PROJEÇÃO GLOBAL, CONFLITOS DE FUNÇÃO E ARTEFACTOS NARRATIVOS NA DIVULGAÇÃO DO NOVO PODER URBANO
I. A Cidade dos mil nomes
Smart Cities, Start-up Cities, Lab Cities, Slow Cities, Green Cities, Sharing Cities, Cidades Resilientes, Inovadoras, Humanas, Circulares e até Afetuosas. O desfile de epítetos para a condição urbana não conhece limites nos nossos dias.
Tal como num Baile de Máscaras, as cidades, procurando projetar o melhor de si mesmas, escondem-se atrás de brilhantes artefactos narrativos, rótulos memoráveis e doses generosas de storytelling contemporâneo, reivindicando a sua quota de notoriedade, poder e influência numa fase da História universal, na qual se antecipa a chegada de um novo statu quo para a Governação mundial.
Se levarmos a sério o emergente coro de peritos que o afirmam (e outros que não o são, mas que o querem parecer), este novo tempo – reflexo de uma novíssima ordem mundial que se consolida dia após dia – caracteriza-se pela crescente abertura de agendas, pelo surgimento de novas lideranças políticas às custas da deterioração do poder de outros (especialmente os de natureza urbana face ao escasso poder dos Estados) e pela identificação de desafios coletivos para a espécie humana que se manifestam com especial intensidade no “grande teatro das cidades”.
Perante esta janela de oportunidade e no contexto atual de comercialização “total e por entregas” dos ativos e na divulgação das cidades, muitos reclamam um papel principal para uma nova geração de líderes locais, ungidos pelo dom da globalidade, da audácia e do pragmatismo.

Vencedores, estrelas e estrelados; esta é a sua história.
II. Quem sou?: Cidades, divulgações globais e o novo choque de identidades
Se analisarmos o estado atual da concorrência entre territórios, as suas marcas e as suas divulgações, parece chegado o momento de nos preocuparmos com os danos irreparáveis que algumas estratégias de comunicação e marketing e a aposta numa abordagem narrativa híper-entusiasta e crescentemente estandardizada estão a provocar a inúmeras cidades à nossa volta, que, num contexto global de mudança e de questionamento permanente da sua própria identidade, navegam sem rumo num agitado mar de identidades, rótulos e divulgações superficiais.
Falamos, em todo o caso, do uso indiscriminado e acrítico de conceitos como Smart Cities, Sharing Cities, Circular Cities, Open Cities, Lab Cities e um amplo (e aberto) etecetera de polissémicas categorias do urbano que acabaram por desnortear os nossos governantes, que, à custa de procurarem o seu espaço na cintilante galáxia de “Something –Cities”, acabam prostrados no divã do psiquiatra, incapazes de entenderem e de desempenharem um papel que não lhes diz respeito e para o qual não foram preparados.
Ali, onde acabam os clarões do Powerpoint do assessor de comunicação e a sedutora gíria do consultor de inovação, começa a dura realidade do desempenho como cidade/presidente Empreendedor, Inteligente ou Circular, exigindo a tomada de decisões estratégicas e de investimento, a criação de consensos e apoio dos cidadãos e a sujeição ao escrutínio público, implacável com os conflitos de funções e com os erros nos orçamentos dos municípios.
Este choque de identidades, que obriga as cidades a um exercício permanente de reflexão e comparação com as suas concorrentes sobre o que são e o que querem ser, leva-as, em muitas ocasiões, a um estado de uma inquietante impostura e, por vezes, também a uma reação de personalidade excessiva, cujos primeiros sintomas costumam manifestar-se na edificação indiscriminada de ícones que as tornem memoráveis. Pensemos, por exemplo, nas dispendiosas e pouco funcionais Cidade das Artes de Santiago Calatrava em Valência ou na Cidade da Cultura de Eisenman em Santiago de Compostela, discutíveis testemunhos de uma mistura de megalomania, delírio e arrogante vocação para notoriedade mundial baseada na especialização icónica (nos nichos da inovação/cultura) de duas cidades médias espanholas, incapazes de promover, por conseguinte, uma divulgação autêntica de si mesmas.
De igual modo, na raiz deste conflito global de personalidade que muitas das nossas cidades sofrem de forma crescente e que se manifesta na adoção acrítica de rótulos semânticos que as definam e particularizem, encontra-se também um grupo de razões que remetem para certos padrões de inércia e mimetismo (deixar-se levar), para a pura rivalidade (tantos municípios que todos conhecemos que encontraram na comparação superlativa com os seus vizinhos a forma de identidade que os define por contraste) e, last, but not least, a indispensável necessidade que certos presidentes de municípios e equipas de governo sentem de revigorar mandatos e carreiras políticas flácidas e fragilizadas com a compra indiscriminada de esteróides narrativos que os fazem parecer muito mais fortes, modernos e dinâmicos do que aquilo que na realidade são. Deixo à imaginação e memória do leitor a tarefa de identificar exemplos recentes de divulgações que não passariam num controlo comum anti-doping.
Obviamente, nem todos os esforços de uma cidade para exercer uma influência e relevância globais são vãos e controversos. A história recente é generosa em exemplos edificantes de construção honesta de uma reputação e narrativa urbana globais que projetam os seus efeitos positivos para além da vigência temporal da estratégia e do plano de branding territorial.
Em algumas ocasiões, a vocação universal de um território é sustentada pela genuína crença nas suas capacidades para competir na liga das grandes cidades mundiais, assente na base de um forte consenso local, numa liderança aberta e partilhada e na reflexão sossegada e crítica sobre o modelo e o papel que o futuro reserva à cidade, em coerência com a sua identidade e trajetória.
A ninguém deverá surpreender, por exemplo, que Copenhaga e Amsterdão, históricos exemplos da hierarquização inteligente dos espaços urbanos a favor de uma relação harmónica entre veículos e ciclistas, retenham, em ex aequo, o cetro de capitais mundiais da mobilidade sustentável (dando, por exemplo, o seus nomes a inventos e produtos relacionados com a bicicleta, como a interessante Copenhagen Wheel desenvolvida pelo MIT de Massachusetts, contribuindo para reforçar a divulgação, a competitividade e a reputação dos seus ecossistemas urbanos).
Do mesmo modo, é quase unânime o aplauso coletivo para a excelente estratégia coletiva de transformação reputacional da cidade de Medellín, que deixou de ressoar na mente de todos como um lugar obscuro universalmente conhecido pela sua vinculação à criminalidade e aos cartéis mais sangrentos de droga para se tornar num modelo exemplar e reconhecido de cidade fértil para a inovação e desenvolvimento. Baseada numa forte liderança política próxima do cidadão, na indispensável dotação orçamental e no design e na execução de interessantes políticas que incidiram sobre a própria trama urbana da cidade e, também, no exercício de uma inteligentíssima Diplomacia Urbana que levou os seus líderes e representantes a defender, com argumentos e astúcia, o presente e o futuro da Medellín inovadora em incontáveis fóruns mundiais.
Em circunstâncias diferentes, porventura mais conjunturais, não foi por acaso que Sadiq Khan, que sucedeu a Boris Johnson como presidente da câmara de Londres, – até hoje uma das capitais mundiais com maior projeção global – decidiu, depois de conhecer o resultado do referendo post-Brexit, pôr fim à emergente retórica protecionista e provinciana, apressando-se a concertar um encontro com a mediática presidente da câmara de Paris, Anne Hidalgo, para reivindicar a vocação universal e aberta da cidade (e a sua discutível posição como centro financeiro mundial).
III. Inovação, Inteligência, Resiliência: os novos minerais narrativos para as Cidades Globais
O impulso generalizado das novas divulgações para as cidades sob formatos estandardizados (agora são intensamente inovadoras, inteligentes, funcionam como Labs, são empreendedoras, etc.) e a ausência de uma interrogação preliminar sobre a própria identidade do território estão a transformar muitas das cidades em engenhos narrativos vazios ou em zombies errantes. Estas cidades projetam uma imagem que as torna irreconhecíveis para os seus cidadãos, visitantes e governantes e, tal como no conto “O rei vai nu” de Hans Christian Andersen, ninguém se atreve a denunciar a verdade (esperando, talvez, que a inocente imprudência de uma criança acabe por rebentar com a bolha narrativa).
À inquestionável tentação coletiva de brilhar no firmamento das capitais globais, soma-se o desejo de posteridade de presidentes e vereadores, que é inversamente proporcional à duração dos seus mandatos políticos. Por este motivo, dominadas por um estado de delírio coletivo e recorrendo abertamente ao logro, ao artefacto kitsch e à cópia indiscriminada, inúmeras cidades abraçaram, sem grandes hesitações, uma estratégia de reinvenção total da sua forma de estar (e parecer) no mundo. Para o efeito, exploram novas divulgações e minerais narrativos para sua projeção global, o que as torna vulneráveis perante o escrutínio global e os ritmos de um mundo que se move ao ritmo de agendas digitais inconstantes que mudam a cada cinco minutos .
Desde o delirante e viciante tópico das Ghost Towns chinesas (retratado brilhantemente por Bianca Bosker, em “Original Copies: Architectural mimicry in contemporary China”, paradigma da duplitectura (essa cultura da descarada cópia na edificação e no urbanismo chinês que nos leva a encontrar cópias à escala de Paris no Extremo Oriente) até à enésima proclamação de uma cidade como a “Capital Mundial da Inovação”, a “Silicon-something” ou o “Território Universal do Empreendimento”, a divulgação do crescente logro urbano revela-se sempre apaixonante.
Se observarmos em nosso redor, vamos conseguir detetar uma crescente legião de capitais que, partindo de estratégias e reflexões frequentemente sensatas, abraçaram a arte do storytelling urbano e a nova diplomacia de cidade, procurando destacar-se em territórios ideais para a inovação (Paris, Buenos Aires, Lisboa), o empreendedorismo (Amesterdão), a inteligência urbana (Barcelona), a nova economia colaborativa (Seul) ou a abordagem low carbon (Copenhaga), por citar algumas. A aposta na narrativa fácil coloca-nos perante os riscos da comercialização do produto e da fadiga argumental, pois poderá parecer que todos oferecem o mesmo produto ao mesmo tempo.
IV. Cidades que jogam ao Risco no tabuleiro da nova Governação Global
O processo de universalização urbana foi impulsionado nos últimos tempos pela crescente atenção mundial no que toca ao papel das cidades na proposta e execução de soluções face aos desafios deste século XXI (sejam estes populacionais, ambientais, económicos etc., mas todos de natureza eminentemente urbana) e pelo reconhecimento universal da capacidade dos governos municipais utilizarem o Soft-Power para implementarem políticas ágeis face aos referidos desafios, sem a morosidade, solenidade e o inevitável esforço transacional (negociação com múltiplos atores e esferas de interesse) que costumamos atribuir à ação dos Estados-nação.
Agora que o Poder já não é o que era, ressoa com intensidade a chamada global aos líderes urbanos para que exerçam uma certa quota de influência política nos grandes centros de decisão mundial, especialmente quando o chamamento provém de Hollywood e do seu star system (todos nos lembramos do papel de Leonardo di Caprio na COP21 de Paris).
Como os bardos e trovadores que cantavam as façanhas e o futuro de reinos, monarcas e princesas para deleite das ociosas cortes medievais europeias, nos nossos dias, assistimos entusiasmados à poética evocação da chegada de um “novo século das cidades” e ao aparecimento de uma legião de defensores da concorrência e das virtudes das cidades (movidos pelas mais diversas razões). Esta realidade resultou em inúmeras arenas, espaços e plataformas de encontro, interação e intercâmbio de conhecimento e boas práticas entre líderes, criadores e executores de políticas públicas que incidem sobre a realidade do fenómeno urbano, além do caudal de eventos, publicações e prémios que são um bom indicador do êxito da evocação do urbano.
Quem sabe se a pressão total por abraçar indiscriminadamente a bandeira desta nova liderança aberta, moderna, colaboradora e decididamente global abrirá novas brechas entre o que as nossas cidades (e mandatários) são e o que queriam ser. O tempo o dirá.