A par da urbanização, o envelhecimento da população é um dos desafios mais significativos deste século. Assegurar a qualidade de vida e bem-estar dos mais velhos cabe em grande parte às cidades, mas esta relação não é unilateral e há muito para receber em troca.

Fazia lembrar o James Dean. O cabelo loiro, os olhos azuis e o sorriso jovem e malandro de quem tem 20 anos davam-lhe o ar de galã dos filmes antigos que desconcertava as meninas. Nessa altura, era ele quem costumava abrir os bailes. Chamavam-lhe o “cara linda” e, no bairro, todos sabiam quem era o Carlos. Desde essa altura, passou quase meio século, o Carlos tem hoje 68 anos. Uma doença respiratória antecipou-lhe a reforma e trouxe calafrios à família. “Parar é morrer”. Ao início, dividia o tempo livre entre filmes e sestas, mas isso não lhe chegou. Aos poucos, foi encaixando novas tarefas no dia-a-dia – vai buscar o neto à escola, prepara-lhe o almoço, concerta uma ou outra coisa lá em casa ou na vizinhança. Quando se aventurou no computador e descobriu o Google, todo um mundo novo se abriu e começou a construir, em pequena escala, os barcos que pesquisava e via no ecrã. Nunca se interessou muito por política, mas agora faz parte de um movimento de reformados. As varizes atrapalham-lhe o andar, mas nem por isso pára quieto. No bairro, todos continuam a saber quem é o Carlos e, quando alguém lhe diz “estás velho, homem”, dana-se e responde encontrando qualquer outra coisa para fazer.

O Carlos não está velho, mas está a envelhecer. E não é o único. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos duplique em todo o mundo. Em Portugal, segundo o INE/PORDATA, existiam, em 2015, mais de dois milhões de pessoas com mais de 65 anos, e o índice de envelhecimento (número de pessoas com 65 anos ou mais por cada 100 jovens com menos de 14) era de 143,9%, bem mais do que o europeu – 122%.

Os avanços tecnológicos, os progressos na medicina e uma melhoria da qualidade de vida trouxeram-nos até aqui. Hoje, vivemos mais tempo e – assim se espera – melhor. No entanto, quando a juventude acaba, tudo isto se torna mais incerto. Nessa fase, somos mais frágeis. É impossível negar: envelhecer é uma coisa chata. Mas engane-se quem a olha com um determinismo angustiante. Muito pelo contrário: pode ser feliz, saudável e gratificante. E se tornar isso uma realidade não depende exclusivamente de nós, há, pelo menos, um factor no qual podemos intervir: a cidade. O ambiente urbano em que envelhecemos determina a forma como vamos viver essa fase da vida. Quando corre bem, este é o espaço que nos dá segurança, capaz de proporcionar o acesso às infra-estruturas e equipamentos de que necessitamos e de promover a continuidade da nossa participação activa na sociedade. Quando corre mal, é ele que nos condena, pois é lá que as mais pequenas barreiras físicas e cognitivas se agigantam e se vão tornando progressivamente intransponíveis.

Assegurar um envelhecimento activo e bem-sucedido da população é possivelmente um dos maiores desafios que se colocam às cidades de hoje e isto não se refere apenas a questões como a mobilidade ou a acessibilidade. Abordá-lo vai exigir uma transformação de praticamente todas as áreas da nossa vida e um novo olhar para aqueles que já viveram mais do que nós.

“Quanto mais a pessoa é estimulada para vir para o [espaço] público, para o seu colectivo, mais as prevalências mentais, muito associadas à demência, podem ser combatidas ou, pelo menos, adiadas por algum tempo”.

Um retrato com muitas facetas

Os dados estatísticos dão-nos os números, mas são insuficientes para traçar um perfil dos nossos seniores. De forma geral, é possível identificar tendências positivas que reflectem o evoluir dos tempos e da própria sociedade. Graças aos avanços nos cuidados de saúde, fazer 65 anos não é sinónimo de invalidez. O aumento das taxas de escolaridade contribuiu também para um sénior com mais habilitações, até especializado, disposto a aprender mais e que, de forma mais ou menos ágil, está receptivo às novas tecnologias. Tal como o Carlos, é um sénior que não se resigna à condição de reformado e que, mesmo não fazendo parte do mercado de trabalho, representa um activo para a sociedade, participando na vida da comunidade, estando disponível para voluntariado e assegurando a estabilidade familiar.

Os anos de crise são bons exemplos disso, com as pensões de aposentação a garantir a sobrevivência económica de muitas famílias. “No nosso país, a população idosa funciona como um Estado-Providência paralelo”, aponta a socióloga e investigadora Alexandra Lopes, ilustrando: “Quem é que está à porta das escolas primárias para ir buscar as crianças? Quem permite que muitos pais consigam conciliar a vida familiar com uma vida profissional extraordinariamente exigente? São os avós, os mais velhos. Isto é uma contribuição enorme, é uma rede de segurança”. Porém, neste retrato, é preciso atenção, diz a também docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. “Será um erro grande falar da população idosa portuguesa como se se tratasse de um todo homogéneo, não o é. Temos idosos ricos, pobres. Idosos homens, mulheres. Idosos que vivem em zonas urbanas, outros que vivem em zonas rurais. Há uma diversidade que remete para a própria diversidade da sociedade em geral” e que deve ser tida em conta quando se elaboram estratégias para esta faixa da população, que é, muitas das vezes, “mais frágil”. Isto acontece não só pela deterioração das capacidades físicas e cognitivas próprias do envelhecimento, mas “sobretudo pela combinação desta deterioração com a vulnerabilidade no plano económico e relacional”, explica a especialista. “Não tem de ser assim”.

O potencial por explorar

Na abordagem ao envelhecimento, a OMS identificou três áreas de actuação importantes, que passam pelo realinhamento dos sistemas de saúde face às necessidades dos mais velhos, o desenvolvimento de sistemas de cuidados a longo prazo que permitam às pessoas viver com mais dignidade e a transformação dos locais onde vivemos. Foi neste contexto que surgiu a iniciativa internacional Cidades Amigas das Pessoas Idosas e que chama a atenção para o papel crucial que o espaço urbano tem num envelhecimento bem-sucedido. A Rede mundial, criada em 2010, e o Guia oficial têm dado orientação a 400 cidades e comunidades de 30 países neste percurso. “Uma cidade amiga do idoso estimula o envelhecimento activo ao optimizar oportunidades para a saúde, participação e segurança, para aumentar a qualidade de vida à medida que as pessoas envelhecem”.

Com 19% da sua população com 65 anos ou mais (cerca de 35 mil pessoas), há já algum tempo que o município da Amadora identificou o envelhecimento demográfico como uma das áreas de actuação prioritárias. Em finais de 2015, criou um Plano Estratégico para o Envelhecimento Sustentável com horizonte em 2025 e que inclui um pacto de compromisso à acção, assinado por 51 entidades do concelho, incluindo entidades públicas e privadas e empresas. Como resultado, há vários projectos implementados, quer de âmbito tecnológico (por exemplo, a teleassistência ou a monitorização dos serviços sociais e de saúde), quer de âmbito mais social e económico (como o cartão de descontos Amadora65+ ou o programa ocupacional VIVA+).

Ana Moreno é chefe da Divisão de Intervenção Social da Amadora, onde “o desafio tem sido encontrar projectos e respostas que sirvam toda a população e que vão ao encontro do que são as necessidades dos idosos”. A par de situações mais complexas aos níveis social, económico e de saúde e que representam uma larga fatia do orçamento municipal na área social, a responsável admite que “o idoso de hoje é completamente diferente” e a cidade precisa de se adaptar e dar resposta a todos. “Vemos na população sénior um potencial a explorar”, admite.

O relatório da OMS sobre o envelhecimento global de 2015 é peremptório neste aspecto, afirmando que, embora uma parte da população idosa vá precisar de cuidados e apoio, outra haverá que pode “contribuir de múltiplas e variadas formas para as famílias, comunidades e sociedade, de forma geral”, compensando largamente qualquer investimento necessário em serviços de saúde, assistência ou segurança social. Do ponto de vista político, é preciso encontrar formas de pôr os mais velhos a fazer aquilo que é importante para eles, recomenda a organização internacional.

“Depois de se reformarem, as pessoas estão muito interessadas em aprender coisas que não tiveram oportunidade de aprender na vida activa”, conta Ana Moreno. E não só, “estão também muito disponíveis para o voluntariado – seja nas instituições, seja na academia sénior da Protecção Civil, seja em voluntariado de proximidade e de apoio a pessoas que estão já em situação de grande dependência”.

Cidade como espaço seguro

Muitas vezes se diz que o séc. XXI será o século das cidades. O especialista Barros de Oliveira acrescenta que este será também o século dos idosos. Será possível aproximar estas duas realidades numa relação win-win? O caminho não poderá ser outro, mas as cidades têm trabalho pela frente. Por um lado, é preciso dar resposta às fragilidades físicas e cognitivas do envelhecimento, por outro, é preciso encontrar formas de alavancar tudo o que os mais velhos têm para oferecer à sociedade.

Arquitecta na câmara municipal do Porto, Lara Mendes tem usado os conhecimentos que desenvolveu na sua tese de doutoramento sobre Desenho Urbano e Envelhecimento Activo para ajudar a cidade a adequar-se a esta realidade. No ano passado, a Área Metropolitana do Porto recebeu o selo de Sítio de Referência Europeu para o Envelhecimento Activo e Saudável e, neste tempo, a cidade tem dado passos interessantes no cruzamento de outros sectores com o urbanismo. Entre os exemplos estão temas como a saúde oral ou a nutrição, factores que, segundo apuraram, condicionavam os hábitos desta população em particular. “São questões que nunca estiveram ligadas ao urbanismo mas que faz sentido serem pensadas” e que implicam um conhecimento muito grande do território e da sua população. Nesse sentido, “há, de facto, a necessidade de se fazer um mapeamento da população idosa e perceber-se que tipo de idosos temos, onde estão mais concentrados, etc.; assim conseguimos perceber quais as áreas do território mais prejudicadas e quais as prioridades”, argumenta.

Esse é um trabalho que está feito na Amadora, conta Ana Moreno – “Há três anos, começámos um projecto de georreferenciação das pessoas mais velhas. Sabemos exactamente quantas pessoas de mais idade moram na rua x, prédio y. Isso permite-nos pensar em intervenções para zonas específicas do território”. E há já uma na calha: muito em breve, a zona antiga da Venda Nova vai passar a ser o Bairro Amigo do Idoso. “Percebemos que era preciso actuar ali, porque é uma zona onde moram muitos idosos sozinhos. Vai ser uma intervenção ao nível da mobilidade e acessibilidade”, adianta.

Mobilidade e acessibilidade

Quando se pensa em adaptar uma cidade ao seniores, as funções de mobilidade e acessibilidade são as primeiras a surgir e não é por acaso. “São, no fundo, os dois campos que nos ajudam a pensar e a mitigar os diversos problemas que a cidade tem para conseguirmos, depois, trabalhar mais em particular questões como a habitação, os serviços, os equipamentos, a oferta, o comércio, etc.”, adianta Lara Mendes. Mas isto não basta – é preciso olhar para todos os requisitos que o próprio espaço público deve conter e “apetrechá-lo com os diferentes componentes de organização clara e de geometria funcional prática para que seja, de facto, fácil e convidativo para o idoso”.

Para a especialista, os técnicos devem olhar a cidade sendo esta composta por pequenas células – unidades de vizinhança, que têm de estar articuladas numa macro escala com os equipamentos e acessíveis em distâncias que possam ser percorridas pelos idosos num máximo de 15 minutos. A recomendação, mais técnica, é antecedida por uma outra mais simples: é preciso auscultar as necessidades e carências destes cidadãos. “Em termos de planeamento, [saber o que é importante para eles] ajuda-nos muito a equacionar, mediante a grandeza do equipamento, qual a sua melhor localização e que cobertura ao nível das unidades de vizinhança este vai ter de garantir”, diz a técnica municipal. A prática começa a marcar já presença nas reuniões dos gabinetes de urbanismo municipais, mas, na opinião de Lara Mendes, há ainda um entrave muito grande – o planeamento pensado para o automóvel particular. Eliminando as barreiras físicas, as cognitivas ficam também mais fáceis de combater, alerta a especialista. “Quanto mais a pessoa é estimulada para vir para o [espaço] público, para o seu colectivo, mais as prevalências mentais, muito associadas à demência, podem ser combatidas ou, pelo menos, adiadas por algum tempo”, esclarece.

Deixar de falar da idade

Para a socióloga Alexandra Lopes, “é inaceitável que, em 2017 e com uma moldura legal em vigor, permaneçam barreiras físicas de qualquer tipo”, para qualquer utilizador. Mas, à parte disso, há outros desafios que se impõem. “Quando pensamos na cidade enquanto espaço económico, social, cultural, simbólico, a participação democrática não deveria estar sujeita a qualquer barreira e o que acontece é que a idade funciona como uma barreira à participação democrática no espaço da cidade”. É preciso que “a idade deixe de ser tema de conversa” e, aqui, uma aposta no relacionamento intergeracional pode trazer vantagens. Juntar os mais velhos e os mais novos vai promover a troca de conhecimentos, optimizar recursos, combater o isolamento e a exclusão. Casos de sucesso, como o projecto Aconchego no Porto ou juntar creches a lares, são exemplos disso e não exigem grandes investimentos. “É muito importante investir, mas nem tudo exige a mobilização de recursos em volume estapafúrdio. Há coisas que exigem apenas vontade política. Os líderes têm um papel determinante”, declara. Alexandra Lopes defende que há também muito a fazer ao nível da participação na cidadania dos mais velhos, muito em reflexo do que é a “cultura débil de cidadania dos portugueses”, e lança o desafio aos municípios: “Atendendo à relevância, até numérica, que tem a população idosa e à especificidade das suas necessidades, seria interessante avançar com mecanismos de promoção da participação ao nível do processo de tomada de decisão”.

Como forma de “abanar um pouco as coisas”, o município da Amadora criou o Fórum Sénior Amadora (FSA), que se reuniu pela primeira vez em Maio deste ano. Escolhidos pelas instituições e juntas de freguesia do concelho, os membros representam os seniores da cidade. “Esta população, principalmente as pessoas mais velhas  e com menos instrução, é pouco participativa. O pouco que têm chega-lhes e nunca exigem mais. O objectivo do FSA é dar voz às suas preocupações”, explica Ana Moreno.

Perante a fraca participação, colocar as necessidades dos mais velhos na agenda política pode parecer uma tarefa hercúlea, mas Alexandra Lopes tem uma teoria para isso: “Se não for por mais razão nenhuma, de x em x anos, os cidadãos são chamados a votar e ganha quem tiver mais votos. Estamos a falar de um grupo etário que, em termos absolutos, terá inevitavelmente uma capacidade muito significativa de influenciar a agenda política”.

No que toca ao envelhecimento da população, o especialista em urbanismo e mobilidade colombiano Gil Peñalosa considera que as cidades estão a “ser muito reactivas”, quando deviam ser pró-activas. “Fico espantado com o facto de as cidades ficarem surpreendidas no que toca às pessoas mais velhas. Se há algo que é fácil de prever é o envelhecimento da população”. À frente da Fundação 8 80 Cities, a proposta de Peñalosa para dar resposta ao desafio do envelhecimento está em construir uma cidade que seja adequada tanto para uma criança de oito anos, como para um idoso de 80. E não está só a falar de mobilidade. “Temos de ter uma cidade que é fantástica para quem tem 65 anos, e essas pessoas não querem ir jogar às cartas. Querem ir correr, jogar ténis, frequentar a universidade”. As sugestões são muitas: “Por que é que não temos as universidades abertas para que os adultos mais velhos possam aprender sobre, por exemplo, jardinagem, filosofia, música, cidades…? Porque não ter os mais velhos a ensinar Português aos imigrantes? Ou a ajudar a ensinar as crianças nas escolas? Ou a organizar actividades para outros adultos mais velhos, como tai-chi ou dança no parque? Há tantas coisas que podem ser feitas pelos mais velhos…”.