Passado pouco mais de dois meses desde o lançamento do projecto Student Keep, a iniciativa alcançou, nestes dias, um marco simbólico: mais de mil equipamentos informáticos entregues a estudantes de todo o país que, até aqui, não tinham meios para acompanhar as aulas à distância. Mas esta iniciativa solidária é muito mais do que isso e assume-se como uma abordagem circular e sustentável para responder às desigualdades no acesso digital à educação.

Nascido em plena pandemia de covid-19, o Student Keep funciona através de um sistema de apadrinhamento, que consiste na angariação de equipamento informático e a posterior doação a alunos, do ensino básico ao secundário, que não têm acesso a um computador. O projecto voluntário e de âmbito nacional propõe-se a contribuir para a resolução de um problema de escala global e que os efeitos da pandemia vieram a intensificar: a falta de acesso a equipamentos informáticos ou à internet para o ensino à distância.

O projecto ganhou forma no seio do #tech4covid19, o movimento que juntou startups e empresas tecnológicas de todo o país no desenvolvimento de soluções para responder às dificuldades colocadas no combate à propagação do vírus, mas foi na sala que Rui Nuno Castro partilha com os filhos, entre os brinquedos e a secretária de trabalho, que a ideia surgiu. Sendo um dos fundadores da associação AlphaCoimbra, está desde há muito ligado à comunidade tecnológica e empreendedora. Com dois filhos em idade escolar e sendo a esposa professora do ensino básico, o período de confinamento e o arranque do ensino à distância trouxeram, para dentro de casa, histórias que davam conta de um problema complexo: muitos alunos não tinham dispositivos para aprender de forma remota. “Soube de casos dramáticos, como, por exemplo, numa turma de 24 alunos, metade não tinha forma de acompanhar o estudo a partir de casa, fosse por falta de acesso à internet, fosse por falta de equipamento informático”, recorda.

Ao mesmo tempo que tinha conhecimento destas situações, o empreendedor tentava gerir a sua própria condição particular. O facto de ser imunodeprimido coloca-o dentro do grupo de risco e as mensagens passadas diariamente pela comunicação social tornaram os primeiros dias da pandemia e de confinamento num extremo de ansiedade e medo. “Quando estamos com medo, a primeira reacção é de retracção e isso limitava-me muito. Sentia necessidade de ajudar e não sabia bem como, até porque corria o risco de eu mesmo vir a precisar de ajuda”. Porém, o espírito empreendedor e a vontade de ajudar falaram mais alto e, habituado a procurar soluções com a ajuda das novas tecnologias, Rui Nuno Castro rapidamente “ligou duas pontas”. Começou, assim, a desenhar-se o Student Keep.

“Partilhei o problema com o movimento [#tech4covid19], falámos sobre como poderíamos resolvê-lo e a solução evoluiu muito rapidamente”, conta. A 23 de Março, era lançado a primeira versão do site do projecto, com a proposta de identificar, por um lado, pessoas com necessidades neste âmbito e, por outro, pessoas que pudessem ajudar. Esta era a ideia inicial, que, embora cheia de boa vontade, levantava questões prementes, como o rigor e transparência do processo, a validação dos pedidos de ajuda, os critérios para a atribuição dos equipamentos ou o mero levantamento das necessidades. “Quem, à partida, não tem capacidade de acompanhar a escola a partir de casa, também não consegue ir ao site para registar a necessidade”, aponta Rui Nuno Castro.

A resposta para estas questões não tardou e chegou com a entrada do ministério da Educação na iniciativa, que se predispôs a ajudar. Aproveitando o levantamento de necessidades já feito pelas escolas, a responsabilidade de atribuir os equipamentos passou a ser feita pela entidade governamental, libertando os esforços da equipa do Student Keep para a angariação de equipamentos e, quando necessário, o seu recondicionamento.

Desta forma, o projecto evoluiu para o que é hoje. No portal, particulares ou empresas podem registar-se manifestando o seu interesse em doar equipamentos, tornando-se, deste modo, num “Keeper”. Computadores portáteis ou de secretária, periféricos, novos ou usados – todos são bem-vindos desde que cumpram os requisitos mínimos para a finalidade a que se destinam, isto é, consigam funcionar com as plataformas e programas que as escolas estão a utilizar no ensino à distância. Espalhados por todo o país estão 140 voluntários técnicos de IT, que fazem a recolha, o diagnóstico e o eventual recondicionamento dos equipamentos, que são, posteriormente, entregues na escola indicada. “A entrega do equipamento aos alunos é mediada pela escola, mas, até aí, todo o processo é gerido pela nossa plataforma em total transparência, e a pessoa que fez a doação recebe notificações de evolução do estado da doação”, explica o responsável.

A transparência da iniciativa tem sido, para Rui Nuno Castro, um dos pilares de sucesso do projecto e que tem atraído parceiros de peso, como a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação Benfica, a Fundação Galp, a EDP ou, até, a WebSummit. Uma das acções que mais trouxe visibilidade ao projecto foi a participação da esposa do jogador do Benfica Seferović, que adquiriu um conjunto de portáteis para doação e que viu no Student Keep a forma mais segura de o fazer.

E depois do confinamento? “É para continuar”

Neste mês de Junho arranca a terceira fase do desconfinamento em Portugal. Na expectativa de um regresso à normalidade possível, coloca-se a questão: como vão evoluir as várias iniciativas que nasceram para responder à pandemia? No caso do Student Keep, o impulsionador do projecto está convicto de que é para continuar, pois a acção está assente em três pilares: solidariedade, sustentabilidade e economia circular. “O que estamos a fazer, em grande parte dos casos, é colocar equipamentos, alguns em fim de vida, disponíveis para nova vida e com um cariz muito importante de apoio a quem não tem outros meios para o fazer. É uma realidade que não vai mudar e que já existia. Este momento só teve o condão de tornar este problema mais evidente”, justifica.

Os números da UNESCO dão força às expectativas do Student Keep. Com o encerramento de escolas em 191 países, estima-se que, pelo menos, 1,5 mil milhões de estudantes e 63 milhões de professores tenham sido afectados durante este período, tornando o ensino à distância uma alternativa. No entanto, a solução não é, ainda, para todos, já que, segundo um estudo da UNESCO feito em Abril, metade dos estudantes que estavam, à data, fora das salas de aulas (cerca de 830 milhões em todo o mundo) não tinha acesso a um computador e mais de 40% não dispunha de internet em casa.

Para o empreendedor, o ensino à distância vai continuar, nem que seja como um complemento, e, por isso, há que aproveitar as competências adquiridas. “O projecto vai continuar a fazer sentido e vai naturalmente evoluir conforme as circunstâncias. Temos sido desafiados por alguns parceiros para conseguir dar garantia de que não se vai esgotar no fim desta pandemia. Estão criadas condições naturais para que o projecto possa perdurar”, assume. Por agora, há já outro desafio no horizonte, a internacionalização. “Recentemente, surgiu a possibilidade de levarmos o projecto para Cabo Verde, estamos já em contacto com o governo cabo-verdiano, que teve conhecimento da acção e nos perguntou se podíamos ajudar na resolução do mesmo problema lá”, revela.

“O problema é tão grande que a nossa única ambição é de ajudar a mitigá-lo e não de o resolver”. Para além disto e dos três pilares em que assenta o Student Keep, a iniciativa teve, para Rui Nuno Castro, um efeito adicional. “Todo o envolvimento das pessoas tem sido verdadeiramente renovador da crença na sociedade em que vivemos, na minha, principalmente, tem sido uma experiência fantástica. Demonstra que, quando os desafios são grandes, temos a capacidade de nos reorganizar e de colocarmos o que sabemos fazer ao serviço da comunidade, e a solidariedade genuína que está implícita em todo o processo é extraordinária. É, sem dúvida, extenuante, mas é também recompensador a vários níveis, principalmente humano e renovador. A sociedade portuguesa, nesse aspecto, está de parabéns”, conclui.