Depois de mais de duas décadas em que os edifícios e o Sistema de Certificação Energética marcaram a sua agenda, a ADENE decidiu, nos últimos anos, expandir horizontes, alargando as suas áreas de actuação para a eficiência hídrica, a mobilidade, as comunidades de energia renovável (CER) e, em breve, a economia circular. Nelson Lage é, desde 2020, o presidente da Agência para a Energia portuguesa e mostra-se empenhado naquela que considera ser a missão desta entidade: “trabalhar para o cidadão e apoiar a implementação da política pública.”

No final do ano passado, a ADENE celebrou “20 anos de energia no séc. XXI”. Qual é o balanço?

Os balanços são sempre difíceis de fazer, ainda mais para alguém que entrou nesta casa como técnico e que, hoje, tem funções de administração. Nos últimos 20 anos, a ADENE já foi muita coisa – com momentos muito altos, mas também alguns atípicos naquilo que poderia ser a sua missão –, mas penso que, na generalidade, é um balanço muito positivo.

Hoje, a ADENE está realmente muito focada no cidadão; tudo o que faz tem como principal foco as pessoas, com uma missão muito forte de contribuir para níveis de literacia energética muito mais altos entre os portugueses, níveis de pobreza energética mais baixos e uma sociedade mais formada e capacitada. A nossa missão contribui para estas três vertentes e tenho feito questão de fazê-lo tendo uma ADENE a funcionar em parceria com o sector. Não acredito numa instituição que trabalhe sozinha ou que seja capaz de cumprir a sua missão de forma isolada. Temos feito um grande esforço [nesse sentido] nos últimos dois anos.

Refere-se ao sector da energia?

Da energia e não só; existem outros sectores associados com os quais a colaboração também faz sentido. Falar só do sector da energia é redutor, porque [a energia] está em tudo. Não creio que, hoje em dia, seja possível cumprir missões sem ser em parceria e nós temos de levar a cabo esse trabalho de proximidade com as redes de agências de energia, como a RNAE (Rede Nacional das Agências de Energia); temos assinado protocolos com associações e vamos continuar a fazê-lo em Portugal e também no estrangeiro. Este ano, presidimos à EnR, rede [europeia] de agências de energia, o que é um trabalho também muito interessante a nível institucional e de cooperação.

Diria que hoje temos uma actuação muito mais sólida e agregadora daquilo que é este sector institucional, mas não só. Estamos realmente a trabalhar e estamos na linha da frente da promoção da eficiência energética, da eficiência hídrica, e temos também todo o trabalho relacionado com a implementação das CER e do autoconsumo, o combate à pobreza energética, a gestão do Sistema de Certificação Energética de edifícios (SCE) e do Sistema de Gestão dos Consumos Intensivos de Energia (SGCIE) da indústria – que é algo que já vinha de trás.

Pode dizer-se que a ADENE é hoje, realmente, a Agência para a Energia e não só a entidade que gere o SCE?

Sim, é mais agregadora. Trabalhamos estas temáticas, que, na realidade, faltavam. Continuamos a apostar na componente da diversificação da formação, com a Academia ADENE, que ganha também uma nova dimensão quando falamos na qualificação de trabalhadores neste sector. Damos também o nosso contributo nos temas da mobilidade sustentável e da economia circular. Vamos lançar um sistema de gestão de economia circular, que é uma novidade.

Hoje, somos muito mais do que a entidade que passa os certificados [energéticos] dos edifícios. Evoluímos no sentido de sermos uma entidade agregadora, que trabalha para o cidadão e que consegue dar o seu contributo como entidade de apoio à implementação da política pública mais transversal, abordando várias temáticas em simultâneo. Eu diria que somos o futuro institucional da sustentabilidade em Portugal, como entidade agregadora.

Os edifícios continuam a ser parte significativa da vossa actividade. Pretendem que os outros domínios em que actuam ganhem um peso semelhante?

Os edifícios têm um peso considerável porque o SCE é obrigatório e cabe à ADENE fazer a sua gestão. Por esse motivo, terão sempre um peso grande, mas esperamos vir a caminhar no sentido também de que as outras vertentes, nos novos sistemas – seja a economia circular, seja a eficiência hídrica ou a mobilidade –, possam ir ganhando o seu espaço e possam, dentro de uns anos, estar ao nível do SCE ou, pelo menos, ser vistas de forma integrada e com igual peso.

Neste momento, os edifícios continuam a ter um peso considerável, até porque, do ponto de vista desta administração, passaram [apenas] dois anos e temos feito um esforço para trabalhar nas outras vertentes, mas há ainda um caminho grande pela frente para que possa haver esse equilíbrio de áreas em termos do trabalho que a ADENE faz.

Tiveram também de alargar os parceiros. Qual é a relação entre a ADENE e os municípios e as agências locais de energia?

Esta administração – e eu, pessoalmente – acredita que só se pode fazer este percurso em parceria, e, aqui, os municípios são cruciais, não só para a ADENE fazer o seu caminho, mas para que todo este desígnio nacional [de sustentabilidade] se consiga alcançar. Do ponto de vista institucional, o primeiro protocolo que a ADENE assinou foi com a RNAE, porque percebeu claramente que não podia implementar política pública e desenvolver este tipo de planos e programas se não fosse em articulação com as agências locais de energia, pois são elas que conhecem a realidade local e têm articulação directa com o município e com outros players locais. Ao fazê-lo, estamos, em muitos casos, a formalizar também uma parceria com os municípios.

Esta relação institucional com as autarquias é algo que não existia no passado, mas que existe agora de forma oficial e protocolada. Trabalhamos com a RNAE no sentido de implementar projectos, chegar aos municípios e a outras entidades locais, e este é um trabalho que espero que não acabe neste mandato, mas que continue de forma cada vez mais dinâmica e com mais projectos envolvidos.

A RNAE é sempre a intermediária ou há contacto directo com os agentes locais?

Recebemos directamente vários contactos por parte de municípios que procuram informação e ajuda para saber qual o potencial das CER, mas temos também projectos com envolvimento directo da RNAE e participações em fóruns em que, realmente, a RNAE acaba por ser o elo de ligação. É [um parceiro] extremamente importante nesta ligação com o local.

“Hoje, somos muito mais do que a entidade que passa os certificados [energéticos] dos edifícios. Evoluímos no sentido de sermos uma entidade agregadora, que trabalha para o cidadão e que consegue dar o seu contributo como entidade de apoio à implementação da política pública mais transversal, abordando várias temáticas em simultâneo.”

O vosso foco está no cidadão, mas, até há pouco tempo, a ADENE não chegava às pessoas. Quem não tivesse feito um certificado energético desconhecia esta entidade. Como é que essa relação se alterou?

Quando pensamos em política pública, devemos pensar que esta é feita para as pessoas. A ADENE, como entidade que pretende apoiar a implementação dessa política pública, tem de trabalhar no sentido de explicar ao cidadão e de capacitá-lo para a tomada de decisões. O que temos feito é ter as componentes, por um lado, de formação e, por outro, de informação e divulgação.

Lançámos, no ano passado, a Rota da Energia, cujo principal objectivo é chegar ao cidadão – seja o cidadão comum ou o estudante, seja o técnico municipal, o empresário ou o funcionário de uma instituição. Temos feito um trabalho de muita proximidade no qual informamos e formamos, partilhamos informação sobre energia e sobre eficiência hídrica, na sua generalidade e em sessões adaptadas a cada grupo-alvo. Fazemos um esforço muito grande de comunicação nas redes sociais e em vários eventos para passar a mensagem. Apostamos numa comunicação muito directa que explique o que a ADENE faz e quais são as suas áreas.

Considero que estamos, hoje, muito mais próximos das pessoas; há ainda muito caminho para percorrer, mas há também muita coisa por lançar e por pensar. [Sei que,] Para cumprirmos a nossa missão, temos de estar realmente muito mais perto [do cidadão].

nelson lage

Tendo em conta o papel da ADENE enquanto referência para o uso eficiente de recursos, como avalia o trabalho desenvolvido pelos municípios nesta matéria?

Há uma maior consciencialização para estas temáticas da sustentabilidade, e isso é notório. Como referi, somos procurados por municípios que pedem informação sobre variadíssimos temas e temos a consciência de que os municípios estão realmente muito mais preocupados e interessados em desenvolver projectos e implementar soluções.

Várias autarquias já recorreram aos contratos de gestão de eficiência energética, que são um instrumento de financiamento previsto no DL n.º 50/2021, ao abrigo do Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública – ECO.AP 2030, que tem a ver com a implementação de soluções de eficiência energética e hídrica em regime de autoconsumo através do modelo de empresas de serviços de energia. [Significa que,] ao nível autárquico, já existe essa preocupação.

O ECO.AP diz respeito à Administração Central; como é que os municípios podem fazer parte?

As autarquias, obviamente, não estão abrangidas pelo ECO.AP, mas podem voluntariamente registar-se no barómetro do programa. E há já autarquias que o fizeram, mostrando, assim, que estão comprometidas com a eficiência no uso de recursos e alinhadas com as metas nacionais, e que perceberam que há um potencial muito grande.

Temos também muitos municípios que já aderiram ao compromisso europeu do Pacto dos Autarcas. O número de autarquias signatárias tem aumentado muito nos últimos anos, o que mostra que há cada vez mais interesse por parte dos municípios em desenvolver políticas de sustentabilidade para o seu território. Hoje, temos municípios mais conscientes naquilo que é a sustentabilidade em todo o seu espaço territorial e muito mais interessados em proporcionar melhores condições aos seus munícipes.

Acção climática, neutralidade carbónica e independência energética são as prioridades do momento. Alguma delas é mais urgente?

No cenário europeu actual, são todas urgentes. Independentemente do que possamos estar a viver neste momento, a meta para a neutralidade carbónica é mesmo para atingir, a acção climática é claramente caminho, e a autossuficiência energética é, mais do que nunca, uma necessidade. A segurança de abastecimento é uma condição para que tudo isto possa acontecer.

Portugal, felizmente, tem segurança energética; não temos problemas nem de produção, nem de distribuição de energia, mas temos de continuar a apostar, de forma realmente séria, nas energias renováveis e temos de diminuir a dependência energética [do exterior], que, no nosso caso, é de 74% (2019).

É possível fazê-lo?

Se olharmos para as metas previstas no Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC), de [reduzir este valor para] 65%, e no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, de 19%, temos ainda um caminho a percorrer. Mas atrevo-me a dizer que estamos a cumprir os objectivos. Estamos num bom caminho e podemos inclusivamente antecipar algumas das metas.

Portugal tem feito uma aposta muito grande nas renováveis. O solar, que antes era quase inexistente, teve um boom nos últimos dois anos. É verdade que o peso que o solar tem no mix é ainda pequeno, mas é muito maior do que anteriormente. Devemos continuar esta aposta e daí a importância dos leilões de energia solar que têm sido lançados, com as diferentes tipologias, como contributo para a implementação das fontes de energia renováveis e, desse modo, para a redução da dependência energética.

A par disso, aquilo que era um sistema electroprodutor muito baseado no modelo centralizado, durante muitos anos, caminha, com a introdução das CER, para um modelo misto, em que existe o centralizado, que continua a ser muito importante, mas também o descentralizado, que é extremamente relevante.

AS CER já são uma opção viável?

Sim, já existe a legislação [necessária], o sistema eléctrico nacional fez a actualização dessa componente. Temos já vários projectos e várias empresas a dedicarem-se quase exclusivamente ao tema. Temos muitos municípios interessados quer nas CER, quer no autoconsumo.

É verdade que precisamos de comunicar e informar mais; é preciso um trabalho de maior proximidade, junto dos consumidores, dos municípios, de quem nos procura para informar sobre o potencial destas comunidades; mas, sim, as CER e o modelo de produção descentralizada são claramente uma realidade que pode, e deve, contribuir para as metas que estão em cima da mesa. Não vamos conseguir cumprir as metas sem esta grande aposta nas CER e num modelo descentralizado. Neste cenário, compete à ADENE informar, capacitar, estar ao lado de quem procura informação – e estamos a fazê-lo.

O que mais temos de fazer para cumprir os objectivos?

Para cumprirmos as metas até 2050, que são muito ambiciosas, temos de apostar claramente na eficiência energética, nas energias renováveis, na suficiência energética. Isto prende-se com o custo-benefício das tecnologias, a electrificação da rede e a infraestrutura e dos equipamentos. Há trabalho a fazer e a reforçar nestes três vectores.

No que diz respeito à acção climática, a ADENE está hoje muito mais presente e mais consciente, e vamos continuar com o nosso objectivo de operacionalização e implementação dos programas de política pública. Esperamos que, com este trabalho, possamos dar o nosso contributo ao nível da literacia energética, que é pequeno, mas muito relevante actualmente.

Enquanto Agência para a Energia, como é que a ADENE pode ajudar os municípios no que se refere à criação de competências para abordar a transição energética?

A ADENE tem o seu papel muito importante no que diz respeito à informação e à capacitação. Não pode substituir aquilo que é o papel do sector privado nas CER, que é muito relevante, mas [a ADENE] pode informar, orientar, guiar, e pode também capacitar técnicos municipais para poderem, eles próprios, ter toda a informação e garantir que os projectos arrancam da maneira correcta.

Não temos responsabilidade ao nível de licenciamento, isso é uma competência da Direcção-Geral de Energia e Geologia, mas temos um papel muito assumido ao nível da informação e da capacitação, seja dos municípios, seja de outros players. Podemos trabalhar com os municípios nessas duas vertentes.

“Independentemente do que possamos estar a viver neste momento, a meta para a neutralidade carbónica é mesmo para atingir, a acção climática é claramente caminho, e a autossuficiência energética é, mais do que nunca, uma necessidade. A segurança de abastecimento é uma condição para que tudo isto possa acontecer.”

No conceito de smart cities, as novas tecnologias estão sempre presentes. Como olham para a digitalização na persecução dos objectivos?

A evolução nesse sentido tem sido muito rápida. A tecnologia e a digitalização são grandes aliadas da descarbonização e da descentralização. As ferramentas de que a ADENE dispõe de certificação e classificação [de eficiência energética e hídrica] não são ferramentas digitais, mas, ao apontar soluções que usam essas soluções, contribuem para que tenhamos um parque edificado mais tecnológico e mais digital.

Na realidade, o futuro das cidades é esse: uma cidade digital, em que tudo interage, onde a gestão dos recursos é feita de forma digital e onde toda a energia é gerida. Temos realmente de caminhar nesse sentido. Não tendo a ADENE um papel directo nas cidades inteligentes, temos um papel muito importante nas ferramentas que potenciam e que ajudam a que se caminhe nesse sentido.

Quais são as perspectivas para o futuro imediato, tendo em conta a situação Internacional?

Há uma perspectiva mais global e política a nível nacional e sobre a qual o Governo tem falado. Portugal está numa posição favorável, fruto da aposta que fez nas energias renováveis. Os níveis de dependência de Portugal são muito baixos, nomeadamente no que se refere ao gás que vem da Rússia. Temos um potencial muito grande na produção de hidrogénio. A Península Ibérica tem um potencial enorme para ser um hub de fornecimento de energia para toda a Europa. Por isso, estamos muito bem posicionados no panorama europeu no que diz respeito à sustentabilidade e à autossuficiência.

Como vê o papel da ADENE neste momento crítico?

A ADENE, enquanto Agência para a Energia, tem sido claramente uma aliada do Governo e dos portugueses nesta missão de reforçar o posicionamento de Portugal rumo à descarbonização e à transição energética, com uma intervenção que foi muito directa e focalizada no cidadão. Fazemos um trabalho muito interessante na implementação de política pública, seja ao nível da indústria, seja a nível de programas direccionados para o uso doméstico, a eficiência energética e a eficiência hídrica. Temos tido um papel muito importante na divulgação do potencial das energias renováveis e da sua aplicação em vários sectores.

Olho para o futuro da ADENE como sendo bastante interessante e positivo, sempre alinhado com a sua missão original, que é trabalhar para o cidadão e apoiar a implementação da política pública. É um futuro em que vejo uma ADENE com mais cooperação, que informe mais, que sensibilize mais e cujos serviços sejam de qualidade. E também uma ADENE que contribua para a monitorização da implementação da política pública e que possa apoiar em questões-chave, como a mobilidade e a sustentabilidade urbana, nos programas em curso da Administração Pública, das CER, e que tenha também um papel muito importante no combate à pobreza energética. Uma ADENE que continue com a gestão dos sistemas de certificação que tem em mãos, mas que possa contribuir para que os actuais sistemas de classificação evoluam para sistemas de certificação – ou seja, para algo mais semelhante àquilo que é a certificação dos edifícios.

Esperamos vir a ter um papel muito importante também enquanto entidade agregadora do sector energético, porque penso que é necessário que essa entidade exista para que possa potenciar a componente de proximidade com o cidadão, que, normalmente e em muitas das áreas, é um problema – há políticas, há programas, há financiamentos, mas, depois, as pessoas não têm conhecimento ou não sabem como podem beneficiar. A ADENE é esse elo de ligação que fazia falta entre a política pública e o cidadão – estamos no meio.

Tendo em conta esse papel que ambiciona para a ADENE, considera que estão no bom caminho?

Penso que sim. A ADENE hoje está mais próxima do cidadão, é mais conhecida, é uma entidade de referência que serve claramente o seu propósito. Agora, ainda há muito caminho para fazer; há que chegar a muita gente e muitos programas para implementar. Já fizemos um percurso notório nestes últimos dois anos, e em pandemia, o que torna o resultado ainda mais interessante. Conseguir lançar uma iniciativa como a Rota da Energia e percorrer o país em plena pandemia é notório e realmente mostra que estamos focados naquilo em que devemos estar focados: trabalhar para o cidadão.

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 35 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2022, aqui com as devidas adaptações.