A subida do nível médio do mar, resultante das alterações climáticas, vem agravar os desafios das zonas costeiras portuguesas, cada vez mais expostas à erosão e a outros fenómenos que têm roubado metros ao litoral e deixado as populações em sobressalto. Relatos, cenários e soluções de quem estuda e lida com o problema.

Desde criança que a areia, o mar e o sol da Caparica são uma espécie de segunda pele para Jorge Ribeiro. Primeiro foram os banhos e as brincadeiras na praia, depois o chamamento das ondas, que o tornaram num dos pioneiros do surf da margem sul. Hoje, quase 50 anos depois, a paixão por aquele mar mantém-se, mas já as praias “nem parecem a mesmas”, tal é a quantidade de areal que tem desaparecido. “Ao longo destes anos todos, o que se vê é a quota de areia cada vez mais baixa e o mar muito próximo do paredão e das casas. Ainda ontem estive no Fonte da Telha e parece que alguém chegou ali e cortou um bocadão de areia para levar mar adentro”, conta-nos o treinador de surf.

À conversa com a Smart Cities, queixa-se dos efeitos da erosão, porque provoca “alterações constantes dos fundos que alteram muito a qualidade das ondas”, e lembra que outros se lamentam, a começar pelos pescadores, turistas e comerciantes. “Uns defendem que o problema vem de causas naturais e o resto fala da mão humana, mas muitos concordam que, mesmo com as intervenções dos últimos anos, não há meio de a coisa melhorar”, desabafa.

O diagnóstico de quem estuda a origem do fenómeno não é muito diferente. José Carlos Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL), explica que esta “crise de areia” resulta de um misto de fatores: “as alterações climáticas têm as costas largas e, efetivamente a subida do nível médio do mar provoca erosão, mas por outro lado o problema também resulta da falta de sedimentos, da retirada de areia que se fez no passado e, muito importante, da má ocupação do solo”.

Já sobre as respostas adotadas para a Caparica, o também investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, discorda de quem fala em poucos resultados e defende que “se não tivesse havido enchimentos de praia, restauros de mar, esporões e obra aderentes, ou seja, o paredão, certamente que já teríamos o mar na base da arriba, que já foi viva, mas agora é fóssil porque o mar não chega lá”.

Ainda assim, o especialista sublinha que a erosão é um problema comum a boa parte da costa portuguesa, por isso lembra que o país deve estar ciente do que está para chegar: “daqui a 50 anos, o litoral e as nossas cidades costeiras vão estar, inevitavelmente, diferentes”. Na realidade, algumas até já estão, ou não tivesse a faixa costeira nacional perdido 1320 hectares de terra em pouco mais de 60 anos (desde 1958 até 2021), de acordo com estimativas da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Quando a areia dá lugar à pedra

Há muito que Ovar é um dos concelhos do país em maior risco de erosão costeira. Com cerca de 15 quilómetros de litoral, já esteve entre as áreas mais vulneráveis da Europa, numa altura em que chegou a ter quase 10 metros de recuo por ano. Lançado o alerta, foram realizadas várias intervenções, mas o território continua ameaçado. Que o digam as praias de Esmoriz, Cortegaça ou Furadouro, por exemplo, cada vez mais uma nesga de areia que deixa as frentes urbanas à mercê da agitação do mar e de fenómenos extremos.

Quem conhece bem o problema é Carlos Sousa, investigador da Universidade de Aveiro e coordenador do projeto INCCA – Adaptação Integrada às Alterações Climáticas para Comunidades Resilientes. Nascido e criado no concelho, foi assistindo ao “encolher” das praias da região e em particular da Cortegaça, onde vive desde criança. Desse tempo lembra-se bem dos jogos de futebol no areal, algo que passou a ser impossível, até porque “agora é quase um pequeno cabo artificial, mantido por uma obra de pedra para manter alguma proteção”.

O areal desapareceu em Cortegaça e agora é a pedra que protege agora a freguesia

Também ele justifica a erosão da costa noroeste com a falta de sedimentos, desde logo por causa da construção de barragens no Douro, associada a uma série de condições desfavoráveis, como as “ondas energéticas” do Atlântico ou o terreno arenoso, aberto e de cotas baixas que existe na região.

Para o investigador, a estratégia de intervenção seguida pela APA tem estado correta, “nomeadamente as obras de proteção costeira, as alimentações artificiais de areia e o reforço do cordão dunar”, e acrescenta que “eventualmente, também faz sentido equacionar a hipótese da relocalização de populações”. Como já aconteceu, de resto, com uma comunidade de pescadores de Ovar, realojadas pelo município. Mas essa é uma solução mais difícil, que exige diálogo entre o poder central, as autarquias e, claro, as populações, que não podem deixar de ser envolvidas, adverte.

Os efeitos das alterações climáticas

Depois de décadas a tentar compreender e mitigar a erosão costeira, o país enfrenta agora outro desafio, as alterações climáticas, também elas com impacto certo nos 950 quilómetros de litoral que vão de Caminha a Vila Real de Santo António. Isto porque estão diretamente relacionadas com a subida do nível médio do mar, o que acaba por acrescentar mais um grau de complexidade às estratégias de proteção da orla costeira.

Além de ajudar a acelerar a erosão, este fenómeno favorece as inundações ao longo do litoral, aumentando a vulnerabilidade das frentes urbanas costeiras, onde habita uma porção considerável da população nacional. Estima-se que 14% dos habitantes do país vive numa faixa de dois quilómetros ao longo da linha de praia-mar.

A comunidade científica não para de lançar alertas, sustentados por cenários probabilísticos fundamentados. Uma equipa da Faculdade Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), liderada pelo investigador Carlos Antunes, estimou que a área inundável no país possa chegar aos 903 quilómetros quadrados (km2) até 2050 e aos 1146 km2 até ao final do século. Como consequência, até 82 mil edifícios e até 225 mil pessoas poderão ser afetados direta ou indiretamente, mostra-nos o projeto SMN, que desenvolveu um visualizador de cenários de subida do nível médio do mar em Portugal Continental.

O professor do Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia da FCUL sublinha que estes números dizem respeito a uma hipótese extrema de maré cheia, mas acrescenta que até outros cenários menos gravosos levantam preocupação: “todos eles nos indicam que há, de facto, uma elevada exposição urbana, nomeadamente em zonas de águas interiores, como rias e estuários, que por terem uma quota topográfica muito baixa, vão sofrer um grande impacto”. Setúbal, Faro e Aveiro são as zonas de maior risco, mas Lisboa também não vai escapar à subida das águas, nomeadamente nas zonas da Praça do Comércio e Cais do Sodré.

O especialista admite que as marés mais altas cresçam 40 centímetros em 20 anos, “num ritmo difícil de gerir as cidades” e deixa um conselho ao poder local: “Os municípios têm de começar a abandonar as zonas marginais, nomeadamente nas rias e nos estuários, porque são espaços que vão ser futuramente ocupados pelo mar, com elevado grau de certeza”.

Como respondem os municípios

Sabendo-se que são as autoridades nacionais a gerir o combate à erosão costeira e aos efeitos das alterações climáticas, que papel sobra aos municípios? Trabalho para fazer não falta, garantem os especialistas. José Carlos Ferreira lembra que “quem na verdade tem a responsabilidade de ordenamento do território no país são os Planos Diretores Municipais (PDM), logo os municípios também decidem o uso do solo, mesmo que neste caso ele seja determinado pelos Programas da Orla Costeira (POC)”, a cargo da Agência Portuguesa do Ambiente. Isto sem esquecer que os POC abrangem os concelhos do litoral, mas muitas populações afetadas vivem em zonas ribeirinhas e estuarinas, onde quem age são as autarquias.

A esta função junta-se ainda a colaboração com a APA (e por vezes pressão política), bem como um trabalho conjunto com a comunidade científica. Isso aconteceu, por exemplo, em Ovar, com o projeto INCCA – Adaptação Integrada às Alterações Climáticas para Comunidades Resilientes, em que a Universidade de Aveiro reuniu diversos intervenientes, como técnicos da câmara municipal e das juntas de freguesia, mas também a APA e membros da comunidade local, por exemplo pescadores, surfistas, bombeiros e ambientalistas. “Isso acabou por ser muito importante porque as pessoas perceberam que nem todos têm a mesma perspetiva sobre o que é melhor para o litoral, mas acabaram por aceitar as soluções de consentimento e contribuir para a ação”, diz o coordenador Carlos Coelho.

Outro projeto, o SCORE -, juntou o município de Oeiras e o Instituto Superior Técnico a mais nove cidades costeiras da Europa com o objetivo de melhorar a resposta aos impactos das alterações costeiras. Este deu origem a um laboratório vivo, cuja função é recolher dados e propor estratégias, além da criação de uma digital twin, simulação por computador dos efeitos climáticos sobre um modelo digital da cidade.

Também o Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia da FCUL tem colaborado com alguns municípios, como Loulé, ao participar no estudo sobre o futuro mercado municipal de Quarteira, ou Almada, para quem propôs várias medidas de adaptação na Costa de Caparica e em Cacilhas.

Para estes e outros municípios, o investigador Carlos Antunes costuma deixar um conselho relacionado com o conceito de smart cities: “Mais importante que dotar as cidades de uma certa inteligência tecnológica e digital, é preparar o território através de uma smart governance e de um smart planning que efetive o reordenamento do território ribeirinho e costeiro com vista a minimização dos impactos negativos”. Porque o tempo urge e o mar não pára de subir.


Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 43 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2024