A aplicação e a exploração das tecnologias digitais disponíveis no ambiente das cidades irão criar um ecossistema de informação cujo aproveitamento será perfeitamente possível. Mas haverá vontade e/ou engenho para conduzir essa evolução, colocando-a ao serviço da cidade e dos cidadãos?

A tecnologia digital faz parte integrante do estilo de vida contemporâneo, de uma forma cada vez mais ubíqua, seguindo uma lógica evolutiva, aparentemente sustentada e sem sinais de abrandamento. Na condução dessa evolução, existem dois pressupostos: os componentes microeletrónicos, no coração dos sistemas digitais, que manterão a mesma taxa de miniaturização e de aumento da velocidade (fenómeno habitualmente referido como a “Lei de Moore”); e as redes de comunicação de dados, que manterão também as mesmas taxas de aumento da velocidade e da largura de banda (fenómenos habitualmente referidos como a “Lei de Edholm” e a “Lei de Nielsen”, respetivamente). É importante reconhecer que não estamos aqui a lidar com verdadeiras leis, mas sim projeções baseadas em observações que servem para instigar a imaginação (o que poderemos fazer daqui a 20 anos com a tecnologia, então, disponível?), ao mesmo tempo que ajudam a colocar objetivos no próprio desenvolvimento das indústrias ligadas ao mundo digital.

Estes fenómenos interrelacionam-se, sendo, por vezes, arriscado afirmar que um determinado desenvolvimento faz parte de um plano estratégico bem preparado, ou é apenas fruto da necessidade de alimentar aquele poderoso e cada vez mais importante ecossistema – em conjunto, as indústrias ligadas aos computadores, às comunicações de dados e à informação, formam a Economia Digital com um impacto reconhecido e significativo na Economia Mundial.

“(…) A Smart City será um processo de transformação digital (que já está a decorrer) e não um projeto. Um processo que consistirá na construção de um Sistema de Sistemas de Sistemas, com um nível de complexidade enorme e sem prazo de conclusão definido”.

De entre os diversos desenvolvimentos tecnológicos já consolidados, para o tema desta reflexão, existe um que merece uma atenção especial: a transição do IPv4 para o IPv6. Na Internet, todos os computadores acessíveis publicamente precisam de um endereço que os identifique unicamente (assim como uma casa necessita de um endereço postal). Desde o seu aparecimento nos anos 80, o IPv4 foi a norma estabelecida para definir esses endereços, permitindo cerca de 4 mil milhões de endereços. Contudo, face ao ritmo de crescimento dos pequenos dispositivos computacionais, mas cuja capacidade de armazenamento e de processamento da informação os coloca ao nível dos computadores de há uma década – refira-se, em particular, os smartphones – o número de endereços disponíveis revela-se como uma limitação para um planeta que pode estar interconetado. Assim, no final da década de 90, foi criada uma nova norma, designada por IPv6 e que tem vindo a ser paulatinamente absorvida pela infraestrutura de comunicações.

A gama de endereços IPv6 permitirá endereçar publicamente milhares de dispositivos por cm2 da superfície da Terra. A antiga Internet está, assim, a dar lugar à Internet das Coisas (Internet of Things ou IoT), criando um verdadeiro Ciberespaço, caracterizado pelo enorme potencial de aplicações que poderá permitir.

Juntando estes fenómenos evolutivos, a aplicação e a exploração das tecnologias digitais disponíveis (no caso de equipamentos digitais pessoais), ou propositadamente inseridas, no ambiente das cidades, irão criar um ecossistema de informação cujo aproveitamento será perfeitamente possível. Mas haverá vontade e/ou engenho para conduzir essa evolução, colocando-a ao serviço da cidade e dos cidadãos? Se a resposta for sim, então teremos realmente Cidades Inteligentes. Se a resposta for não, contudo, a miragem da smart city continuará a ser um excelente tema para promover a própria evolução da tecnologia – num cenário mais monopolista, teremos estacionamento “inteligente”, gestão energética “inteligente”, tráfego “inteligente”, etc., mas não necessariamente integrado, como necessário para a Cidade Inteligente.

 

A segurança da Informação

Para além dos aspetos tecnológicos e que foram anteriormente resumidos, há muitos outros aspetos que irão condicionar aquela evolução nos espaços urbanos. A ritmos diferentes e dependendo claramente de fatores culturais, sociais, políticos e económicos, cada cidade irá (desejavelmente) explorar algumas tecnologias, em parceria com empresas privadas e procurando adaptar-se à satisfação demonstrada pelos cidadãos. Haverá consonâncias, mas também haverá muitas dissonâncias. Assim, a Smart City será um processo de transformação digital (que já está a decorrer) e não um projeto. Um processo que consistirá na construção de um Sistema de Sistemas de Sistemas…, com um nível de complexidade enorme e sem prazo de conclusão definido.

Neste processo e porque lida, sobretudo, com cidadãos que dele fazem parte integrante, é com naturalidade que se justificam alguns dos principais requisitos necessários para uma Smart City: melhoria da qualidade de vida; melhoria da qualidade do trabalho; mobilidade; e sustentabilidade. Não é fácil avaliar até que ponto as soluções setoriais (e verticais) até agora introduzidas em projetos piloto, em cidades por todo o mundo (Copenhaga, Singapura, Estocolmo, Zurique, Boston, Tóquio, etc.), cumprem estes requisitos. Mas será mais fácil compreender o porquê de, frequentemente, vários projetos serem abandonados depois de investimentos consideráveis.

Intrínseco aos resultados obtidos neste contexto está a confiança de que os cidadãos devotam nas soluções disponíveis. Como é facilmente perceptível, a segurança da informação e a privacidade (ou a perceção da sua ausência) são elementos com elevado impacto na confiança. A segurança da informação é a garantia da preservação de algumas propriedades não funcionais, tais como a integridade, a confidencialidade e a disponibilidade, a níveis previamente estabelecidos e assumidos por todos os intervenientes. A privacidade, por seu lado, é o direito (atualmente reforçado pelo Regulamento Geral de Proteção dos Dados Privados – RGPD –, produzido pela UE) que cada cidadão tem sobre a gestão dos seus dados privados.
É amplamente aceite que a implementação de mecanismos de segurança e privacidade é extremamente difícil. São questões que, quando deixadas ao sabor da lógica económica, se revelam como custos ou, pior ainda, como suporte indelével ao modelo de negócio. É um problema que carece de intervenção ao nível regulamentar, como está a ser demonstrado pelo processo de implementação do RGPD e ao qual, por força das coimas impostas, as organizações estão a aderir. Mas não são só estas as dificuldades. Os comportamentos menos responsáveis dos utilizadores, muitas vezes condicionados por ausência de preparação, revelam-se igualmente como uma importante barreira. E isto ao mesmo tempo que a cultura digital vem proporcionando aos mais jovens um acesso alargado a ferramentas e informação que lhes permite, muitas vezes por pura curiosidade, explorar ataques bastante perigosos e com consequências cada vez mais abrangentes. Assim, para o sucesso das smart cities, convém incluir igualmente estes aspetos, nos planos de desenvolvimento dos projetos tecnológicos. Mas é evidente que ainda há um longo caminho a percorrer até perceber como é que toda esta tecnologia pode, de forma sustentada, ser transformada em business cases reais, num contexto complexo e muito diferente.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.