Desde o início da pandemia de Covid-19, governos de todo o mundo pediram às populações para que ficassem em casa, com o objectivo de achatar a curva de novos contágios. Sem pessoas, as cidades ficaram vazias num cenário nunca antes visto e, um pouco por todo o lado, a arte no espaço público, que encontrava nas ruas o seu espectador, ficou, também ela, em isolamento. Enquanto estivemos privados de viver as ruas, pôde a arte na cidade dar-nos algum conforto?

ARTE EM ESPAÇO PÚBLICO: UMA PLATAFORMA DE ESPERANÇA

O isolamento social que esta pandemia nos impôs trouxe consigo novas prioridades: a prestação de cuidados de saúde a quem não escapa ao vírus; o combate à propagação do mesmo, através do reforço dos investimentos em higiene e segurança, também dos espaços públicos e comuns; e o socorro financeiro dos que perderam rendimentos, protegendo empregos e futuros. Neste contexto, porque é que afirmamos que continua a ser indispensável o investimento em cultura e, nomeadamente, na presença de novas obras de arte em espaço público?

A 10 de Novembro de 1848, perante a proposta dos ministros franceses em cortar os financiamentos à cultura, Victor Hugo (1802-1885), autor de obras imortais como O último dia de um condenado à morte ou Os Miseráveis, profere um discurso de enorme actualidade que nos ajuda a compreender o porquê, principalmente em momentos de crise, de o investimento no sector dever ser reforçado e não o contrário, procurando evitar que “a sociedade se precipite no abismo da ignorância”, questionando, em jeito de alerta: ao pensar-se “exclusivamente na vida material, quem se ocupará de acender os archotes para as mentes?”(1). Em A Utilidade do Inútil, Nuccio Ordine transcreve-o:

“Mas se quero ardentemente, apaixonadamente, o pão para o operário, o pão para o trabalhador que é meu irmão, a par com o pão para a vida quero pão para o pensamento, que também é o pão da vida. Quero multiplicar o pão do espírito, tal como o pão do corpo”.

Num tempo em que o trabalho nos separa e divide e a solidão nos pesa, ao contrário do que acontecia na Antiguidade Clássica, em que as cidades eram pensadas como organismos de encontro e de decisão vivos, a arte – um excesso vital (2)– vai consistir em saber celebrar um nada que nos una a todos.

O objecto artístico em espaço público, além de democrático, de acesso livre sem muros ou bilhética, por aceitação ou negação comunitária, reúne uma possibilidade de construção de semiótica comum, capaz de agregar valores e de potenciar um combate eficaz à tal ignorância de que fala Victor Hugo. A obra de arte – e, neste caso, a obra de arte pública – tem funcionado, ao longo da História e no concreto da pós-modernidade, como reflexo da emergência, ou seja, como uma espécie de sismógrafo de um modus vivendi urbano. A arte interpela-nos e interroga-nos, ajuda-nos a construir conhecimento e a ser massa crítica, não permite a indiferença e corrói a intolerância pela sua pluralidade de possibilidades de leitura e de vinculação aos indivíduos e às comunidades.

Ao longo dos últimos 40 anos, multiplicam-se os exemplos de territórios que se transformaram a partir da implementação de projectos culturais, quer de museus e equipamentos culturais cuja arquitectura e dinâmica modificou quarteirões inteiros, quer com um investimento claro na presença da obra de arte em espaço público, criando factores de atractividade turística e motivos de orgulho em todos os seus cidadãos. Só o belo nos deslumbra, orgulha e motiva.

Viver o espaço público é, por estes dias, o sonho partilhado por todos nós. O espaço público reúne em si mesmo o tempo e o espaço da História e das nossas estórias. Desejamo-lo como pão para a boca e, portanto, se o espaço público é proactivo na construção de alternativas à alienação – sensíveis, experimentáveis, inteligíveis –, a arte pública é um desafio social estratégico para os territórios. A arte em espaço público funciona como uma plataforma de esperança, recorrendo à expressão de David Harvey (3), e, em temos de pandemia, a presença do belo é a certeza do futuro.

 

Referências:

1- ORDINE, Nuccio – A Utilidade do Inútil. Manifesto. Matosinhos: Kalandraka Editora, 2018. Páginas 92 a 96.

2- GADAMER, Hans-George – A atualidade do Belo. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1985. Página 32.

3- HARVEY, David – Social Justice and the City (Geographies of Justices and Social Transformation). Athens, Georgia:
University of Georgia Press, 2009. Página 146.

4- Citado em CAEIRO, Mário – A Arte na Cidade. História Contemporânea. Lisboa: Círculo de Leitores, 2014. Página 279.

 

Foto: © Imagem de Albert Cañas por Pixabay

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