Bragança, Guarda, Porto e Lisboa foram os pontos de passagem do tour Seeing the Better City, que trouxe o advogado e especialista em urbanismo Chuck Wolfe a Portugal. Num convite à observação da cidade, através da criação de um diário urbano, Wolfe deixa críticas à pressão que o termo “smart city” está a exercer sobre as cidades portuguesas e alerta para os perigos da perda de contexto e identidade.
Numa das suas apresentações, disse não se sentir confortável com o termo “smart city”. Porquê?
É um termo confuso. Daquilo que vi em Portugal, é usado de forma abrangente. Em qualquer outro sítio do mundo, tem, muitas vezes, uma conotação puramente tecnológica. Aqui parece integrar o que noutros locais se chama “bom urbanismo”. Torna-se confuso porque dá a ideia que as cidades têm de estar em determinada fase para obter esse título. Na Guarda, por exemplo, o presidente da câmara municipal disse “Já somos uma smart city em muitas formas diferentes”. E ele tem razão, no entanto, a imprensa local perguntou-me se a Guarda estava “preparada” para ser uma cidade inteligente. A minha resposta foi “tudo depende do que se quer dizer com smart city”. A Guarda, ou outra cidade qualquer, está definitivamente preparada para concretizar as suas forças qualitativas e pensar como a tecnologia as pode alavancar. Não está pronta para adoptar inconscientemente um produto tecnológico de uma empresa… Em conclusão, é um termo sobreinclusivo em Portugal, confuso para cidades que estão a tentar dar o seu melhor, e requer uma definição daqueles que não estão familiarizados com isto, mas que é desnecessária.
Mas o facto de incluir a ideia de bom urbanismo é mau?
Não, é óptimo, mas, por favor, chamem-lhe outra coisa. Por ser sobreinclusivo, vejo-o a ser usado por aqueles que querem vender produtos.
É um negócio?
Tem sido muitas vezes usado para oportunidades de negócio ou para desencadear debates convenientes, como o futuro de uma cidade. Quem o faz sabe que o termo tem fraquezas, mas atrai atenções para trazer o município à mesa para debater o que este deve ser. Não há problema nisso, mas há consequências, nomeadamente o facto de as pessoas falharem a mensagem. Pensam que se lhes está a pedir que abandonem a sua história, que aceitem uma solução tecnológica num local onde, por exemplo, não há rede de telemóvel. Como se lhes estivessem a enfiar qualquer coisa na garganta… e isto leva a perguntas como “estamos prontos?”. Sim, estão prontos para ser um sítio melhor! Angustia-me muito, como estudante da cultura ocidental, que um país tão venerado como Portugal, com tanta história, esteja a falar como se fosse qualquer outro local do mundo. É um erro profundo.
Este “negócio” está, de alguma forma, a ajudar a construir melhores cidades?
Sim, claro. Está a ajudar a tomar decisões centrais para a prestação de serviços, na agregação de informação que pode não ter estado disponível de uma forma que permita a sua utilização de forma confiável… Mas por que não o reduzimos aos seus elementos básicos sem lhe chamarmos “smart city”? Assim, os consultores podem à mesma vender os seus produtos, mas uma cidade não tem de decidir se é inteligente ou não.
Cidades inteligentes, sustentáveis, resilientes… Todos os termos têm falhas. Devemos falar de “cidades melhores”?
Esse é um termo que não é o que aparenta, pois pode precisar de explicação. É um termo mais holístico e que nos leva a perguntar “cidades melhores para quem?”. Não há uma “cidade melhor”, mas todos queremos mais qualidade de vida. Melhor significa que podemos fazer mais do que estamos a fazer agora, não exige que passemos esta fronteira, na qual perguntamos “está a nossa cidade preparada para ser uma cidade melhor?”. É um termo que permite uma discussão mais holística que tem de acontecer e, para mim, traz-nos o tema de empoderamento, de nos forçar a perceber que não há a cidade melhor…
Traz uma visão mais humanística?
Sim. Para mim, smart city não tem qualquer significado humanístico. Angustia-me que a maior parte do dinheiro disponível seja para smart cities, sem uma definição uniforme. Penso que este não concretiza as reformas de justiça social…
Fotografias gentilmente cedidas por Chuck Wolfe.
É advogado. Como se interessou por cidades?
O meu pai, Myer Wolfe, era professor de planeamento urbano, fundou o departamento moderno de Urban Design and Planning da Universidade de Washington, em Seattle, e teve muitas oportunidade de trabalhar no estrangeiro. Por isso, em criança, tive a sorte de viajar muito e gosto de dizer que apanhei muita coisa por osmose, absorção, e fui abençoado com o fascínio pelas cidades. Tirei o mesmo mestrado que o meu pai, em Planeamento Regional, e fiquei muito fascinado com o papel da regulação. Podia ter avançado para um PhD, mas optei por ser prático e estudar Direito, mas ser o advogado que lida com cidades. Alguns anos depois, comecei a escrever sobre o tema, enquanto exercia advocacia e muito do que tinha guardado dentro de mim durante muito tempo saiu cá para fora. Comecei a escrever blogues, a tirar fotos, a viajar e a tirar conclusões sobre o que via.
O seu pai foi a grande inspiração. Que mais ficou dele?
O meu pai desenhava e tirava fotografias e, como académico, criticava quem escrevia sobre cidades sem ilustrações ou fotografia… Tenho uma história particular e é irónico que, agora, me pareça muito com o meu pai. Era arquitecto de profissão, eu sou advogado. Estou a fazer o mesmo processo por meios diferentes.
Nessa perspectiva, o que procura numa cidade?
Realidade. Padrões na paisagem que revelem história. Procuro ler uma cidade de forma a que esta me diga mais sobre o seu background sócio-cultural, histórico e actual. Por exemplo, as estações do metro de Estocolmo são muitas vezes chamadas de as mais longas galerias de arte do mundo, com lojas para as classes altas, mas a população está a mudar. Os meus estudantes fizeram um diário urbano sobre a verdadeira Estocolmo, como lemos estas estações de metro de forma a que reflictam o que a cidade é. No meu livro, falo de espelhos urbanos, nos quais vemos quem somos, de momentos de aprendizagem, que só, por vezes, temos sorte de ver, justaposições, onde estão as batalhas, etc. Isto são tudo coisas que procuro numa cidade. Um pouco ao jeito de [Jan] Gehl, procuro pela forma como as pessoas usam os espaços. Mas foco-me mais no que o indivíduo pode fazer.
Pretende criar um movimento com os diários urbanos?
Se quero tirar algo disto, não é ser o líder de um movimento, mas ajudar as pessoas a perceber melhor o seu ambiente, isso ajudará todos a falarem melhor entre si.
Se o diário urbano é uma forma de dar poder às pessoas, como podem usá-lo? Porque não se trata apenas de tirar fotografias…
Gosto de dizer que é escalável. Tal como aprender a andar de bicicleta ou a tocar um instrumento, pode ser usado para aprender a ver.
Mas é preciso treinar o olho.
Há passos que o tornam num exercício mais estruturado. O diário urbano assenta numa metodologia casual, não científica, chamado o método LENS – Look, Explore, Narrate and Summarize. Há escolhas a fazer, tanto no diário urbano, como no LENS, e o tipo de diário pode ser sobre a cor, as justaposições ou outras coisas que façam a diferença na cidade.
Se cada um de nós tem uma perspectiva, como conseguimos um resultado objectivo?
Será mesmo preciso ter um resultado objectivo? Cada um de nós traz algo diferente à discussão. Primeiro de tudo, o diário urbano pode ser uma ferramenta de informação. Uma cidade pode ser mais casual e desestruturada ou pode ser rigorosa. Veja-se o caso de Adelaide, na Austrália. Quiseram descobrir o que é especial da perspectiva dos residentes e pediram-lhes que escrevessem três qualidades da cidade e acompanhassem com fotografias. Isto foi respondido por muitas pessoas. Alguém no município teria de analisar as respostas, procurar por semelhanças e isolá-las, compilá-las de forma sistemática. Mas seria sempre uma forma informal. Não sei se isso seria tão abrangente, mas seria uma fonte de informação e pode ser usada inteligentemente. Se o escalarmos para um nível maior de objectividade, seria preciso desenhar um conjunto de questões mais sistemáticas.
Mas pode ser usado para isso?
Sim, se houver um conjunto abrangente e sistematizado de perguntas que guiem o utilizador, ou rankings, que permitam dar uma perspectiva sobre determinadas questões… Mas não se deve fazer só isso. A diferença para a minha abordagem é que as pessoas podem fazê-lo em qualquer altura. Deixemos as pessoas mostrarem-nos também. Algo que acontece muito nos EUA: um especialista que chega e nos dá a escolher entre duas coisas. Isso não é empoderamento. Há muitas outras respostas à mesma questão. Podemos torná-lo mais criativo, mas pode ser mais interessante e inspirador se o deixarmos mais aberto.
“Há algo de muito especial nas pessoas e na forma como elas se relacionam com o seu ambiente, a sua casa. E isso é a cidade melhor”.
Num artigo internacional recente, lê-se que, com um diário urbano, qualquer um pode ser um planeador urbano. Concorda?
Isso surgiu numa manchete de um artigo original do CityMetric e é um lead que atrai atenções. Todos conseguimos ver e fazer mais do que pensamos ou mais do que os profissionais pensam que conseguimos para fornecer bons inputs sobre uma cidade melhor, com mais qualidade de vida. Se falarmos no sentido profissional, provavelmente não, mas todos devíamos poder fazer mais do que acontece em muitos locais. Para ser justo, no que toca a reforçar o poder dos cidadãos, todos devíamos estar mais interessados. Todos temos muito a contribuir para o debate apenas por existirmos.
Tem viajado muito nos últimos tempos. Nas cidades que visitou, considera que os arquitectos, os planeadores urbanos/urbanistas, os promotores estão a olhar suficientemente para as cidades?
Desde Junho, estive em mais de 14 cidades, desde os EUA à Austrália e Europa. Surpreendentemente, apercebi-me de que muitos urbanistas não sabem ver, ficam presos em processos e em papéis, não pensam de forma visual. Os arquitectos vêem a possibilidade, porque é o que eles fazem, mas, muitas vezes, querem “apropriar-se” demasiado. Os promotores podem ser, provavelmente, os melhores a fazê-lo, porque precisam de previsibilidade. Ironicamente, é mais do seu interesse avaliar o que é apropriado para um local, mas isso não significa que é o que vão propor.
E os decisores políticos?
Muitas vezes, estão preocupados com a sua sobrevivência. Se os votos estão do lado de determinada decisão, tendem a adoptá-la. Os que estão interessados nas melhorias cívicas vão levar a noção de aprender a ver e compreender a cidade mais além… Eles vêem a cidade que precisam de ver, alguns serão abertos a um entendimento mais alargado, mas podem ser influenciados por uma posição política. É aqui que se torna interessante.
As cidades nos dashboard podem substituir a cidade real para os decisores?
Para fornecimento de serviços, como energia, polícia, protecção civil, semaforização,…, claro! Mas existe algum dashboard para a felicidade? Ou para a beleza ou feiura? Ou para a percepção subjectiva do que é uma cidade? Cada uma tem o seu lugar e ambas podem coexistir.
Viu uma cidade melhor em Portugal?
Apesar da conversa sobre cidades inteligentes, vi um lado humano que se mostrou muito interessado naquilo que eu pensava sobre as suas cidades e sobre o seu lado humano. Sobre a gastronomia. Sobre as pessoas. E houve uma sinceridade nisso que não existe nos EUA. Culturalmente, as pessoas são hospitaleiras e estão muito interessadas nas suas tradições e gostei do facto de estarem tão preocupadas com a perda de população… Mas as soluções rápidas não são a resposta para isso. Estes locais são tão especiais e isso é comunicado de tantas formas que eles precisam de um inventário, de trabalhar juntos a um nível genérico e falar para as necessidades genéricas de uma cidade do interior. Talvez possam decidir sobre aquilo em que cada uma é boa e dividir, de forma a que não estejam todas a apregoar a mesma coisa. As pessoas importam-se e há alguma sinceridade e um nível de contacto visual ao qual não estou habituado. Há algo de muito especial nas pessoas e na forma como elas se relacionam com o seu ambiente, a sua casa. E isso é a cidade melhor.
Viu isso também em Lisboa e no Porto?
Sim, entre pessoas que as têm adoptado como as suas casas e têm orgulho nisso. Há um nível de ligação, de orgulho, ao qual não estou habituado.
Fala-se muito que, por causa do turismo, estas cidades estão a perder identidade.
Compreendo porque se diz isso. Desde a última vez que aqui estive, em 2012, as coisas mudaram e algumas partes, talvez, por causa do turismo ou da economia global, não parecem tão únicas como antes. Nessa altura, encontrei uma mistura fantástica com base no legado dos portugueses, no seu Império, na recuperação dos anos de ditadura ou dos desafios económicos… Tudo isto tinha uma autenticidade e agora uma parte parece ter-se perdido. Está tudo mais limpo, há uma nova confiança, as coisas estão diferentes. Não é mau, mas está a mudar a identidade. Continua a ser muito especial e isso não deve ser perdido. Venho de uma cidade que tem vivido um ritmo de mudança gigante, e há quem diga que Seattle perdeu a sua alma – mas o que é que isso significa? Não tenho tolerância para esse discurso. Mas, no caso português, é uma alma verdadeira. Não digo que esteja dramaticamente diferente, mas não está tão vivo. Vi esse sentimento mais presente na Guarda do que em Lisboa. Alfama, por exemplo, parece-se, agora, mais a outros locais…
O turismo acentua ou atenua essa questão?
Depende. Se é a única “indústria” a nível nacional, como muitos dizem que é, não faz mal, mas é uma questão de ser cauteloso para avaliar os seus efeitos. Há sítios que não suportam esse impacto, mas se as pessoas conseguirem recanalizar a autenticidade de forma a que possa trazer nova vida a locais que estão dormentes… Se alguém quer pensar uma nova ideia para Lisboa e criar, por exemplo, um festival de cinema que vai destronar Cannes, não há problema. Há todo o mérito em criar potencial turístico que possa salvar um local e destacá-lo. Não sou consultor em desenvolvimento económico, mas acredito que forneci uma método em que todos possam fazer inventário da sua cidade e decidir o que é apropriado, real, e pode levar a uma debate e não a uma decisão imposta pelas circunstâncias. A desconstrução e dissecação fornecem instrumentos para uma avaliação e como os quantificamos é onde a tecnologia pode ajudar. Porém, as cidades não podem substituir os inputs humanos, ou arriscam-se a ficar iguais a todos os outros lugares.
Como podemos alcançar uma cidade melhor?
Não tendo medo de honrar a nossa identidade, porque ela é muito especial, mas atenção para não a transformarmos numa encenação ou num museu. É preciso ter cuidado com soluções rápidas. É preciso inventariar quem somos, compreender a nossa história, lembrarmo-nos do contexto.
Qual seria a sua recomendação para os decisores políticos?
Não pensar que a primeira solução que é oferecida é a única possível. Há formas de forçar um compromisso sem perder a identidade… Há formas de aceitar a economia global que são muito cientes do contexto local. Conceber formas de envolver o cidadão, o que pode ser um desafio. Talvez, as oportunidades trazidas pela criação de diários urbanos possam ser uma solução… Ter em conta aquilo que a cooperação regional pode trazer, entender isso menos como uma competição. E, por último, trabalhando com pessoas que têm o melhor interesse da cidade em mente.
