacias de retenção farão a gestão da água pluvial no local. Futuramente, será a vez do Parque Eduardo VII, onde o sistema de drenagem deixou de funcionar eficientemente e foi destruindo os pavimentos. “Não podemos fazer ali um lago e reconstruir o sistema de drenagem iria ter impacto no arvoredo, portanto, o que vamos fazer é uma cascata de retenção no eixo central do relvado, oculta, com as valetas encaminhadas para trincheiras de infiltração. Assim, recuperamos os pavimentos, salvaguardamos as árvores e resolvemos a drenagem, tudo na mesma solução natural”, ilustra.

 

 

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dos recursos hídricos exploráveis ao nível global são usados na agricultura, sendo a água um elemento crucial na produção de comida.

Água a menos

Para lidar com a falta de água, Duarte Mata destaca uma solução que, para além de natural, é, diz, smart. “Estamos a implementá-la no Parque da Bela Vista Sul e trata-se de prados de sequeiro biodiverso, ricos em leguminosas. São soluções de pastagens muito nutritivas, ricas em azoto, o que significa que poupamos em fertilizante azotado, captando muito carbono no solo, até 6 toneladas por hectare, o que se aproxima, em muitos casos, da floresta”.

Outros dos eixos de acção em Lisboa são o aumento da eficiência no uso e a redução do consumo de água. Com 54% da factura da CML a referir-se à rega de espaços verdes, a monitorização, gestão remota e automação dos sistemas é uma prioridade do município, que, desde 2015, conseguiu já poupanças assinaláveis (800 000m3) para o ambiente e financeiras (cerca de 1 milhão de euros). “Há um potencial de progressão incrível aqui. Apercebemo-nos de que um simples aspersor pode significar uma poupança de até 20 mil euros/ano”, exclama o responsável.

Já no que toca à redução do consumo, a capital prepara-se, este ano, para uma iniciativa pioneira: fechar o ciclo reutilizando águas residuais tratadas para rega e lavagens de rua. “Queremos implementar uma rede de água residual tratada por Lisboa, começando pelos locais possíveis e de maior consumo. Em 2018, estamos a prever chegar primeiro ao Bairro Alto, porque é uma zona de lavagem de rua com muito consumo, aproveitar a canalização já existente em todo o interceptor da zona ribeirinha e, depois, avançar para o centro da cidade”, explica Alexandra Henriques, da Direcção Municipal da Estrutura Verde, do Ambiente e Energia da CML. A ideia é que a água reciclada devidamente tratada circule nessa rede e sirva para rega e lavagens de rua, diminuindo, assim, o uso de água potável para esses fins. Para que o projecto se concretize, explica a especialista, falta só limar constrangimentos existentes na legislação, “que não é ainda adequada para o efeito”, de forma a definir qual a qualidade exigida para estas águas. A par da redução do consumo, abriu-se aqui outra oportunidade, a de criar negócio à volta da água reciclada. “Estas iniciativas colocam também a água no centro da Economia Circular, na qual não se falava muito de água. Pela seca que atravessamos, não só os municípios, que já estavam a fazer uma grande pressão para esta questão da utilização da água reciclada, houve também uma pressão da própria economia, dos operadores, que se estão a aperceber de que há aqui um campo de mercado”.

 

Projecto para rede de água reciclada na cidade de Lisboa. Fonte: CML

 

Infra-estrutura invisível

À escala urbana, infra-estruturas envelhecidas, ineficiências operacionais e de gestão e a pressão dos efeitos das alterações climáticas são dores de cabeça para os gestores locais. Nas últimas décadas, as grandes preocupações em Portugal relativas à água prenderam-se com a universalização do serviço, assim como, com a quantidade, continuidade e qualidade, explica João Feliciano, CEO da AGS. Hoje, com uma rede que chega a mais de 95% da população, o serviço de abastecimento de água passou a ser um dado adquirido, mas não nos podemos esquecer de que “há um património a manter”, lembra. “As nossas infra-estruturas estão a atingir a meia ideia, já deveríamos estar a fazer um check-up rigoroso”. Ainda que “não haja motivo para alerta imediato”, João Feliciano considera que, pela sua complexidade, onerosidade e por não estar visível, a necessidade de renovação das infra-estruturas exige um planeamento exaustivo e uma sensibilização contínua. Descurar essa preocupação pode ser desastroso, correndo o risco de concentrar os problemas e os investimentos num determinado período de tempo, e significar um passo atrás em matéria de desenvolvimento, criando-se uma sobrecarga sobre as próximas gerações. “A qualidade do serviço decai, a ocorrência de problemas aumenta, ou seja, tudo aquilo que conseguimos com a quantidade, qualidade, continuidade e universalização do serviço pode ser posto em risco porque não conseguimos operar com o mesmo nível de serviço e com risco adequado”.

Ligado ao envelhecimento da infra-estrutura, está também a questão das perdas de água. Uma análise de dados da ERSAR feita pela Associação Zero em Março de 2016 apontava que, das 256 entidades gestoras analisadas, 171 apresentavam perdas entre os 30 e os 77% e o volume de água da torneira não facturada estava nos 30% (inclui-se a utilização ilegal, as perdas reais por roturas ou mau uso, e as ofertas a entidades ou cidadãos, sem registo). Ainda assim, João Feliciano dá conta de “um esforço de algumas entidades gestoras para aumentar a eficiência dos sistemas. É preciso que haja meios, vontade, gestão orientada nesse sentido, mas há muito bons exemplos a nível nacional”.

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de déficit hídrico global em todo o mundo é a previsão para 2030, dentro do cenário climático actual.

Adiar o Dia Zero português

Por todo o país, os municípios estão a implementar medidas a vários níveis para evitar o dia em que terão de fechar as torneiras. Águeda, por exemplo, tem desenvolvido acções de combate ao desperdício, redução do consumo e desenvolvimento de acções preventivas e de sensibilização para boas práticas que conduzam a uma gestão eficiente da água. A monitorização dos consumos, através de contadores inteligentes nos edifícios públicos, tem sido uma das apostas fortes. Em 2016, a medida contribuiu para evitar o desperdício de mais de 18 mil m3 de água e o presidente da câmara municipal aguedense, Jorge Almeida, já fez saber que é para continuar, prevendo-se para este ano a instalação de mais contadores em edifícios municipais e ainda a distribuição de redutores de caudal à população. Também ao nível da rega dos espaços públicos, o município instalou um sistema de rega secundário que usa a água da chuva captada pelo sistema de águas pluviais. A par disso, nos espaços verdes, foi dada primazia à plantação de espécies autóctones e outras que requerem menos manutenção e rega.

Do interior, vem o exemplo de Castelo Branco. Distinguido, em 2017, pela ERSAR pela qualidade da água distribuída, o município conseguiu, em quatro anos, reduzir em 13,5% as perdas de água, registando agora uma das taxas de desperdício de água mais baixas do país – 17,9%. “Este aumento da eficácia deve-se em grande medida à estratégia definida e ao investimento efectuado no concelho, na melhoria e renovação de condutas de água, através de zonas de medição e pelo controlo na rede para medição dos caudais em tempo real, o que permite detectar, de imediato, eventuais fugas de água”, explica a autarquia albicastrense.