Todos estamos conscientes da necessidade da adoção de soluções de digitalização das infraestruturas das utilities públicas, de modo a tornar os serviços mais eficientes, aumentar o nível de serviço e contribuir de forma sustentável para a redução dos níveis de utilização dos escassos recursos que a natureza nos disponibiliza e para a redução da pegada ecológica.

Para que tal seja possível, devem ser instituídos planos estratégicos de digitalização das infraestruturas das utilities, no âmbito da temática das cidades inteligentes/smart cities, a atuação primordial e em carácter de prioridade sobre a digitalização, ou seja, na monitorização e atuação em quasi-tempo real, nomeadamente das infraestruturas: do sistema de iluminação pública, das redes de abastecimento e de adução de águas potáveis, da irrigação de espaços verdes, dos resíduos sólidos urbanos, da qualidade do ar, dos parques de estacionamento, do tráfego de veículos e de pessoas, e, até mesmo, da segurança pública.

Tratando-se as smart cities de uma temática ainda precocemente normalizada e/ou regulada aos níveis nacional, europeu ou, mesmo, mundial, e existindo no mercado uma miríade de tecnologias e soluções, individuais e/ou avulsas, das suas componentes constituintes, nomeadamente, dispositivos e sistemas de telecontagem, telemetria, telegestão e de comunicação remota, redes de transmissão de dados, ferramentas informáticas e analíticas para tratamento e processamento desses dados, e, face a tais vicissitudes, às incertezas técnicas e às questões legais e regulamentares, nomeadamente em termos de segurança e proteção de dados, numa abordagem natural, consciente e responsável, nos últimos anos, somente têm sido dados pequenos passos. Até aqui, têm sido implementados projetos circunscritos por projetos piloto e pouco representativos daquilo que deveria ser a digitalização massiva das infraestruturas de utilidades públicas, não se tendo podido daí obter os necessários e firmes conhecimentos sobre as tecnologias e soluções a adotar, de modo a permitir uma abordagem tranquila para obtenção dos desejáveis rollouts massivos de todas essas infraestruturas de utilidades públicas.

No âmbito dos projetos da smart city, e com o carácter de “pontapé de saída” para a implementação sustentável e sustentada da digitalização das infraestruturas de utilidades públicas, tem havido, como principal preocupação, a especificação dos requisitos técnicos e operacionais associados à infraestrutura da rede de comunicações, que, por bom senso, deve ser a base primordial para integrar no mesmo ecossistema todos os dispositivos IoT das diferentes infraestruturas de utilidades públicas. Isto porque todas as tecnologias de comunicações com maior notoriedade no mercado, com vários anos, e existentes em milhares de case studies, fossem a LoRa, NB-IoT, SigFox, entre outros, apresentam testemunhos de utilização com grandes lacunas de performance, principalmente quando se pretendem integrar num mesmo ecossistema de dispositivos IoT em larga escala, com muitas dezenas de milhares, ou mesmo centenas de milhares de dispositivos, uns alimentados por baterias, outros alimentados pela rede de alimentação AC, onde a probabilidade de sucesso seria muito escassa ou mesmo nula.

Portanto, estando embebidos no pensamento de que essas tecnologias de redes de comunicações estão disponíveis no mercado há vários anos, faz-se sobressair a questão pertinente: “se todas as tecnologias então existentes permitiam obter soluções eficientes e economicamente viáveis, porque é que o mercado não as tem ainda adotado, e tendo então procedido a rollouts massivos e replicáveis que pudessem conduzir à digitalização com sucesso dessas infraestruturas, quando todas as entidades gestoras têm conhecimento substantivo da importância dessa digitalização para o aumento substancial dos respetivos desempenhos de exploração?”.

Na verdade, existia e tem existido um problema primordial, que tem limitado a implementação massiva e replicável desses rollouts: as redes de comunicações existentes não são eficientes, nomeadamente no que diz respeito ao determinismo de operação em taxas de transmissão e em latências (não são redes sensíveis ao tempo (TSN)[1]), não têm coberturas de rádio adequadas de todos os dispositivos IoT das infraestruturas de utilidades públicas, que normalmente estão espalhados em geografias com orologias mais ou menos complexas, que conhecidamente dificultam ou obstaculizam as transmissões de rádio.

Interessante também verificar a adoção de uma solução eficiente de rede de comunicações que mitiga os problemas de cobertura de rádio dos dispositivos IoT, que assenta na geração de uma infraestrutura de comunicações em topologia meshed, baseada num protocolo de comunicações eficiente e determinístico, bidirecional, de taxa de transmissão e latência adequadas, sem restrições do número de dispositivos IoT, e sem restrições de uplinks e downlinks de dados.

A implementação desta solução de rede de comunicações é conseguida através dos módulos de telegestão instalados nas luminárias, nos contadores de água, e nos demais dispositivos IoT, existentes nas diferentes infraestruturas de utilidades públicas.

Um exemplo muito interessante no concelho da Figueira da Foz (Águas de Figueira) utiliza luminárias inteligentes que simultaneamente promovem uma redução do consumo de energia elétrica de cerca de 80%, contribuindo assim para a redução da pegada ecológica, e funcionam como transmissores e/ou retransmissores de dados dos “contadores inteligentes”.

O caso particular da água

Como sabemos, as redes de abastecimento de água ainda apresentam problemas particulares de eficiência. As perdas de águas nas redes de abastecimento de água constituem prejuízos colossais, visto que, na maioria das vezes, as águas não são faturadas, contribuindo para o desgaste das infraestruturas hídricas e, por conseguinte, do meio ambiente, pois são extraídas dos lençóis freáticos.

A monitorização “pós-contador” de água, na parte do consumidor final, é outro ponto importante para otimizar a utilização da água, onde aquele pode ser o principal agente ativo. O acesso em quasi-tempo real aos dados de medição da água aumenta a consciência de consumo do utilizador final e poderá permitir a adaptação do seu comportamento em conformidade, para evitar o respetivo desperdício. A notificação das fugas internas (Alvisi, et al., 2019), que podem ser responsáveis por até 10% do consumo total de água, principalmente no setor residencial, é outra informação importante para os consumidores finais, que poderão utilizar essa informação para imediatamente poderem reparar as suas roturas e, assim, reduzir os consumos de água e, consequentemente, as suas contas de água. De acordo com Britton et al. (Britton, Stewart, & O’Halloran, 2013), as roturas reparadas por consumidores que foram informados por uma solução de contador de água inteligente podem reduzir as perdas de água em 89%, num curto período de três meses.

A análise e o estudo da utilização final da água residencial podem fornecer informações essenciais sobre “quando”, “onde”, “como” e “porque” os consumidores residenciais consomem água em casa, por meio da desagregação de consumos em diferentes categorias de utilização da água (e.g. banhos, autoclismos, máquinas de lavar roupa ou loiça, etc.). Estes dados são convertidos em informação útil para os consumidores, que poderão ter um melhor entendimento sobre os seus consumos e, assim, podem ser capazes de direcionar esforços de eficiência (e.g. entender que o seu consumo de banhos é exagerado) (Yang, Zhang, Stewart, & Nguyen, 2018). A entidade gestora também poderá utilizar esses dados, posteriormente convertidos em informação útil, para a gestão da demanda da água (Willis, Stewart, Giurco, Talebpour, & Mousavinejad, 2013), para o planeamento aprimorado da infraestrutura de abastecimento das águas (Gurung, Stewart, Beal, & Sharma, 2015), gestão de perdas pós-medição, gestão dos picos de demanda (Beal & Stewart, 2013) e compreensão da relação água-energia (Stewart, et al., 2018).

Nos dias de hoje, nas medidas conhecidas de combate às perdas das águas, são apresentadas soluções designadas em textos de memórias descritivas e justificativas [2] de novos projetos, realizados por especialistas da área, do tipo: “Tendo em conta a topologia das instalações e respetivas dimensões das ZMC [zona de medição e controlo] que se preconiza-se a instalação de um sistema de monitorização e telegestão de perdas e fugas do tipo modular de constituição simplificada e baseado em comunicações. Pretende-se um sistema com um conjunto de funcionalidades suficientes para a gestão de rede em todos os seus aspetos operacionais tendo havido a preocupação de encontrar soluções de compromisso funcionalidade/custo bastante otimizados.

Na prática, as respetivas implementações dos projetos irão conduzir à obtenção da denominada telegestão nas redes de abastecimento de água que se limita à intervenção na cabeça da ZMC, nos reservatórios ou nas estações de bombagem, de dispositivos de comando, controlo e atuação remotas muito complexos e dispendiosos, alojados em armários elétricos portentosos (PLC [3] com dezenas de entradas/saídas, sendo normalmente usadas somente um número reduzido das suas capacidades, gateways de comunicações sofisticados), exigindo na maioria dos casos uma baixada de alimentação a partir da rede de distribuição de energia elétrica, somente para alimentar funções e funcionalidades sobredimensionadas, que nunca são utilizadas, em nome da criada necessidade de se poder aumentar a complexidade no futuro, que exigem técnicos especializados para a respetiva conceção, implementação, colocação ao serviço e exploração (manutenção, configuração e parametrização).

Obviamente, em sentido lato, sem uma abordagem de gestão integrada de todos os dispositivos da Rede de Abastecimento de Água, alargando a telegestão a todos os dispositivos da Rede de Abastecimento de Água e, em sentido restrito, das ZMC, desde a cabeça da ZMC, nos pontos de distribuição (PoP) [4], até aos pontos de entrega (PoD) de utilização, não será possível obter dados que possam ser convertidos em informação fiável e usável, para se poderem tomar decisões corretas e oportunas.

Exemplo prático de uma ZMC com implementação de telecontagem inteligente com recurso a rede mesh implementado na Águas de Gaia EM SA.

Porquê implementar um sistema inteligente?

A motivação para um sistema inteligente deve ser uma solução que vise a gestão integrada da eficiência das redes de abastecimento de águas, com o propósito de auxiliar na resolução dos problemas identificados e, assim, contribuir decididamente para a obtenção de uma maior performance de exploração das respetivas infraestruturas.

Estes sistemas devem permitir, por um lado, a rápida mitigação das perdas e dos desperdícios e, por outro, a diminuição dos custos de exploração através do aumento da eficiência, decorrente da maior fiabilidade e respetiva operacionalidade dos sistemas, através da regulação adequada das pressões da água nos dispositivos hídricos de abastecimento e da deteção remota automática desses dispositivos em falha ou em mau funcionamento, podendo assim possibilitar uma atuação imediata, eficaz e eficiente nas ações de correção dos incidentes, pelas equipas de intervenção, bem como devem ser uma ferramenta de gestão dos recursos hídricos com inegáveis mais-valias técnicas, operacionais e económicas, através da integração num mesmo ecossistema IoT de todos os dispositivos de abastecimento e medição da água e de todos os dispositivos de comando, controlo e monitorização, das quais se relevam as seguintes, e que devem encorpar os objectivos a atingir:

  • Medição de pressão e caudal para permitir a geolocalização e quantificação de perdas de água, permitindo a geolocalização das canalizações e outros dispositivos em falha, por meio da deteção de possíveis perdas no cliente, nos ramais e nos sistemas de distribuição geral. Deve ser feita a monitorização contínua dos padrões de caudais e de pressões, suportada numa plataforma SCADA, que devem permitir obter uma imagem contínua e sincronizada das condições de operação de todos os dispositivos da rede de abastecimento de águas e, dessa forma, permitir a contínua obtenção de balanços hídricos analíticos (BHA) e a identificação de falhas reais e/ou prováveis em todas as instalações de água, nomeadamente nas de alto risco;
  • Obtenção dos balanços hídricos analíticos (BHA) de consumos em quasi-tempo real por ZMC, em substituição do tradicional e balanço hídrico estatístico (BHE), convencionalmente utilizado, e normalmente obtido pela telecontagem descontextualizada do contador totalizador da ZMC;
  • Deteção em quasi-tempo real de usos não autorizados de água, evitando assim que estes se diluam ao longo do tempo e se confundam com fugas de água;
  • Deteção em quasi-tempo real de situações anómalas ou fraudulentas no funcionamento dos contadores de água;
  • Eliminação das leituras e faturação por estimativa, com a redução dos custos inerentes à leitura física dos contadores e dos seus potenciais erros, impactantes ao nível de reclamações, respectivos custos administrativos e no aumento do volume de faturação, devido à possibilidade de faturação mensal mais justa, que permite o aumento de faturação por escalão do tarifário, aposta aos consumidores que efetivamente mais consomem;
  • Proporcionar aos clientes um mecanismo de monitorização das leituras e consumos, através de aplicações de suporte para otimizar os padrões de consumo de água do consumidor final, assim como um mecanismo de alarme com alerta de fugas e roturas na sua canalização, estreitando pois a confiança e a boa relação comercial com a entidade gestora, contribuindo desse modo, para a diminuição das reclamações, das conflitualidades comerciais e dos litígios legais;
  • Proporcionar à entidade gestora todos os serviços de suporte à exploração (SSE) que permitam que toda a infraestrutura (ou seja, todos os dispositivos da infraestrutura) possa estar a operar de acordo com os níveis de serviço acordado (SLA) [5], com a telegestão (atuação de cargas, medição e monitorização) ou telemetria (medição e monitorização) dos dados, obtenção de dados usáveis por tratamento analítico (data science), gestão e operação da rede de comunicações, emissão dos eventos de sinalização de alarmes e outros eventos em regime quasi-tempo real, tudo suportado em plataforma SCADA. Contemplando até as questões relacionadas com o os actos de vandalismo que acontecem frequentemente nos momentos iniciais (e não só, mas principalmente) dos rollouts e as exceções existentes nos locais geográficos de difícil cobertura de rádio frequência que normalmente costumam ficar fora da ação da gestão da exploração da infraestrutura, não contribuindo assim para os balanços hídricos analíticos (BHI) e para a geolocalização e quantificação das perdas da água, que podem colocar em causa a confiança na gestão da eficiência de toda a infraestrutura;
  • Proporcionar à entidade gestora a virtualização dos contratos de fornecimento com clientes, numa plataforma, através, por um lado, da funcionalidade de operação remota de uma válvula de ligar/desligar o fornecimento da água aos clientes e, por outro, da celebração de contratos on-line, a partir de um smartphone, tablet, ou computador conectado à internet.
 

Exemplo prático do sistema de telecontagem inteligente da Águas de Gaia EM SA: cliente com possível fuga.

O “segredo” do sucesso para a implementação eficaz de sistemas de Smart Metering, é pois a meu ver a UNIVERSALIDADE (que o sistema seja “agnóstico” e compatível com qualquer marcar/modelo de contador); FIÁVEL; ECONOMICAMENTE SUSTENTÁVEL (permitindo a sua amortização) e que MELHOR O SERVIÇO AO CLIENTE.

Nesses termos, a implementação de uma solução de gestão integrada da eficiência (IME) das redes de abastecimento de águas de uma forma económico-eficiente e sustentável alinha-se com a ambição de otimizar a gestão dos recursos hídricos e pode contribuir para ir ao encontro das metas estipuladas para a redução e otimização dos consumos de água em Portugal, mas também para tornar o país numa “montra” tecnológica e assim contribuir para a balança comercial nacional.

 

 

 

 

 

 

[1]TSN: time sensitive network

[2]in Memória Descritiva e Justificativa 930.PE.TLG.MDJ.0 emitido pelo CTGA

[3]PLC: programmable logic controller

[4]PoP: point of parceling

[5]SLA: service level agreement

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.