A propósito do 45.o aniversário da Revolução dos Cravos e do 43.o aniversário da Constituição da República Portuguesa (CRP), escrevi, na última participação na revista Smart Cities, sobre o percurso e a evolução das políticas de habitação social de 1974 até aos dias de hoje. Como proposto nesse mesmo texto, escrevo, agora, sobre o percurso da legislação que incinde no mercado de arrendamento.

Se, no caso das políticas de habitação social, é possível encontrar uma ruptura teórica e prática em Abril de 1974, no caso do arrendamento temos de recuar um pouco mais para ter o devido enquadramento. Deixando de lado o longínquo Código Civil de Seabra de 1867 ou as medidas excepcionais tomadas durante a I República a propósito da Grande Guerra, vale a pena frisar que, nas cidades de Lisboa e do Porto, as rendas se encontravam congeladas desde 1948.

Em Abril de 1974, o mercado de arrendamento tinha duas singularidades a destacar: a) o prolongado (e resistente) congelamento nos dois municípios mais importantes do país; b) a impossibilidade dos senhorios colocarem termo aos contratos de arrendamento, que eram continuamente renovados (salvo excepções), naquilo a que os juristas se referem como contratos vinculísticos. Quer isto dizer que, nas duas principais cidades, as rendas não só estavam congeladas – e, por consequência, descontextualizadas da realidade do mercado – como não era possível ao senhorio colocar um fim ao contrato na generalidade das situações. Não sendo esta a única explicação, a degradação acentuada do centro histórico das principais cidades portuguesas passava muito por um mercado de arrendamento disfuncional, incerto, problemático, pouco atractivo e no qual as receitas eram, em muitas circunstâncias, insuficientes para cobrir as despesas.

“Sendo verdade que parte dessa liberalização era necessária num mercado excessivamente protegido e intervencionado, também se deverá dizer que as decisões mais recentes, nomeadamente as de 2012, foram conceptualizadas no sentido de fomentar proveitos económicos e colocaram os grupos mais vulneráveis numa situação muito difícil, pela não renovação dos contratos antigos, levando a uma transformação profunda do tecido social e urbano do centro das principais cidades portuguesas “.

Mas, afinal, qual foi o percurso feito nas últimas quatro décadas? A resposta exigiria, obviamente, mais espaço de explanação, mas, em suma, pode ser resumido em alguns tempos elementares:

  1. O primeiro corresponde ao período que se seguiu à Revolução, sendo que, logo em 1974, as rendas foram congeladas em todo o país, primeiro temporariamente, e, mais tarde, até decisão em contrário. Além do alargamento a todo o país do congelamento que anteriormente apenas existia nas cidades de Lisboa e do Porto, colocou-se ainda em prática um conjunto alargado de medidas intervencionistas, como, por exemplo, a fixação de rendas, o dever de arrendar fogos devolutos e a suspensão de acções de despejo;
  2. Estas medidas foram promulgadas ainda antes de 1976, ou seja, foram precedentes à Constituição da República Portuguesa e ao primeiro Governo democraticamente eleito. Acresce que estas medidas eram abertamente contestadas por sectores importantes da sociedade portuguesa, em especial os senhorios e os empresários da construção civil. Várias destas decisões foram sendo anuladas nos primeiros Governos Constitucionais e, em 1985 (durante o bloco central), surgiu a Lei das Rendas, numa primeira tentativa de alterar o mercado de arrendamento. Esta Lei já previa a actualização das rendas (dependentes da publicação de portarias anuais) e outros conceitos que tiveram uma aplicação prática difícil em Portugal, como, por exemplo, o subsídio de renda, que estava estipulado para os casos em que a correcção das rendas antigas colocasse o agregado familiar numa taxa de esforço demasiado exigente. Note-se que este conjunto de alterações teve a particularidade de não agradar aos inquilinos, que viam a renda aumentada, nem aos proprietários, que achavam os aumentos pouco significantes;
  3. Em certa medida, poderá dizer-se que o percurso liberalizador do mercado de arrendamento deu-se em 1990, com a publicação do Regime de Arrendamento Urbano (RAU). Este regime surge numa altura em que o sector de arrendamento estava relativamente paralisado e numa posição secundária em relação à aquisição de casa própria. Os principais objectivos do RAU eram de reunir num único diploma diversas matérias referentes ao arrendamento e aperfeiçoar os regimes de renda livre, de renda condicionada e de renda apoiada criados na década anterior. A maior inovação estava, contudo, na permissão de contratos de arrendamento de duração limitada, com mínimo de cinco anos, o que permitia ao senhorio extinguir o contrato no seu termo, terminando assim com o exclusivo dos contratos vinculísticos. No geral, o RAU abriu as portas ao caminho de modernidade no sector de arrendamento, com um regime juridicamente condensado e a criação de contratos a termo com actualizações periódicas. No século XXI, em 2006, este percurso manteve-se em moldes relativamente idênticos, com a publicação do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU);
  4. Apesar do percurso liberalizador que foi estabelecido para os novos contratos de arrendamento, nunca terá existido coragem para alterar o paradigma dos contratos antigos, ou seja, aqueles que eram vinculísticos e tinham rendas desactualizadas relativamente ao mercado. Em 2011, o célebre “Memorando de entendimento sobre as condicionantes de política económica” incentivava a várias alterações ao NRAU. Essas alterações acabaram por surgir em 2012, e, entre as várias mudanças de cariz liberalizador (g. contratos de arrendamento que poderiam ser de um dia), definiu-se um período de transição para os contratos antigos, depois do qual seriam celebrados novos contratos ao abrigo do NRAU, ou seja, com termo definido e renda ao valor do mercado (ou desejo do proprietário).

Mais haveria a dizer, por exemplo, sobre os apoios ao arrendamento novos e antigos (e.g. Porta 65, Programa de Arrendamento Acessível, …), mas, numa brevíssima reflexão geral, poderá dizer-se que o percurso da legislação portuguesa que incinde sobre o mercado de arrendamento teve, desde meados da década de 1980, apenas o sentido de liberalização.

Sendo verdade que parte dessa liberalização era necessária num mercado excessivamente protegido e intervencionado, também se deverá dizer que as decisões mais recentes, nomeadamente as de 2012, foram conceptualizadas no sentido de fomentar proveitos económicos e colocaram os grupos mais vulneráveis numa situação muito difícil, pela não renovação dos contratos antigos, levando a uma transformação profunda do tecido social e urbano do centro das principais cidades portuguesas (como já tive a oportunidade de aflorar aqui ou aqui).

Se olharmos para o percurso do mercado de arrendamento desde o longínquo Código Civil de Seabra de 1867, poderá dizer-se que este nunca esteve tão liberalizado como após as alterações de 2012. Resta esperar, então, por tempos mais equilibrados.

As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores e não reflectem necessariamente as ideias da revista Smart Cities.