Dos 22,2 mil milhões de euros contemplados por Portugal na proposta de reprogramação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), 60 milhões são agora destinados ao desenvolvimento de territórios inteligentes. O que se prevê neste impulso à inteligência territorial? 

Mais de um ano depois da criação de um grupo de trabalho para o desenvolvimento de uma Estratégia Nacional para as Cidades Inteligentes, o Governo apresentou à Comissão Europeia um projecto de actualização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), na qual, entre novos investimentos e medidas de reforço, uma das apostas incide sobre o desenvolvimento de territórios inteligentes.

Em particular, na proposta submetida a 26 de Maio, consta a alocação de 60 milhões de euros ao programa Territórios Inteligentes. A ideia é, através de uma série de medidas, “criar um paradigma de planeamento e gestão das cidades e territórios baseado em dados, implementando uma política de Territórios Inteligentes de forma coordenada entre os diversos actores a nível horizontal, dada a transversalidade sectorial dos vários domínios Smart City, mas também vertical, cobrindo o panorama local, nacional e dimensão internacional”. O principal objectivo, acrescenta o documento de adenda ao PRR, passa por “criar valor para todas as partes e melhorar a qualidade de vida do cidadão, através da coesão territorial e assim permitir que o cidadão tenha as mesmas oportunidades em todo o território”.

Optimizar a gestão e a decisão com dados sistematizados

Para ajudar os vários níveis de poder na resposta aos desafios e às macrotendências e no processo de gestão e de tomada de decisão, o plano de acção do programa Territórios Inteligentes perspectiva o desenvolvimento de um Dashboard de Políticas Públicas designado gov.BI e de Plataformas de Gestão Urbana. Segundo a proposta de actualização do PRR, procura-se “iniciar um projeto de cockpit nacional para auxiliar a tomada de decisão política de actores públicos em diferentes níveis hierárquicos, com informação sistematizada e atualizada proveniente de várias fontes de dados”.
A plataforma digital gov.BI irá disponibilizar dashboards alimentadas por dados provenientes não só de diversas fontes públicas e privadas como de diferentes ferramentas de medição, por exemplo, de sensorização e drones. Vai ainda contemplar a instalação física de um centro de comando e controlo com capacidade de gerar dados abertos, o que se pretende que funcione também “como uma ferramenta de suporte à transparência do Estado”.

Ao apresentar-se como um instrumento de apoio à tomada de decisão política com base em evidências e indicadores de execução, o Dashboard de Políticas Públicas – gov.BI visa “apoiar o desenho de políticas públicas e o bom uso de fundos” num largo espectro de domínios e conferir mais agilidade a este processo.

A par do gov.BI, outra medida dedicada aos decisores políticos à qual o PRR presta particular atenção, agora numa escala mais local ou regional e com uma previsão de implementação em 75 municípios, é a criação de Plataformas de Gestão Urbana, que “se consubstanciem numa ferramenta tecnológica de apoio à gestão dos territórios (…) em áreas emergentes como a da digitalização da habitação e ordenamento territorial”. Pretende-se que estas plataformas integrem, à semelhança do instrumento anterior, dados de diferentes origens e das várias áreas temáticas que regem a vida dos cidadãos e das cidades – áreas que vão desde a gestão da água e dos resíduos, até questões da mobilidade e da energia, passando também, por exemplo, pela análise do fluxo de pessoas e dos processos participativos.

De modo a assegurar a disponibilidade de todas estas informações, os sistemas digitais subjacentes às Plataformas de Gestão Urbana deverão ser trabalhados no sentido da compatibilidade com sistemas de sensorização, bem como com outras plataformas de gestão territorial existentes, que deverão ser integradas. Além disso, deverá ser garantida a interoperabilidade com o gov.BI. Como complemento, consórcios compostos por empresas e entidades do Sistema Tecnológico e Científico Nacional deverão prestar “consultoria técnica e estratégica aos beneficiários finais [municípios e CIMs]”, acrescentava o documento apresentado a consulta pública.

Capacitação, boas práticas e gémeos digitais

Tomar decisões mais acertadas não diz respeito apenas aos decisores políticos. Desenvolver a inteligência dos e nos territórios implica mobilizar vários agentes da sociedade civil e, nesta esfera, é importante promover também a capacitação e a partilha de boas práticas.

Neste sentido, a reprogramação do PRR avança com uma medida de “desenvolvimento de conteúdo para formação e capacitação de pessoas”, nomeadamente, entre outros stakeholders, estudantes do ensino superior e politécnico, trabalhadores do sector público e privado e líderes de entidades. Através deste pilar de Capacitação para a Inteligência Territorial e [para a] Sustentabilidade, irá facilitar-se, como indica o documento, a disseminação de conhecimento sobre standards, normas abertas, APIs [Interfaces de Programação de Aplicações, tradução portuguesa de Application Programming Interfaces], entre outros conteúdos associados ao desenvolvimento de cidades inteligentes.

Outra acção cuja finalidade engloba esta capacitação mas também, de forma mais abrangente, a partilha de boas práticas é a criação de um Portal dos Territórios Inteligentes. Ao compilar informação sobre boas práticas e sobre projectos bandeira a nível nacional, bem como ao definir práticas e princípios comuns e ao promover a criação de fóruns de discussão e redes de líderes, este repositório on-line vai incentivar os agentes a criarem e a escalarem projectos. Vai fazê-lo, ainda, ao agregar, num único portal, informações práticas sobre standards, regulamentação e fontes de financiamento e uma biblioteca de documentação e componentes de software (open interfaces/APIs). A ideia é que, assim, o desenvolvimento dos projectos inclua a integração de soluções certificadas. De forma a incentivar a partilha de conhecimento e a cocriação dos territórios inteligentes, a proposta de reprogramação do PRR inclui ainda a criação de um Observatório do Poder Local, “que permitirá a desmaterialização dos processos administrativos dos municípios, criando uma rede de recolha transversal de informação, de capacitação e de apoio à tomada de decisão de política pública local”.

Uma última medida traçada pelo PRR para o programa Territórios Inteligentes está relacionada com o desenvolvimento de digital twins, ou gémeos digitais, “focados em domínios prioritários nacionais (e.g., água e agricultura, resiliência e clima, mobilidade e descarbonização, etc). Nesta vertente, o Governo ambiciona financiar o desenvolvimento e a implementação destas ferramentas tecnológicas que permitem representar o mundo e os sistemas físicos no panorama virtual para simular e modelar, em tempo real e no contexto digital, o comportamento destes sistemas em diferentes cenários. A iniciativa Gémeos Digitais deverá focar-se em “prioridades nacionais”, mas numa perpectiva alinhada com as prioridades da União Europeia.

Impulso para uma estratégia nacional

Este investimento alocado à nova proposta do PRR está enquadrado na Componente 19 – Transição Digital da Administração Pública em alinhamento com as agendas temáticas Inovação, Digitalização e Qualificações como motores do desenvolvimento e Um país competitivo externamente e coeso internamente. Sob a coordenação da área da modernização administrativa e transição digital, assente na articulação com as entidades públicas responsáveis pelas dimensões ligadas à inteligência territorial, o programa Territórios Inteligentes vai contribuir ainda, de acordo com o Governo, para atender à Recomendação Específica por País estabelecida para Portugal no domínio da focalização do investimento na transição digital.

Vai também dar um impulso à Estratégia Nacional de Territórios Inteligentes, anteriormente designada Estratégia Nacional para Cidades Inteligentes, que era para ter sido apresentada a consulta pública há cerca de um ano. Recorde-se que o Despacho n.º 1368-A/2022, de 1 de Fevereiro, criou, no ano passado, um grupo de trabalho para o desenvolvimento deste plano estratégico, uma iniciativa coordenada pela Estrutura de Missão Portugal Digital e que conta com a colaboração da Agência para a Modernização Administrativa, da Direcção-geral das Autarquias Locais e da Direcção-geral do Território.

Embora a promessa de uma visão nacional para inteligência do território continue sem publicação à vista, Mário Campolargo, secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa, fez saber que foi realizada, no fim de Abril, uma sessão de trabalho para o “desenho da futura Estratégia Nacional de Territórios Inteligentes, que contou com o apoio da AMA – Agência para a Modernização Administrativa, IP, da Portugal Digital, do #INCoDe2030 e com a participação de especialistas do território, da academia e da indústria. Sabe-se também que a Nota Explicativa da secretaria de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa a propósito do Orçamento de Estado de 2023 aponta para a aprovação desta estratégia e dos respectivos Plano de Acção e Arquitectura de Referência, não só para acelerar a transição digital e adopção de tecnologias de gestão e coesão do território, como também para, em diálogo com a Administração local e regional, “promover territórios inteligentes e conectados que potenciem um maior desenvolvimento económico” e cimentem “o papel de Portugal como líder digital”.

A proposta de actualização do PRR, cujo acréscimo orçamental foi de 32% (mais de 2,4 mil milhões de euros de subvenções e 3,2 mil milhões em empréstimos) esteve em consulta pública desde o dia 6 de Abril até ao dia 21 de Abril. O processo de auscultação permitiu recolher cerca de 150 contributos de várias associações empresariais, entidades públicas e autarquias, bem como de cidadãos. As sugestões foram submetidas ainda no mesmo mês a avaliação interna e consideradas no documento enviado à Comissão Europeia no dia 26 de Maio.
Em matéria de Territórios Inteligentes, o projecto de reprogramação do PRR diz que o investimento agora contemplado é uma “oportunidade para criar um novo paradigma de planeamento e gestão das cidades e territórios assentes em políticas públicas data-driven”. Aborda também a necessidade de uma transformação nacional, que envolva tanto as áreas urbanas como rurais, de modo a que haja uma “evolução de um ecossistema de Smart Cities ao nível local/regional para uma Smart Nation”. Nesse sentido, realça a importância dos municípios neste contexto, fazendo referência a “cerca de 300 casos de uso nacionais com boas prácticas”.

De acordo com o mesmo documento, a coordenação da implementação dos projetos relacionados com os Territórios Inteligentes estará a cargo da Agência para a Modernização Administrativa, coadjuvada pela Estrutura de Missão Portugal Digital e pelo INCoDE.2030, em parceria com entidades públicas, privadas e associativas com missão relevante no território. Como público alvo é identificada a Administração Central, Regional e Local.

Este artigo foi adaptado do texto originalmente publicado na edição nº 39 da Smart Cities – Abril/Maio/Junho 2023, aqui com as devidas actualizações.