Fundadora e líder do maior movimento ambientalista ucraniano, o Let’s Do It Ukraine, Julia Markhel falou com a Smart Cities sobre ativismo em tempos de guerra, contou histórias de esperança e de terror, e alertou para o ecocídio que está a acontecer na Ucrânia. Do nosso país, guarda na memória aquela noite invulgar em que não foi acordada por explosões.

Como consegue gerir uma organização ambiental e coordenar diversas iniciativas num país em guerra, alvo de constantes ataques?

Depois do início da invasão em grande escala, a 24 de fevereiro de 2022, decidimos suspender as nossas iniciativas ambientais e concentrarmo-nos em ajudar os ucranianos, prestando ajuda humanitária, evacuando pessoas e organizando a logística. Era nisso que éramos realmente muito mais úteis. Após vários meses de guerra, os militares telefonaram-me e perguntaram: “para onde podemos enviar os resíduos que recolhemos e separámos para reciclagem?”. Foi então que o meu mundo ficou de pernas para o ar… apercebi-me que a ecologia é mais importante do que nunca. Por isso, gradualmente regressámos aos nossos projetos ambientais, a começar pelo Dia Mundial da Limpeza, em setembro de 2022. A partir desse momento, cada vez mais pessoas juntaram-se às nossas eco-iniciativas.

Agora, a segurança é prioritária em todas. A nossa organização reúne milhares de voluntários em todo o país e até no estrangeiro, por isso tenho de cuidar da segurança de cada coordenador, de cada voluntário e de cada participante.

Em algum momento equacionou desistir ou pensou que era impossível trabalhar nas atuais condições?

Provavelmente não. Por muito difícil que seja trabalhar nestas condições, sinto-me motivada pelas pessoas e sei que não posso desistir. É necessário encontrar força, energia e oportunidades para seguir em frente. Por exemplo, em dezembro de 2022, iniciámos um projeto de três anos para crianças em idade escolar, o Mishechok, em que os miúdos costuravam sacos a partir de artigos usados, com o objetivo de reduzir a utilização de sacos de plástico. Mas foi nessa altura que começaram os ataques diários e massivos com rockets contra as instalações de energia e o país mergulhou num apagão total.

Não tínhamos luz, eletricidade, aquecimento – isto durante um inverno frio! -, e alguns até nem água tinham. Pensámos em suspender o projeto, mas aconteceu um milagre! As crianças começaram a enviar-nos fotografias de toda a Ucrânia e constatámos que coseram mais de 55 mil sacos. Algumas pessoas colocaram presentes nesses sacos e entregaram-nos depois aos soldados na linha da frente.

Como poderia pensar em parar, se nem mesmo as crianças o fazem e continuam a realizar várias atividades, participar em iniciativas e a desenvolver-se? Depois de histórias como esta, não posso dar-me ao luxo de desistir. 

Quais são os maiores desafios e dificuldades que enfrentam na vossa missão?

Após a explosão da central hidroelétrica de Kakhovskaya, a 6 de junho de 2023, a minha equipa e eu fomos numa missão humanitária, que acabou por se transformar também numa missão ecológica. Garantiram-nos que nada de terrível aconteceria ao ambiente, mas quando vi que árvores centenárias ficaram imediatamente negras depois de serem inundadas, percebi que algo estava errado. Fomos, então, analisar amostras de água e de sedimentos do fundo, algumas recolhidas em locais sob ocupação, por isso as dificuldades eram muitas. Desde logo porque recolhemos as amostras sob um calor extremo, cerca de 35 graus, e eu vestia um colete à prova de bala que pesava mais de 30 quilos, e o pior era a posição dos militares russos, que se avistavam a olho nu e que também nos podiam ver. Mas, naquele momento, e por alguma razão, não tive noção do medo que sentia. Para mim, era mais importante cuidar do ambiente e dos sistemas hídricos após este terrível ataque terrorista.

Há muitas diferenças entre os resíduos gerados num país em guerra e nos outros países?

Temos resíduos militares e em grande quantidade. Anteriormente, os resíduos mais comuns no nosso país eram o plástico, os resíduos orgânicos e o lixo de grandes dimensões que resultava de reparações. Agora, por exemplo, quando um rocket atinge uma casa, esta desmorona-se em poucos segundos e transforma-se numa enorme quantidade de resíduos. Algumas autoridades locais levam os restos para zonas especiais, processam-nos, trituram-nos e utilizam-nos para a construção de estradas ou passagens temporárias. Ou seja, desta forma, reduzem a acumulação de resíduos. Nas florestas e nos campos, há muitos resíduos dos militares, como ligaduras, roupas, restos de medicamentos e outras coisas, mas não os podemos remover, porque são zonas minadas perigosas.

Os
rockets e os projéteis são outro tipo de resíduos perigosos que, infelizmente, já se tornaram comuns. Afinal, quando um rocket é abatido, em primeiro lugar desfaz-se no ar – o que já prejudica o ambiente – e, depois, os seus fragmentos caem no chão ou, por vezes, sobre as casas e matam civis. Como tal, os detritos dos rockets também devem ser removidos e eliminados de forma adequada, mas não temos acesso a informações sobre como isso acontece. 

Até que ponto a incerteza e as dificuldades associadas aos conflitos fazem com que as pessoas desperdicem menos e reutilizem mais?

Com o início da guerra, as pessoas começaram a tratar os recursos de forma mais responsável e passaram a comprar menos coisas desnecessárias. Todos nós sabemos que a nossa vida cabe numa mala e, como se viu, as pessoas não precisam de muito para ter uma vida normal. Todos os cidadãos de todos os países precisam compreender que a sobreprodução é um importante problema global da Humanidade e que, se todos consumirmos menos recursos, isso pode salvar o mundo e equilibrar os nossos ecossistemas.

Após vários meses de guerra, os militares telefonaram-me e perguntaram: “para onde podemos enviar os resíduos que recolhemos e separámos para reciclagem?”. Foi então que o meu mundo ficou de pernas para o ar

Este ano, voltam a organizar o Dia Mundial da Limpeza na Ucrânia, tal como aconteceu nos dois anos anteriores, em que mobilizaram centenas de milhares de pessoas, mesmo enquanto decorriam ataques?

Quando começámos a preparar o Dia Mundial da Limpeza na Ucrânia em 2022 percebemos que as coisas nunca mais seriam como antes, quando podíamos ir aos parques, à floresta, onde quiséssemos, e limpar o lixo. Agora, cada uma das nossas limpezas tem de ser acordada com os municípios, a área tem de ser verificada por causa da eventual presença de minas e outros engenhos explosivos, além de não podermos fazer limpezas mais longe do que é permitido e ter de haver sempre um abrigo antibomba para onde todos os participantes possam descer durante um alerta aéreo.

Mas não desistimos, cooperámos com os militares, recebemos instruções sobre como evitar uma mina ou um engenho explosivo improvisado, que muitas vezes podem estar disfarçados de objetos domésticos comuns, como um brinquedo ou uma bola. Formámos ativamente os nossos coordenadores regionais, realizámos ações de formação, envolvemos vários especialistas – médicos, militares – para o fazermos da forma mais segura possível.

Se em 2022 participaram mais de 119 mil pessoas, em 2023 o número subiu para 282 874, que recolheram 2421 toneladas de lixo, das quais 140 toneladas foram para reciclagem. O que mais nos impressionou foi o facto de até as pessoas das zonas da linha da frente terem participado nas limpezas, embora lhes tenhamos pedido que fizessem limpezas digitais em casa. Por exemplo, houve um grande local de limpeza na cidade de Nikopol, que está constantemente sob fogo de artilharia, a 20 km de distância fica o território já ocupado.

Foi das primeiras ativistas a alertar para o perigo de ecocídio que a guerra na Ucrânia está a causar. Considera que a comunidade internacional está suficientemente sensibilizada para o problema?

A nossa organização começou a falar sobre o assunto alguns meses após o início da guerra e começámos a utilizar ativamente a palavra ecocídio, porque o verdadeiro terror aconteceu no nosso meio ambiente. Além disso, o equipamento destruído transformou-se em mais de 750 mil toneladas de resíduos, as emissões de gases com efeito de estufa resultantes da guerra na Ucrânia já ultrapassam as da Áustria e, há um ano, falávamos de 97 milhões de toneladas de emissões de CO2, quando hoje já são 150 milhões de toneladas.

Depois houve a destruição da barragem da central hidroelétrica de Kakhovskaya e muitas pessoas começaram a falar de ecocídio. Afinal de contas, era realmente impossível manter o silêncio sobre a escala do que aconteceu. Por exemplo, a destruição da barragem levou à inundação e destruição de mais de 63 mil hectares de florestas ucranianas. Isto é o dobro da área de toda a floresta em Portugal.

A comunidade internacional interessou-se muito por esta catástrofe e muitos meios de comunicação social estrangeiros questionaram-me sobre as consequências e a forma como os seus países poderiam ajudar. No entanto, ainda não temos acesso a todas as áreas afetadas, ainda não temos uma imagem completa do que aconteceu aos nossos ecossistemas, ainda não temos um projeto com medidas concretas para recuperar o ambiente. E na Ucrânia, poucas pessoas preocupam-se verdadeiramente com o que aconteceu.

É preciso continuar os estudos ambientais para compreender o que realmente aconteceu. De seguida, reunir os maiores especialistas, ecologistas e outras pessoas que ajudaram a ultrapassar as consequências de grandes catástrofes provocadas pelo homem em vários países e, em conjunto, criar-se um plano de recuperação.

No final do ano passado esteve em Portugal, por ocasião do Encontro Nacional de Limpeza Urbana, que se realizou em Cascais. Como foi sair de um ambiente de guerra e divulgar a sua mensagem no nosso país?

Estou muito grata aos organizadores pelo convite e pela oportunidade de me dirigir aos portugueses e partilhar a experiência ucraniana em matéria de proteção ambiental. E também estou grata por ter conseguido dormir um pouco e recuperar. Foi muito invulgar dormir toda a noite e não ser acordada por explosões, embora, por vezes, o som do alarme tivesse soado no meu telemóvel, porque temos uma aplicação especial que nos avisa. E, depois, também nos começamos a preocupar com a família e equipa, porque estamos muito longe deles. Espero sinceramente ter sido capaz de inspirar cada um dos participantes do Encontro Nacional de Limpeza Urbana.

Se nós, ucranianos, fazemos ações ambientais, ao som de sirenes de alerta, em abrigos antibomba e sem luz, também os portugueses o conseguirão. 

O céu é o limite

Julia Markhel tinha apenas 25 anos quando fundou a Let’s Do It Ukraine, que viria a tornar-se na maior organização ambientalista ucraniana, ao juntar mais de 3,5 milhões de pessoas e conseguindo mobilizar centenas de milhares em ações realizadas mesmo durante a guerra. Agora, aos 35 anos, diz-se mais empenhada do que nunca, incapaz de desistir desta missão e, ao mesmo tempo, com muitos sonhos. Um deles é “que a paz chegue finalmente à Ucrânia, para poder voltar a organizar ações em grande escala que unam as pessoas”. Outro é ser astronauta e voar no espaço, um objetivo muito antigo, mas em que ainda acredita.
Até lá, esta mulher de causas, desprendida das coisas e que gosta de viver sem desperdício, vai continuar a fazer ativismo ambiental e humanitário, tanto na Ucrânia, como no resto do Mundo, por onde tem espalhado a sua mensagem. Portugal foi o 54.º país que visitou e dele gosta de recordar o “céu sempre azul” e as noites bem dormidas.


Este artigo foi originalmente publicado na edição n.º 42 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2024.