Durante os próximos quatro anos, o projecto europeu eMOTIONAL Cities dispõe de cinco milhões de euros para tentar perceber como o ambiente urbano afecta a saúde mental das pessoas, em particular aquelas que sofrem de defeito cognitivo ligeiro. Mais do que encontrar uma terapêutica para estes pacientes, a iniciativa, que conta com coordenação portuguesa, tem como objectivo tornar o planeamento urbano preventivo nesta matéria.
Para a maioria dos que habitam em centros urbanos, viver a cidade tornou-se algo tão banal que a enorme quantidade de informação recolhida pelos sentidos nessa experiência quotidiana já passa despercebida, assim como a relação que esta tem com as emoções. As emoções, por sua vez, são mais difíceis de ignorar; influenciam o nosso bem-estar e as decisões que tomamos.
Vários estudos mostram que a cidade pode influenciar aquilo que sentimos e a forma como nos comportamos. Mas como e em que medida podemos, por exemplo, usar isso a nosso favor e planear cidades que sejam mais benéficas para a nossa saúde? A resposta a esta questão poderá estar naquilo que é a proposta do projecto eMOTIONAL Cities. A iniciativa, que arrancou em Março de 2021, pretende “fornecer evidência científica sobre como o ambiente natural e urbanizado molda o processamento emocional e cognitivo do ser humano, incorporando elementos como idade, género e grupos vulneráveis”, e, a partir daí, desenvolver políticas de saúde urbana.
Nesta busca por evidência científica que una o urbanismo e o ambiente construído e natural à nossa saúde mental, o projecto foca-se num público-alvo específico: idosos com defeito cognitivo ligeiro, isto é, pessoas num estado pré-demência, mas ainda funcionais nas actividades do dia-a-dia e para a realização das experiências. A escolha deste grupo deveu-se ao facto de a demência ser uma doença com repercussões marcantes e com prevalência numa população envelhecida. Sendo o envelhecimento da população um dos principais desafios actuais das cidades, encontrar formas de tornar o ambiente construído mais inclusivo, em particular para os mais idosos, mostra-se ainda mais pertinente.
Elaborar recomendações nessa matéria será um dos objectivos da iniciativa internacional, mas não é o único, estando também prevista a criação de uma infraestrutura que integre dados diversos, quer sejam de base geográfica, quer sejam biológicos ou outros, e que possa potenciar experiências semelhantes futuras.
Para o fazer, o projecto conta com cinco milhões de euros de financiamento do programa Horizonte 2020 e assume dimensão internacional, sendo co-coordenado por duas entidades portuguesas: o Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e a Faculdade de Medicina (FMUL), ambos da Universidade de Lisboa. Doze parceiros internacionais compõem o consórcio do eMOTIONAL Cities, sendo que as suas áreas de conhecimento se dividem pelas duas áreas do projecto – Urbanismo e Neurociência – nas dimensões de Investigação e Inovação.
Em matéria de Urbanismo, para além do IGOT, participam no projecto a Universidade de Cambridge (CAMB), a Universidade Técnica da Dinamarca (DTU), a Universidade de Tecnologia de Tallin (Taltech) e a Universidade do Estado do Michigan (MSU), que disponibiliza também competências na área da Neurociência, a par da FMUL e da Universidade de Tartu (UTARTU). Para assegurar a parte da inovação, o consórcio inclui cinco empresas com expertise em análise climática (Climateflux), observação do planeta e Big Data ( a portuguesa EarthPulse), biossensores e integração (NeuroGears Ltd) e realização de electroencefalogramas e análises de dados (Starlab Barcelona Sl). Por fim, a comunicação e divulgação da iniciativa está a cargo da quarta entidade nacional no projecto – a Sociedade Portuguesa de Inovação (SPI).
Experimentar cenários, testar emoções
Com duração até Fevereiro de 2025, o passado mês de Março marcou o arranque oficial do eMOTIONAL Cities, no entanto, já há algum tempo que o projecto estava a ser desenvolvido. No IGOT, Paulo Morgado é o investigador responsável pelo projecto e foi dele que partiu a ideia. À inspiração trazida pelos livros de António Damásio e Jane Jacobs sobre como as cidades afectam a saúde das pessoas, juntou-se a curiosidade de explorar mais o tema, em particular, na sua relação com a saúde mental, sobre a qual “havia bibliografia, mas muito teórica”, conta.
Apercebendo-se dessa “falta de evidência científica”, a investigação de Paulo Morgado levou-o à Neurociência, mais concretamente, ao encontro de Bruno Miranda. Com a ajuda do investigador da FMUL e também médico neurologista, a ideia ganhou “racionalismo científico” para perceber o que era necessário para “fazer com que o cérebro desse uma leitura de que, realmente, o espaço urbano consegue espoletar em nós determinado tipo de emoções, e como [seria possível] descodificar e medir esses sinais”.
Com a candidatura ao Horizonte 2020 aprovada, os trabalhos do eMOTIONAL Cities estão já em andamento, estando previstas experiências de rua (exteriores) e em laboratório (interiores) em quatro cidades que servirão de casos de estudo ao projecto – Lisboa, Copenhaga, Londres e Lansing (EUA). “Começamos por fazer uma análise espacial de aspectos de urbanismo, usando uma metodologia mista, quer qualitativa, quer quantitativa”, explica Bruno Miranda, que, com Paulo Morgado, assume a coordenação do projecto.
Nesse trabalho inicial, inclui-se a avaliação de políticas de saúde urbana destas cidades, mas também a análise de sentimento com base nas redes sociais – isto é, recolher tweets da população em geral que têm informação geográfica e usar conversores de texto para componente emocional, de forma a fazer um mapeamento das emoções partilhadas.
Sendo que existem já experiências semelhantes e o objectivo da iniciativa é inovação, a equipa do eMOTIONAL Cities quer ir mais além nesta matéria: “Temos um conjunto de métodos e de tecnologia que vai permitir ir além do conhecimento científico que existe nesta área. Combinamos informação proveniente de social media, mas também dados dos Censos – por exemplo, para categorizar o território e saber se há determinado tipo de emoções que são espoletadas em determinado tipo de território e, assim, classificá-lo através de métodos de análise de clustering – e vamos ter também informação mais biológica proveniente de biossensores”, adianta Paulo Morgado.
Para ter acesso a este tipo de informação, o projecto contempla uma série de experiências feitas quer no exterior, quer em laboratório, que, através de dispositivos tecnológicos, entre os quais capacetes de electroencefalogramas (EEG) portáteis, lhes permitirá perceber onde e quando é que estas emoções acontecem no cérebro. “Nas experiências, queremos algo que vá ao encontro da parte emocional, mas também da parte de tomada de decisão e do comportamento social”, refere Bruno Miranda.
De forma a assegurar a robustez do ponto de vista científico e definir quais os dados a recolher, as experiências irão, primeiro, fazer-se em laboratório, já a partir de Janeiro. Os testes terão base em realidade virtual e recorrendo a ressonância magnética funcional, “para localizar onde estas coisas acontecem no cérebro”, e a EEG, “que podem dar mais informações sobre quando é que essas coisas estão a acontecer”, avança o especialista. Os voluntários vão percorrer esta área num cenário virtual, “caminhando numa passadeira como se estivessem a andar na rua”. A modelação vai permitir à equipa do projecto simular diversos elementos, como as cores das fachadas, e, daí, retirar os dados comportamentais e cerebrais do participante. As experiências serão repetidas na rua, durante os períodos de verão dos dois próximos anos.
Nas várias cidades, pretende-se que haja entre quatro a cinco zonas em estudo “representativas de alguns aspectos [particulares], como dispor de uma área de lazer ou de um espaço verde, ou ser uma zona mais tradicional ou com determinada dimensão urbanística”. Em conta é preciso também ter factores que possam interferir com o funcionamento dos equipamentos, como a proximidade de uma central electromagnética, e aproveitar a existência de trabalho feito que possa ser útil ao projecto – por exemplo, zonas já modeladas em 3D. No caso de Lisboa, este último factor determinou já a primeira localização do projecto: a rua das Escolas Gerais.
Os investigadores não estão ainda certos sobre quantas pessoas (voluntários) irão participar na experiência, mas o número deverá estar entre os 20 e 30 participantes. “A ideia é as pessoas caminharem, usando dispositivos [capacetes], a partir dos quais fazemos a monitorização cardíaca e respiratória e um EEG, mais portátil, com menos canais eléctricos; ao mesmo tempo, os participantes levam também uma mochila com sensores de exterior”, explica Bruno Miranda.
Também integrada no projecto está uma outra experiência ligada à área da mobilidade, a realizar em Lisboa e em Copenhaga, e que tem como ponto de partida a experiência do parceiro dinamarquês do consórcio: através de uma aplicação, as pessoas serão interpeladas em certos momentos para fazer uma avaliação da localização em que se encontram, ao mesmo tempo que usam um relógio biométrico a partir do qual será possível recolher dados biológicos. “Estamos a falar, neste caso, de 100 pessoas em cada uma das cidades, o que nos vai conseguir dar dados interessantes”, adianta.
Feitas estas experiências, em 2023, o projecto regressa ao modelo virtual e avança para a experiência clínica, na qual vai trabalhar com aquela que é a sua população-alvo. “Os doentes com defeito cognitivo ligeiro demonstram ter problemas de orientação espacial e a nossa hipótese é: tendo adquirido conhecimento com as experiências anteriores, será que conseguimos modelar determinada rua de forma a encontrar a melhor disposição da cidade para que estas pessoas naveguem melhor?”, esclarece o investigador da FMUL.
O plano é fazer duas experiências, uma pré e outra pós modificação, e observar se o comportamento destes doentes se altera. “Se conseguirmos mostrar que sim, estamos a mostrar que conseguimos ter uma componente terapêutica ao desenhar cidades que tenham em conta determinados aspectos”, aponta Bruno Miranda.
Por sua vez, Paulo Morgado sublinha o potencial que isto pode trazer para os decisores – “ao introduzirem este tipo de conhecimento nos seus instrumentos de planeamento, as cidades futuras podem acautelar potenciais mecanismos que tenham impacto na saúde mental das pessoas e, nesse caso, já não será tanto terapêutico, mas profiláctico”, acrescenta.
Pandemia reforçou tema do projecto
Durante os períodos de confinamento, impostos pela pandemia, os temas da saúde mental e da necessidade de contacto com o exterior tornaram-se “ainda mais relevantes”, confirma Bruno Miranda. O eMOTIONAL Cities foi pensado antes da pandemia e, embora a chegada da Covid-19 e os seus impactos não tenham alterado a essência do projecto, a verdade é que os temas se tocam e, por isso, acabou por haver uma adaptação de uma parte do trabalho.
“Um dos nossos parceiros, que é responsável pela mobilidade, propôs analisar como foi a actividade ao longo do confinamento, em que zonas as pessoas saíram, como foram socialmente classificadas, se traziam determinadas emoções e se foram essas que as pessoas evitaram”, explica o médico.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 33 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2021, aqui com as devidas adaptações.