Carros, sinais de trânsito, caixotes do lixo e, agora, trotinetas e bicicletas. Os passeios estão repletos de obstáculos e, por vezes, avançar a pé na cidade é um desafio só à altura dos mais ágeis. Na capital portuguesa, há uma equipa de dez profissionais à procura de desobstruir a passagem e reconquistar espaço para as pessoas. Na sequência deste trabalho, o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa recebeu já uma distinção internacional.
Andar a pé “é o modo de transporte mais democrático”, mas, “ao longo de todo o século XX, os passeios e as passadeiras, mas, sobretudo, os passeios, começaram a ser vistos como aquela parte da rua que sobra depois de tirar o espaço para os carros circularem e estacionarem”. Hoje, os passeios são estreitos e “pejados de obstáculos”, porque o resto das ruas está entregue “em exclusividade ao monopólio do carro”. Pedro Homem de Gouveia, arquitecto e coordenador do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa há, contou à Smart Cities que o plano municipal começou a tomar forma em 2008, quando, por decisão do actual primeiro-ministro e, então, presidente da autarquia, António Costa, se começou a traçar uma estratégia para sair de uma situação em que “se fazia muito pouco ou nada” em termos de acessibilidade. Depois de nove anos de trabalho, em Maio de 2019, a estratégia valeu a Lisboa o prémio internacional Wellbeing City, na categoria “Ambiente Sustentável”.
O Plano foi aprovado por unanimidade na Assembleia Municipal de Lisboa em 2014 e começou a mudar a paisagem da cidade em 2015, com as primeiras obras no terreno. Hoje, a equipa é constituída por dois arquitectos, um engenheiro civil, duas pessoas que prestam apoio administrativo, uma psicóloga, ergonomista, especialista em turismo e um geógrafo especializado em sistemas de informação geográfica (SIG). É “uma mistura explosiva” que tem permitido realizar “em toda a linha” um processo de pesquisa e desenvolvimento, “observando” e “auscultando” os utilizadores da via pública.
A estratégia do plano, é, em primeiro lugar, “não cometer mais erros” e, depois, “eliminar progressivamente as barreiras que existem”. Haverá, segundo o próprio, 9800 passagens de peões, 2 mil paragens de autocarro e 1250 quilómetros de passeio em Lisboa. “É um esforço que vai demorar anos (…) Lisboa esteve durante anos a criar barreiras”, mas, agora, a expectativa “é que demore muito menos tempo” a eliminá-las.
O passeio é o espaço da rua que “sobra”
Os passeios podem ser estreitos, mas esta “não é uma fatalidade da natureza, não é como ter sete colinas”, explica o arquitecto da câmara municipal de Lisboa. São estreitos porque “o espaço que havia para os peões foi retirado para ser dado ao carro”. A oferta de espaço ao automóvel induziu a sua utilização e, hoje, há muita gente “completamente prisioneira” do carro. Os carros são um dos grandes obstáculos à mobilidade pedonal, seja por ocuparem ilegalmente os passeios, seja por tomarem “80% de largura da rua”. Hoje, “aquilo que não se resolve na faixa de rodagem, vai-se resolver em cima do passeio”.
É para o passeio que vão todos os objectos que não cabem na estrada e isto só acontece, porque, nas cidades, o peão é tratado como “personagem secundária”. Na perspectiva de Pedro Homem de Gouveia, “os passeios passaram a ser vistos como aquele espaço de arrumação que há lá em casa onde pomos a tralha toda”, aquela “que não se quer ter dentro do prédio, mas também não se quer ter no meio da rua”. “Vai tudo para cima do passeio. Perdeu-se esta noção de que, de facto, os passeios são uma infra-estrutura de transporte”. Esta é uma “herança de décadas” que a equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa está a mudar, todos os dias.
A equipa do Plano encarrega-se de “definir regras” e “normas internas” para a construção e readaptação da infra-estrutura associada à mobilidade pedonal, composta por “passeios, passagens de peões e paragens de autocarro”. Através da consulta das melhores práticas internacionais, das normas legais e da inclusão de “pessoas com deficiência visual e motora” na realização de projectos piloto, os modelos foram, por fim, aperfeiçoados. Hoje, esta equipa é apenas “um dos vários serviços” a executar estas obras. O Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa capacita os vários departamentos, serviços e juntas de freguesia da cidade para aumentar a segurança dos peões, mas também dos utilizadores de outros modos de transporte. Para Pedro Homem de Gouveia, “a maior prova de sucesso do plano” dá-se quando a equipa anda pela cidade e é “confrontada com passagens de peões que foram adaptadas” sem o conhecimento da equipa, mas com “aquela qualidade e aquele rigor” que impõem nos modelos que fornecem. “Tínhamos feito, exactamente, assim”, confessa com orgulho.
Para dar espaço a quem não o tem, há que tirá-lo a outro(s)
As coisas estão a mudar: em Lisboa, estão a aparecer novos modos de transporte e é preciso dar-lhes espaço. E isso só pode acontecer à custa do “monopólio do automóvel”, explica. Mas “quem usa outros modos não tem a mesma oportunidade, não tem as mesmas condições em termos de conforto, de segurança e de custo”. Pedro Homem de Gouveia considera que as opções existentes não estão “aproximadas” e isso levanta um problema: “só tens liberdade de escolha quando, no fundo, tens opções”. Para o arquitecto, em relação ao automóvel, “grande parte” das outras opções de mobilidade é “extremamente penalizadora”, pelo que, “na realidade” só existe uma “opção capaz, que é andar de carro, porque é mais rápido”. Nas fotografias mais antigas de Lisboa, conta, quando as ruas da cidade ainda não estavam repletas de automóveis, construíram-se “faixas generosas” e criou-se “imenso espaço para estacionar”, “gerou-se uma oferta enorme”. E, porque o espaço lhes foi dado, os carros apareceram. Hoje, a luta do Plano é pela reconquista deste espaço.
“O domínio público é um recurso finito” e “é um bocadinho como o cobertor, se esticas para cima, destapas”, explica. Garantir que o espaço é distribuído de forma equilibrada não é fácil “para darmos mais espaço a um dos modos, temos de o tirar a algum lado”. E tiram-no ao espaço do automóvel, que constitui, para o coordenador do Plano, “o maior recurso que a cidade tem para a mobilidade sustentável”. Os “80% de largura da via” constituem “uma afectação completamente desequilibrada de espaço ao transporte individual motorizado” e é aqui que pode haver lugar à devolução da rua às pessoas, à mobilidade partilhada, às bicicletas, trotinetas, mas, também, ao transporte público.
Uma cidade mais lenta é uma cidade mais segura
O passeio ideal “tem de ter um piso confortável e antiderrapante que seja regular”. E isso não tem de entrar em conflito com a coexistência da calçada. Progressivamente, todos os 1250 quilómetros de passeio de Lisboa terão piso confortável, mas isso não significa, garante, que este piso tenha de ocupar toda a largura do passeio.
A segurança dos peões não depende só, da qualidade do passeio. Um dos factores chave para o aumento da segurança rodoviária é a redução das velocidades praticadas dentro da cidade. “A experiência demonstra claramente que reduzir a velocidade é a forma mais eficaz e mais rápida de reduzir o número e a gravidade dos sinistros”. E há várias estratégias que o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa coloca em prática para lá chegar, através do modo como desenha – e redesenha – os espaços. A acalmia de tráfego implica a adopção de “medidas físicas que garantem que o condutor vai imediatamente reduzir a velocidade e que isso não depende do civismo dele”.
O Plano tem adoptado medidas como o estreitamento de vias, tirando o “à vontade” de quem vai ao volante e obrigando à redução “instintiva” da velocidade. Isto concretiza-se ao “fazer as curvas mais apertadas”, estendendo as zonas pedonais onde antes existia asfalto inutilizado, ou “trazendo o passeio para o limite do estacionamento”, na zona das passadeiras. “O espaço a mais não é segurança para o carro, faz é o carro andar mais depressa e gera mais perigo para todos, inclusive para o condutor”. O “desvio vertical”, materializado na forma de lombas e passadeiras elevadas ao nível do passeio, é outra das estratégias adoptadas “que resulta muito bem”, revela o técnico.
Segurança que não depende do civismo
O Plano pretende garantir a “segurança, acessibilidade e funcionalidade” de passeios, passagens de peões e paragens de autocarro e, aqui, a segurança rodoviária desempenha um papel de relevo. “A sinistralidade rodoviária em meio urbano é muito diferente da sinistralidade em auto-estradas e estradas nacionais”, explica o responsável pelo Plano. Dentro das cidades, explica o coordenador do plano municipal, verificamos que “a maioria das pessoas gravemente feridas, ou que são mortas pela sinistralidade rodoviária dentro das cidades, refere-se a pessoas que estão fora dos carros, não as que estão dentro”. A questão não passa por “condicionar o livre comportamento dos peões e dos ciclistas, mas sim garantir, por meio de medidas físicas, que os carros vão efectivamente andar devagar, que a segurança rodoviária não depende do civismo”. Assim, o trabalho que tem sido desenvolvido procura garantir a implementação de “condições estruturais”, através do desenho dos espaços, anulando a necessidade do civismo, não deixando as coisas ao acaso.
O Plano quer ajudar Lisboa a tornar-se numa smart city, afastando-a da ideia de “uma cidade estúpida”, aquela “que está permanentemente a cometer os mesmos erros”. Foi por isso que o primeiro objectivo “foi deixar de cometer erros”. O Plano quis “aproveitar ao máximo aquilo que é a máquina da câmara”, evitando “centralizar” a questão da acessibilidade pedonal. Hoje, capacitam “os vários serviços” camarários e a adaptação da infra-estrutura pedonal na cidade “ganhou tal velocidade” que conta à Smart Cities, “com alegria”, que não sabe quantas passadeiras foram adaptadas. A prioridade não tem sido contar, tem sido adaptar.