Países, cidades, empresas e cidadãos de todo o mundo estão a ser chamados a participar na já conhecida descarbonização da economia. O novo paradigma energético e social está a ser justificado com a necessidade de reduzir as emissões de carbono e combater as alterações climáticas. Uma preocupação que, sem dúvida, nos aflige a todos.
Todos nós devemos consciencializar-nos para uma alteração de hábitos apostando na informação, na ciência, na educação e na sensibilização. Mas, ao mesmo tempo, necessitamos de estar alertas, pois, uma grande fatia desta transição energética (senão, a maior) será da responsabilidade de todo um sistema económico “neoliberal” que se tem vindo a travestir de ecologista ao longo da última década.
A União Europeia (UE), “empenhada em desenvolver uma política climática ambiciosa, pretende tornar-se no primeiro continente a eliminar até 2050 tantas emissões de CO2 quantas aquelas que produz”. Este objetivo poderá tornar-se juridicamente vinculativo se o Parlamento e o Conselho Europeus adotarem a nova Lei do Clima.
O objetivo provisório de redução das emissões da UE para 2030 foi também atualizado, “passando da proposta atual de redução de 40% para uma redução mais ambiciosa”.
O Parlamento Europeu votou, a 7 de outubro, a favor da neutralidade climática até 2050 e de “um objetivo de redução das emissões em 60% até 2030 em comparação com os níveis de 1990, ou seja, uma meta mais ambiciosa do que a proposta da Comissão relativa a uma redução de 50-55%”. Estas metas só serão conseguidas através do já conhecido Pacto Ecológico, que acabou por ser integrado na “bazuca” de apoios para fazer face à pandemia.
O surgimento do novo coronavírus contribuiu para “acelerar” o que já estava em andamento. Foi também em plena pandemia e estado de emergência que fomos surpreendidos com as manchetes e primeiras páginas referentes a uma “matança cinegética” de 540 animais (javalis, veados e corsos) que foram abatidos em meados de dezembro por um grupo de 16 caçadores espanhóis numa herdade na Azambuja. A justificação para esta sangrenta montaria pode estar relacionada com os planos para criar na herdade da Torre Bela uma central fotovoltaica, cuja existência é incompatível com animais de grande porte em liberdade, além de implicar a desflorestação da herdade para dar lugar aos painéis. Um projeto que se encontrava em consulta pública e que foi, entretanto, revogado pelo Governo português.
Noutras latitudes europeias, impactos relacionados com a exploração de biomassa estão igualmente a ser sinalizados pelas associações e organizações ecologistas e ambientalistas. Desde que a UE anunciou a intenção de duplicar o uso de energias alternativas em 2030, diversos cientistas lançaram avisos ao Parlamento Europeu sobre autênticos “buracos” na legislação referente aos critérios de sustentabilidade. Zonas cinzentas na lei que podem mesmo contribuir para acelerar a crise climática nomeadamente através da devastação de milhares de hectares de floresta adulta.
O multimilionário lobby da biomassa é apenas um desses exemplos. Em praticamente todos os países europeus se registou um acréscimo na exploração florestal para energia. A biomassa, cuja fonte principal reside nas florestas, representa, neste momento, 60% da energia renovável na UE, superando a solar e eólica juntas.
A desflorestação para exploração de biomassa em países como Estónia, mas também noutras zonas do Báltico, poderá estar na origem de diversos problemas sinalizados pelos ambientalistas nomeadamente em zonas da Rede Natura, com o declínio ou desaparecimento de espécies autóctones de aves.
Este drama, bem como as ambiguidades na legislação, estão já identificados, mas ainda poucos passos foram dados no sentido de corrigir a trajetória do desastre, muito por culpa do peso económico entretanto alcançado por esta indústria. Ao mesmo tempo, dão-se passos em direção ao hidrogénio e às restantes opções (solar, eólica, etc.) e o Pacto Ecológico será o mecanismo preferencial para financiar muitos destes projetos.
É por isso a altura certa para garantir que não se repetem casos idênticos ao da biomassa, apesar de já detetarmos alguns. O caso da Herdade da Torre Bela, com a desmatação e eliminação da fauna alegadamente para prosseguir um projeto de instalação fotovoltaica, deveria ser um aviso sério à navegação e não se espumar pelas primeiras páginas dedicadas ao impacto da matança enquanto um evento isolado e macabro.
Entretanto, exemplos como o Lusitanica, nascidos no voluntariado e associativismo, propõe-se a recuperar várias parcelas de terrenos em Estarreja. O projeto “pretende valorizar a biodiversidade dos ecossistemas lusitânicos, bem como o património cultural, envolvendo ativamente a comunidade na melhoria ecológica daqueles espaços de forma a construir paisagens e modelos de gestão florestal mais sustentáveis”. Tenhamos esperança de que os nossos líderes saibam interpretar a realidade e não embarcar nos contos de fadas ou em histórias do Capuchinho Vermelho.
“A biomassa, cuja fonte principal reside nas florestas, representa, neste momento, 60% da energia renovável na UE, superando a solar e eólica juntas.”
Outras estórias de encantar
O Médio Oriente tem sido pródigo na construção de novas realidades urbanas a partir do zero. Dubai e o Qatar são os exemplos mais conhecidos, mas o mais sonante por estes dias tem sido Neom, a cidade-estado projetada pelo Reino da Arábia Saudita.
Neom é um sonho fantástico do príncipe-herdeiro que tem agremiado alguns dos mais brilhantes especialistas, urbanistas, arquitetos e consultores mundiais. Recentemente, mais detalhes foram revelados, nomeadamente em relação ao custo do projeto e a sua megalomania. No início do ano, o projeto foi reforçado como “A Linha” (The Line). São 170 quilómetros de uma megacidade composta por módulos, sem carros e conectando a Arábia Saudita, a Jordânia e o Egipto. Neom será inteiramente alimentada por energias renováveis, marcando, desde já, uma mudança no paradigma de um dos maiores produtores de petróleo mundiais.
Além disso, é anunciada pelo próprio princípe uma nova matriz para uma vida sustentável com robots, inteligência artificial, transportes sem condutores, hortas verticais, etc. Fica assim clara a escolha do nome, uma combinação da palavra grega “novo” e o termo árabe para “futuro”.
Sem tantos holofotes mediáticos, mas igualmente ambicioso, encontramos um projeto que pretende reflorestar os desertos. Engenheiros, arquitetos, biólogos, ambientalistas e empresários juntos num conceito baseado numa simples, mas grande ideia: fazer uso da tecnologia já existente e outra em desenvolvimento, juntar o que temos em abundância (água salgada, sol e deserto) e produzir comida, água e energia de forma sustentável. O Sahara Forest Project vai explorar um sem número de tecnologias e métodos já existentes, aproveitar sinergias e reutilizar desperdícios. O primeiro piloto está já a ser desenvolvido no deserto junto à cidade de Aqaba, na Jordânia.
Estes e outros projetos, além de ambiciosos, são exemplares e inspiradores. Mesmo com todas as dificuldades de execução e concretização, todos nascem dos sonhos, mas também da necessidade. Para os próximos anos, exige-se aos cidadãos, empresas e governos que não percam tempo com ideais de contos de fada nem panaceias. Se há mesmo uma emergência climática, este é o tempo certo para se edificar o futuro com base na ética e na inteligência.
As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.