Edward Lorenz, pai da Teoria do Caos, hoje uma das teorias mais importantes da física e presente na essência de quase tudo o que nos cerca, defendia que pequenos acontecimentos num ponto do planeta podem originar grandes mudanças no seu ponto oposto, o que designou de “efeito borboleta”.

A pandemia de Covid-19 é, talvez, a expressão mais visível da aplicação daquela teoria a nível global. De repente, a venda e o consumo de mais um animal selvagem num recôndito mercado tradicional de uma cidade chinesa veio alterar, de forma drástica e irreversível, o anterior paradigma de funcionamento de todo o planeta, e, especificamente, a evolução natural das suas cidades, nomeadamente das grandes cidades.

Presumo que já ninguém tenha grandes dúvidas sobre isso. A pandemia vai mesmo obrigar a repensar as grandes cidades. Em poucos meses, a globalidade dos planos estratégicos, diretores e de intervenção setorial urbana passaram a projetar uma realidade futura em que hoje poucos acreditam. Até final de 2019, com a economia em pleno crescimento, o preço da habitação, os problemas da mobilidade, os desequilíbrios sociais, os desafios do crescimento do turismo e a ação ambiental centravam as principais preocupações urbanas e os discursos políticos de grandes cidades. Muitos números, previsões e a avaliação percecionada sobre o sentimento dos cidadãos, nomeadamente expresso nas suas reações nas redes sociais, eram os fundamentos para o anúncio público de medidas políticas que visavam condicionar e corrigir os excessos e desequilíbrios dos novos tempos. Lisboa e Porto eram fortes exemplos dessa realidade.

Hoje, meses depois, aqueles grandes problemas ainda não estão resolvidos, mas, com a pandemia, a respetiva dimensão, severidade e evolução esperada são, necessariamente, muito diferentes. E, por isso, tudo deverá ser ambiciosa e transversalmente repensado.

Já aqui escrevi que uma governação inteligente deve ser, cada vez mais, suportada em dados. Transformar a informação histórica disponível em opções políticas assertivas e que respondam de forma eficaz aos problemas de cidadão é não só uma atitude inteligente, mas uma abordagem de responsabilidade e transparência que se espera de quem gere dinheiros públicos.

Quanto mais tempo durar o período pandémico e de confinamento social, maior se espera que seja o efeito borboleta. Mas já existem transformações que muito dificilmente serão revertidas. Hoje, o valor e a importância da centralidade são muito menores. Ao contrário, o conforto espacial e a relação e proximidade com a natureza estão em acelerada valorização.

No entanto, e como sabem todos aqueles que trabalham em ciência de dados, nem sempre os dados históricos são bons indicadores da realidade futura. Neste âmbito, quando se percebe que ocorreram alterações bruscas na realidade com impactos relevantes na evolução esperada das dinâmicas e comportamentos sociais, a governação inteligente é aquela que sabe reinterpretar as anteriores mensagens dos números, reposicionar o alcance dos seus efeitos e antecipar com respostas inovadoras, disruptivas e, por vezes, contrárias às medidas que anteriormente se defendiam.

Entre os vários exemplos do legado de alterações contaminantes da pandemia, destaco o repentino despertar da sociedade para as virtude e possibilidades do teletrabalho – na minha opinião, talvez, uma das revoluções comportamentais com maior impacto transformador para o futuro das cidades. Não por razões de inovação ou surgimento de uma nova tecnologia. Tecnicamente tudo já existia e desde há largos anos. O que mudou significativamente com a pandemia foram as mentalidades, os mitos e os medos sobre a organização, eficácia e aplicabilidade do trabalho à distância. De patrões e empregados. Para o bem e para o mal, e de forma global, as empresas estão a repensar todo o seu modelo de funcionamento e de relacionamento e contratação laboral de uma forma que ninguém antecipava a curto e médio prazo. E o modelo de funcionamento das empresas é um fator determinante da evolução da organização das cidades, a todos os níveis, especialmente nos que se refere às já citadas prioridades.

Estamos ainda numa fase precoce para termos perspetivas credíveis e globais sobre o real impacto desta revolução comportamental no funcionamento das cidades. Quanto mais tempo durar o período pandémico e de confinamento social, maior se espera que seja o efeito borboleta. Mas já existem transformações que muito dificilmente serão revertidas. Hoje, o valor e a importância da centralidade são muito menores. Ao contrário, o conforto espacial e a relação e proximidade com a natureza estão em acelerada valorização.

Com as empresas de serviços a possibilitar e até incentivar os seus trabalhadores ao trabalho remoto, algumas de forma definitiva, é esperado que muitas optem igualmente por reduzir a dimensão ou a deslocalizar os seus locais centrais de funcionamento, reduzindo a respetiva presença nos polos de maior pressão dentro da cidade. Até porque essa presença será cada vez menos valorizada e decisiva para o êxito do seu negócio. Colateralmente, ao reduzirem-se os movimentos pendulares diários de trabalhadores para o centro das cidades, reduzem-se também a pressão sobre o preço espacial, a densidade de movimentos e a carga poluidora. E, com isso, permitem-se novas oportunidades de fruição e desenho do espaço público central das cidades.

Mas há também novas e desafiantes ameaças. Não há mais espaço e tolerância para cidades que se movem a duas velocidades. As grandes autarquias têm de intensificar os seus esforços de reposicionamento e replaneamento estratégico e investir e priorizar em novos polos de atratividade nos perímetros exteriores dos seus territórios, os quais, pela sua natureza predominantemente residencial e de dormitório, enfrentam uma acrescida concorrência das cidades mais pequenas e periféricas onde a proximidade com a natureza e a convivência comunitária são muito mais efetivas e, por isso, tendencialmente com maior procura no futuro.

Ironicamente, e após anos de enorme investimento público e de subsidiação comunitária à coesão territorial e povoamento do interior, muitas vezes sem grande êxito, talvez a pandemia tenha sido o maior e mais eficaz promotor da visibilidade, afirmação e valorização do potencial de qualidade de vida permitido nas cidades mais pequenas. E, neste contexto, cidades determinadas e com governação inteligente não deverão, nem quererão desperdiçar esta oportunidade. O tradicional e o rural têm agora mais valor. É o que, na gíria do marketing, se designa de posicionamento “back to basics”, ou seja, incentivar e oferecer o regresso às coisas mais simples, mas também mais importantes.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.