Nos últimos anos, as principais cidades portuguesas  tornaram-se cada vez mais atractivas para viver, visitar e investir. Mas com a maior visibilidade, veio também uma maior sensibilidade às forças do mercado, marcada pela proliferação do alojamento local, o aumento da oferta turística ou a presença de fundos de investimento imobiliário internacionais. A gentrificação passou a ser uma realidade para uma boa parte dos portugueses. Pode o planeamento urbano atenuar os seus efeitos? Samuel Stein responde.

 

É doutorando em Geografia na CUNY Graduate Center, em Nova Iorque (NI). O seu trabalho centra-se em políticas de planeamento urbano, com ênfase na habitação, mercado imobiliário e gentrificação na cidade de NI. O seu trabalho foi já publicado no The Guardian, Jacobin, International Planning Studies, The Journal of Urban Affairs, entre outros. Em 2019, publicou o seu primeiro livro, Capital City: Gentrification and the Real Estate State, pela editora Verso.

 

O capitalismo não facilita o planeamento urbano. Os planeadores tentam moldar o espaço ao longo do tempo, frequentemente com intenções louváveis, mas o seu trabalho é rapidamente subordinado à obtenção de lucros de pessoas muito reais que operam sob a capa de anonimato do “mercado”. Em privado, o capital reclama planeamento e intervenções estatais, mas, publicamente, despreza os planeadores como burocratas intrometidos que travam o verdadeiro potencial do desenvolvimento privado.

Numa cidade capitalista, um dos trabalhos dos planeadores urbanos é, frequentemente, regular o mercado e canalizar vários tipos de acções privadas, aproximando-as ou afastando-as de diferentes áreas geográficas. Dito deste modo, o planeamento urbano não soa muito romântico nem divertido. Essas acções, contudo, têm efeitos bastante fortes nas cidades: determinam os parâmetros do meio edificado, criam valor económico e afectam a sua distribuição e têm um tremendo impacto no aspecto e na vivência das cidades.

“E, embora o capital seja uma força social complexa, uma pressão em particular – o mercado imobiliário – está a dominar cada vez mais a política urbana. Actualmente, uma maioria do capital mundial é investida no mercado imobiliário e três quartos desse valor em habitação”.

O poder dos planeadores está geralmente subordinado aos seus superiores – os políticos –, que, embora eleitos pelos eleitores, frequentemente agem comandados pelo capital. E, embora o capital seja uma força social complexa, uma pressão em particular – o mercado imobiliário – está a dominar cada vez mais a política urbana. Actualmente, uma maioria do capital mundial é investida no mercado imobiliário e três quartos desse valor em habitação.

Nestas condições, é suposto que tudo o que os planeadores façam se traduza em valores de propriedade e de terreno aumentados. Quer seja a sua intenção, quer não, a maioria dos planeadores trabalha para maximizar os efeitos da gentrificação. Para tornarem as cidades mais rentáveis para os investidores, recorrem à reorganização de zonas, a programas de privatização, promoção turística, controlo intensivo e muito mais.

Poderia ser de outra forma? Absolutamente. O sistema pode ser reorientado para minimizar os impactos da gentrificação. A utilização de terrenos, os impostos e as políticas habitacionais podem ser adaptadas para travar a especulação, mais do que para a alimentar, de modo a extrair alguma espécie de bem social do investimento. Podemos reiniciar e expandir os programas de habitação social e de rendas controladas, para, não só proporcionar habitação acessível, mas também para cortar a ligação entre o investimento público e o aumento de rendas por parte dos locadores privados. Podemos retirar as protecções que as vizinhanças abastadas actualmente acumulam e redistribuí-las pelos locais que os planeadores urbanos submeteram anteriormente a intermináveis programas de remodelação. Podemos avançar rumo a um sistema de planeamento guiado pelos princípios que animaram as visões de planeamento radical durante séculos: a soberania pública sobre o planeamento, terrenos socializados e desmercantilizados e planeamento regional que funcione para lá das fronteiras políticas artificiais.

É possível fazer tudo isto, mas os planeadores não o podem fazer por si próprios. Nem os políticos irão proceder a mudanças de grande envergadura que vão contra o capital simplesmente porque é a coisa certa a fazer. O único caminho a seguir é através da acção em massa: movimentos de locatários e de trabalhadores, de comunidades e de vizinhanças. Se as populações urbanas conseguirem desenvolver o poder para levar o mercado imobiliário a uma crise, os planeadores poderão ter uma oportunidade para reformular as prioridades das suas cidades e trabalhar efetivamente contra a gentrificação.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.