Autor do livro premiado Happy City e fundador da consultora com o mesmo nome, Charles Montgomery é uma referência internacional quando se fala de felicidade e planeamento urbano. Defensor da cidade compacta, o especialista canadense critica ferozmente as opções tomadas nos últimos 80 anos que alimentaram o modo de vida que “mais desperdício gera”. Na construção da cidade feliz, é preciso “valorizar as ligações cara-a-cara”, privilegiar as curtas distâncias e os modos suaves, e garantir a equidade e inclusão. Segundo Montgomery, a arquitectura, o design urbano e até o activismo são determinantes para uma cidade mais feliz pensada à escala humana.
Quando pensamos na infra-estrutura e design urbanos, que factores podem influenciar a felicidade numa cidade?
Para responder a isso, precisamos de pensar no que contribui para a felicidade humana. O que mais contribui para a felicidade das pessoas nas cidades é a qualidade das relações que têm uns com os outros. Cidades nas quais as pessoas reportam um elevado nível de confiança social e relações positivas têm também os níveis mais elevados de satisfação. Ao mesmo tempo, temos de perguntar sobre a equidade e inclusão nas cidades – quem tem acesso fácil aos transportes? Existem espaços públicos que oferecem a todos uma oportunidade para o lazer e para se conectarem [aos outros]? Se olharmos para a felicidade urbana através dessa lente, podemos olhar para os sistemas de mobilidade, a arquitectura e os espaços públicos e perguntar se estes nos estão a servir bem. Isto é o que sabemos: no último século, ao valorizarmos a liberdade e a mobilidade dos automóveis mais do que a mobilidade dos humanos, destruímos a vida social das nossas cidades. Está na altura de começar a reparar esse estrago.
E é possível fazê-lo?
É absolutamente possível reparar o estrago que fizemos às nossas cidades. Posso dar o exemplo da minha cidade natal: Vancouver, no Canadá, foi planeada na era do automóvel e pensada para privilegiar as pessoas que conduziam, sozinhas, carros. Ainda assim, nos últimos 20 anos, ao mudarmos as nossas prioridades, ao investirmos num ambiente seguro e confortável para o peão e ciclista e ao darmos às pessoas a oportunidade de viver mais próximo do trabalho, escola, comércio e equipamentos de lazer, transformámos a vida da cidade. Agora, mais de 50% das pessoas de Vancouver vai a pé, de bicicleta ou de transportes públicos para o trabalho. É uma repartição [modal] radical para uma cidade norte-americana. Na Europa, as cidades estão genuinamente numa posição melhor do que as norte-americanas para o fazer, porque não foram completamente planeadas para o carro. Há ainda mais esperança para as vossas cidades, mas isso implica tomar opções difíceis sobre os espaços públicos e as estradas.
É um defensor da cidade compacta?
Diria que sim [risos].
Como podemos deixar de olhar para o modelo de dispersão como sendo fantasia ideal da moradia com o jardim e a vedação branca?
Temos de perceber que, quando as pessoas escolhem o sítio onde vão viver, estão a fazer o melhor que podem para maximizar a sua felicidade com base naquilo que lhes é oferecido. No entanto, na maioria das cidades, o modelo de dispersão é massivamente subsidiado, através de subsídios para auto-estradas, do estacionamento gratuito nas áreas residenciais e de muitas outras coisas. Temos de dar sinais económicos mais adequados às pessoas, ou seja, temos de parar de subsidiar a forma de viver que mais desperdício gera, para que as pessoas possam fazer opções com base nos custos verdadeiros.
“Precisamos de novas medidas de sucesso. A felicidade é uma medida sensata que pode complementar o PIB. O mesmo se passa com a confiança social, as métricas de saúde pública ou anos de vida saudável”.
Uma maior densificação tem também externalidades negativas, certo?
Também temos de estar atentos a alguns dos perigos de viver numa cidade densificada. No que se refere à dispersão urbana, as cidades norte-americanas vencem o mundo inteiro. Construímos os subúrbios mais dispersos que se possa imaginar!!! Nestes locais e porque as pessoas têm de passar tanto tempo a conduzir, estas acabam por ter muito pouco tempo para a família, amigos e relações com os vizinhos. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas que vivem em edifícios residenciais altos apresentam uma maior probabilidade de se sentirem sozinhas e sufocadas ao mesmo tempo! Vemos níveis baixos de confiança social e espírito de vizinhança nestas torres. Temos de perguntar a nós mesmos se conseguimos encontrar um meio termo e, na verdade, as cidades europeias oferecem esse modelo. Alguns dos bairros europeus mais maravilhosos são construídos à escala humana e são locais deliciosos. É triste que alguns europeus se tenham esquecido de como se constroem esses lugares. Estudámos especificamente sinais de bem-estar social em edifícios multifamiliares e o que apurámos é que existe um ponto certo entre a cidade densificada e o estilo de dispersão americano. Esse ponto certo é algo a que chamamos de missing middle, no qual se oferece às pessoas habitação, com edifícios de baixa densidade, de 4 a 6 andares, mas, acima de tudo, é-se mais bem-sucedido quando se criam clusters sociais de não mais de 8-12 lares para um espaço ou entrada comum.
A arquitectura e o desenho urbano são fundamentais para alcançar esse ponto certo.
Sim, absolutamente. Estamos a trabalhar no Canadá, Índia, EUA, México, Emirados Árabes Unidos, e em todos estes locais está a começar a adoptar-se essa noção de missing middle para a habitação. Claro que todos sabemos que os humanos e as suas necessidades são complexos e, quando construímos bairros maravilhosos, o puzzle que precisamos de completar inclui a escala humana – edifícios, ruas pedonais, bairros com mistura de usos e muita natureza envolvendo-se no tecido da vida quotidiana. Quando construímos estes locais, somos bem-sucedidos, não apenas a construir vidas mais felizes, mas, também e de forma notável, a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e, ao mesmo tempo, a apoiar economias mais robustas. Isto porque as pessoas gastam mais dinheiro em locais onde sentem um forte sentimento de pertença.
Tudo isto faz sentido na perspectiva dos urbanistas e especialistas em assuntos urbanos e, mais tarde, quando as pessoas o experienciam na prática. Mas, até lá, como convencemos o cidadão comum a, por exemplo, deixar o seu carro e andar a pé?
Não queremos que ninguém abdique do seu carro se não o quiser fazer. Acreditamos que é possível criar espaços pedonais e cicláveis de forma maravilhosa e, quando o transporte colectivo é uma opção mais rápida e dignificante, os comportamentos mudam. E é isto que cidades como Copenhaga, Amesterdão e Vancouver estão a mostrar. Estudos mostraram que o maior preditor de comportamento para a mobilidade não é, na verdade, a atitude das pessoas. Por exemplo, se alguém se considera um condutor, mas vive no bairro pedonal, anda mais. Se se considera um amante do andar a pé e de bicicleta, mas vive num bairro focado no uso do carro, então, conduz mais. Isto é espantoso. Inquéritos mostram que aqueles que andam a pé ou de bicicleta mostram mais alegria e menos medo, raiva e tristeza do que qualquer outro viajante. Porque não dar a mais pessoas a oportunidade de aproveitar esses modos de deslocação?!
Estas mudanças comportamentais conseguem-se com estratégias top-down ou bottom-up?
Com ambas. Todos nós, enquanto indivíduos, respondemos aos ambientes em que nos encontramos. Se os sistemas mudarem, nós mudamos os nossos comportamentos. Por exemplo, nos últimos cinco anos, no meu bairro em Vancouver, passei a ter a opção de utilizar um carro partilhado, ponto a ponto. Posso optar entre dois serviços de car sharing, a Frequent Transit Network [rede de transportes públicos] ou ainda uma via ciclável segregada e segura que me leva até ao centro da cidade. Isto significa que os meus dias começam com um cálculo completamente diferente do que acontecia há anos naquele mesmo bairro. Há dez anos, teria ou conduzido o meu próprio carro ou esperado muito tempo pelo autocarro. Adivinha qual era a opção mais fácil?! Claro que era optar pelo meu carro. Agora, os meus vizinhos e eu não precisamos de ter carro próprio porque há uma oferta imensa de carros partilhados lá fora à nossa espera, se os quisermos usar. Mas o facto de não possuirmos os nossos próprios carros significa que, quando acordamos de manhã e olhamos pela janela para ver como está o tempo, somos livres para uma variedade de escolhas sobre como nos queremos deslocar naquele dia. E aí os comportamentos mudam.
“Se o construirmos, eles virão”. E em que medida é bottom-up?
Exacto. Em algumas cidades, as pessoas têm de parar de ficar à espera de que os seus governos façam mudanças de forma espontânea. Em muitos casos, as mudanças acontecem porque comunidades de pessoas que se importam com a segurança, equidade e também com a liberdade de escolha tomaram medidas através de activismo. Algumas vezes, foram até acções ilegais através de meios tácticos – simplesmente saíram para a rua e pintaram faixas cicláveis ou colaram pilaretes ao pavimento para tornar a via segura para os ciclistas e pedestres. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Seattle, e, no início, as autoridades tentaram castigar os activistas, mas muito rapidamente os copiaram e instalaram infra-estrutura de segurança oficial.
Esta é também uma forma de fortalecer o espírito de comunidade?
É verdade, e nada reforça mais os laços de uma comunidade do que uma causa comum. Em Portland, quando os vizinhos se juntaram para transformar o cruzamento local numa piazza pública, tiveram de enfrentar o município. Quando venceram, o trabalho que fizeram juntos – e porque o fizeram em conjunto – causou uma “explosão” de saúde psicológica positiva num raio de muitos bairros à sua volta. As pessoas estavam mais felizes, dormiam melhor à noite, as taxas de crime baixaram e reportaram que “a vida ficou mais fácil”. Como é que uma série de pinturas na estrada fez isto tudo?! No final de contas, não foram as pinturas, mas, sim, o facto de os vizinhos terem trabalhado em conjunto.
Há cidades e países que estão a usar a felicidade enquanto métrica. Podemos medir a felicidade, sendo um tema tão subjectivo?
Sim, é possível medir a felicidade. Nos últimos séculos, temos usado o crescimento económico ou o PIB como sendo uma procuração do bem-estar de uma sociedade e isto levou-nos ao momento actual de loucura em que sismos, divórcios e cancro são considerados bons para o bem-estar, porque geram actividade económica. Precisamos de novas medidas de sucesso. A felicidade é uma medida sensata que pode complementar o PIB. O mesmo se passa com a confiança social, as métricas de saúde pública ou anos de vida saudável. Não estou a dizer que a felicidade tem de ser a única métrica, mas é um indicador de sucesso muito bom. E podemos medi-la, sendo a melhor forma de o fazer perguntando simplesmente às pessoas o quão felizes são. Graças ao trabalho da economia comportamental e de sondagens a centenas de milhar de pessoas à volta do mundo, sabemos que há uma relação forte entre a felicidade auto-relatada em cidades e países e as condições ambientais e sociais. Por outras palavras, em locais mais bem-sucedidos, mais saudáveis e mais livres, as pessoas dizem ser mais felizes.
Nesse caso, faz sentido que existam departamentos para a felicidade nas estruturas governamentais?
Sim, mas é possível que o país ou a cidade tenha medo da palavra “felicidade”. Não somos apegados à linguagem, porque não dizer “bem-estar”? Estamos a falar de valorizar o que importa mais para uma vida boa. Talvez em Portugal o mais importante seja algo diferente; nesse caso, meçam-no. Quero dizer que temos de fazer mais do que simplesmente medir o crescimento do PIB.
Vamos passar da felicidade para o smart. Como vê o conceito de cidade inteligente?
A ideia de cidade inteligente é muito convincente, mas, por uma década, foi sequestrada por grandes empresas e estruturas tecnológicas, cujo único propósito era vender os seus serviços às cidades. Agora, acredito que a noção de cidade inteligente está a ser lentamente reclamada por aqueles que acreditam que o big data, as novas tecnologias e o design baseado em evidências podem servir o bem-estar para todos nas cidades.
Acredita que a tecnologia pode ajudar a aumentar os níveis de felicidade nas cidades?
É possível. Se olharmos para a mobilidade, por exemplo, nos últimos 80 anos, os engenheiros de tráfego têm avaliado o sucesso dos sistemas de mobilidade por uma métrica a que chamam de “nível de serviço”, que, essencialmente, se resume ao número de automóveis que podem passar num cruzamento. Penso que a abordagem “smart city”, que está agora a ser adoptada por cidades como Vancouver, valoriza a mobilidade dos humanos, em vez da mobilidade dos veículos. Através da observação e a recolha de dados sobre como as pessoas se deslocam, podemos tomar decisões melhores sobre os transportes e sobre como usamos as estradas. E temos de tomar melhores decisões à medida que avançamos na era dos veículos autónomos.
Se usarmos sensores, data analytics e toda essa tecnologia, vamos alcançar uma cidade mais inteligente?
Não podemos depender apenas da tecnologia e dos dados para alcançar uma cidade inteligente. As nossas decisões e o nosso sistema devem ser projectados à volta dos nossos valores, metas, etc.! O que é importante para todos nós quando tomamos decisões relativas à infra-estrutura urbana e os sistemas? Primeiro, vamos tomar essa decisão e, de seguida, juntamos os dados, a tecnologia e todos esses elementos para melhorar os sistemas. Mais uma vez, precisamos de parar de voltar à abordagem tecnológica, que se refere à deslocação de veículos e à velocidade, e regressar a uma abordagem humanística, que é sobre dar acesso aos seres humanos aos serviços e à abundância da vida na cidade.
Para terminar, quer deixar três recomendações aos decisores políticos para que possam aumentar a felicidade dos seus munícipes?
Claro! Número um: valorizar as ligações cara-a-cara. Isso significa criar bairros nos quais as pessoas possam encontrar serviços para satisfazer as suas necessidades diárias numa curta distância a pé e, assim, as pessoas terão muito tempo para família, amigos. Número dois: parem de privilegiar os utilizadores da estrada mais ineficientes – isto é, garantam que os utilizadores da estrada mais eficientes, aqueles que usam os transportes públicos ou andam a pé ou de bicicleta, têm o estatuto mais elevado na via. Número três: assegurem-se de que há um sítio para todos, acessível, para quem estuda ou trabalha na cidade. Isto significa reconhecer que a habitação tem sido corrompida pelo capital global e pela especulação e agir para restringir a especulação dos preços do solo e proteger a propriedade e o arrendamento de habitação acessíveis na cidade. Algumas dessas acções podem ser a aplicação de taxas sobre casas vazias, como fizemos em Vancouver, ou a restrição do arrendamento de curta duração, como airbnb.